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O compromisso invisível da escrita nas madeixas do texto que escorrem sobre a superfície, a fé do prazer no altar da madrugada, ainda que não o seja, o ritual e o fervor oculto neste fogo negro, na ardência das falanges que teclam, as fogueiras das trevas nutrindo a combustão dos fantasmas, até ao osso, para que em cada minuto que me detenho esteja a eternidade, que não sendo total é um fragmento considerável da ideia. Com as suas refutações interlineares à fácil arquitectura do espectáculo, à sua naïvité argumental, à palustre paisagem exaurida como o mais funesto mimetismo do lugar-comum – a literatura nunca foi isto ainda que, hoje, o seu comércio se acidente nas areias movediças do desespero financeiro, na promoção despudorada do esterco, na programação mortal do medíocre acaso do favor.
A literatura inscreve-se na louca inspiração da leitura preexistente, na sua acção quotidiana na orografia do inesperado, na espeleologia secreta do parágrafo alarmante, no mergulho funerário na bruma paginada que cai e pesa sobre as aparências num jogo de figurações clandestinas, na alienação circunstancial de uma obscura travessa, na fulgência do imprevisto, no subsolo imagético, para uma ascensão metaforicamente divina como hipertexto fulgurante, distinto e original da fonte. A invenção parte de um objecto criado para um novo objecto em nada semelhante. A folia da imaginação no seu carnaval exponencial de máscaras. A ficção magistral da poesia nada tem a ver com a massificação do desabafo emocional de frustrações: a literatura é feita de outra matéria.
À tentativa de fazer renascer a mediocridade do lugar-comum e a sua monstruosa divulgação do plágio impudente sob o acordo dos seus patrocinadores – estas são as obscuras forças predominantes cujos protagonistas mediatizados pelas empresas de comunicação se vergam diariamente diante da imponência divina da grande farsa – opõe-se a renovação ética com a sua linguagem desassombrada, na militância da diferença estética, na resistência ao ataque do armamento da ocultação e do esquecimento promovido pelo mainstream enfadonho, obeso e cobarde, na criação de singularidades que identifica os seus autores com o que vem e não com o que foi.
A literatura navega entre as marés das realidades plenas e integrais da experiência humana – e de todo o seu potencial penumbrado como depósito de valores – e as mais complexas abstracções tecidas para além, muito para além, da logicidade comportamental e apreensível. Através dos mesmos conteúdos criam-se formas inovadoras e paralelas de os revelar. Novas dimensões que ao olhar se impõem ao criador de substâncias diferentes. O criador é um progressista e quando não o é nunca será um originador de inventividades, mas um repetidor de circunstâncias passadas, que é o que mais se vê nos escaparates do negócio imediato. A escrita deverá expor o desejo de uma elaboração ideológica revolucionária para uma anatomia do futuro. Em Liberdade. Sempre em Liberdade. E com o direito à Liberdade de comunicar.
Luís Filipe Sarmento
, «Rouge – Éclatant», 2020
Foto:
José Lorvão
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