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“Os açorianos são felizes porque estão vivos. Apesar dos vulcões e tempestades”
“Os açorianos são felizes porque estão vivos. Apesar dos vulcões e tempestades”
Para muitos, continua a ser o Boinas. O chapéu ficou para trás e o apresentador, guionista e humorista de 46 anos deixou igualmente os Açores onde nasceu — e a pronúncia a que estamos habituados. Mas é sobre esta constatação que Luís Filipe Borges aproveita para fazer o primeiro reparo — e dar a primeira canelada aos continentais.
“Costumam pensar que, nos Açores, todos falam da mesma forma, mas nem todos temos pronúncia micaelense. Há dezenas de sotaques no arquipélago, uns mais fortes que outros”, conta à NiT, antes de admitir que quase 30 anos em Lisboa ajudaram a “afastar a musiquinha”.
Afastou-se da terra natal, mas a ligação manteve-se forte. É também por isso que, a partir de domingo, 2 de junho, estreia na NiT a sua crónica “Embaixada dos Açores”, que será publicada semanalmente, sempre no mesmo dia. Borges irá revelar todos os segredos da região: os melhores sítios para comer, para dormir, entre algumas tradições e curiosidades geográficas estranhas aos continentais.
O antigo apresentador do “5 Para a Meia Noite” escolhe o arquipélago como cenário dos seus trabalhos muitas vezes. Assim foi com “Mal-Amanhados”, da RTP, onde explorou os Açores num documentário que é “uma declaração de amor”. Fez uma breve aparição em “Rabo de Peixe”, a série da Netflix que relatou a bizarra história da pequena freguesia açoriana. E, mais recentemente, terminou as gravações de uma curta-metragem que procura fazer nascer uma comédia romântica na ilha do Pico — e a estreia, garante o próprio, está marcada para janeiro de 2025.
A NiT esteve a conversa com o novo cronista da revista, para saber o que podemos esperar — entre duas ou três lições aos continentais.
O que é que podemos esperar da Embaixada dos Açores?
É uma ideia da qual me orgulho muito e que no fundo vai servir como espécie de continuação daquilo que já faço nas minhas redes sociais, que é basicamente falar apaixonadamente da minha terra. Os Açores agora estão na moda. Houve um crescimento enorme nos últimos 70 anos, mas ainda existe um enorme desconhecimento. Estamos a falar de uma parte muitíssimo específica de Portugal, que tem uma cultura própria, tradições próprias.
Coisas que os continentais desconhecem, portanto…
Muitos limitam-se a ir a São Miguel, o que é ótimo — São Miguel é uma ilha fantástica, só que para ter uma verdadeira experiência açoriana, costumo dizer aos meus amigos que é preciso conhecer pelo menos três ilhas, porque elas são efetivamente bastante distintas entre si.
E o Luís conhece?
Ao fim de muitos anos tenho o privilégio de conhecer o arquipélago todo. Já tinha 19 ou 20 anos quando finalmente conheci uma ilha que não a minha, sou da Terceira. Já estava na faculdade quando fui a uma outra ilha, neste caso São Miguel, mas hoje em dia com 46 anos conheço-as todas. Já estive em cada uma pelo menos três vezes. Tenho trabalhado muito em projetos que eu chamo de projetos açorianos, que são coisas que eu tenho produzido sobre a minha terra e para a minha terra. A Embaixada dos Açores vai ser esse espaço de identidade açoriana, onde eu espero a cada oito dias poder dar recomendações pessoais de um orgulhosíssimo açoriano, que vão desde ótimos sítios para comer, para dormir e até curiosidades históricas e geográficas, explicações das nossas tradições.
Por exemplo?
Temos coisas nos Açores, como por exemplo o Dia de Amigos e Dia de Amigas, que é uma prática só nossa, e é um momento de grande festa e de convívio entre os grupos de pessoas que se estimam, que se gostam. E temos uma tradição para as alturas do Natal que se chama O Menino Mija. Temos obviamente as grandes festas do Espírito Santo, que começaram na região há cerca de seis séculos, quando as ilhas foram povoadas, e que na altura acontecia em todo o País, mas com o passar dos séculos desapareceu em todo o lado, menos nos Açores.
Diz ser açoriano, mas não tem a pronúncia para o comprovar. Como é que acreditamos em si?
Isso é outra das coisas que certamente terei a oportunidade de falar na Embaixada dos Açores, que é uma das ideias erradas que muita gente do continente tem sobre as ilhas…
De que falam todos com a mesma pronúncia?
Sim sim, exato. Só na Ilha do Pico, por exemplo, que não é uma das mais conhecidas, há cerca de 40 pronúncias diferentes. Aquilo que o continental médio chama-se sotaque açoriano é na verdade a pronúncia micaelense. E mesmo dentro de São Miguel também há grandes diferenças. Em Rabo de Peixe a forma de falar é por vezes bastante impercetível, e noutras zonas da ilha não é de todo. A minha ilha também, a Ilha Terceira, tem um sotaque completamente diferente e muito mais suave do que o micaelense. E eu vivo no continente desde os 18 anos, portanto há 28 anos, ou seja, a musiquinha que eu pudesse ter, já se foi.
Está há quase 30 anos no continente, mas o percurso profissional parece teimar em levá-lo repetidamente de volta aos Açores. Falam sempre numa ligação muito forte às origens. É só consigo ou é um traço próprio dos açorianos?
Diria que sim. Nunca conheci um açoriano que não tivesse esse apego à sua terra. Há até alguns episódios que eu acho bastante demonstrativos. Quando em 1995 entrei para a faculdade de Direito de Lisboa, nesse ano éramos 21 açorianos. Três anos depois já só restávamos sete, ou seja, 13 mudaram de curso e arranjaram forma de ir estudar para o arquipélago. Um grande amigo meu de infância, veio para cá também, foi estudar Engenharia Informática. Fez o seu curso, começou a trabalhar numa área onde há grande procura, onde se não se for incompetente se ganhar muito bom dinheiro logo numa fase inicial. E ele quando tinha 27 ou 28, tinha uma proposta incrível de uma multinacional e teve uma proposta de uma empresa açoriana que pagava um terço do que ele ia cá receber. E ele preferiu voltar.
O que é que explica essa paixão pela terra?
Penso que tem a ver com vários fatores, sendo que um deles será seguramente o espírito comunitário. Há uma relação social nas ilhas que nós não encontramos cá. Eventualmente poderá haver uma coisa parecida em regiões do Norte ou do Alentejo, mas nos Açores é mesmo muito, muito forte o espírito comunitário. Isso tem a ver com algo que eu acho que é fácil de entender, que é o isolamento, a distância e a intempérie. Estamos a falar de um povo que está há seis séculos sujeito a rigores do clima e a perigos pelo posicionamento geográfico das ilhas, que não são tão comuns no continente. Um açoriano da Ilha das Flores, por exemplo, que é uma ilha que tem hoje em dia 3.700 habitantes, está numa situação complicada. Se houver uma tempestade, como houve há quatro anos com o furacão Lourenço que destruiu o único porto da ilha, o abastecimento da ilha ressente-se imediatamente. De repente as prateleiras de supermercados não têm bens, os postos de combustível não têm gasolina. Se tiveres um problema grave e tiveres que ir a um hospital, não hospital na ilha, tens de ser evacuado para outra. E seis séculos destas dificuldades, acrescendo a isto o facto de os Açores ficarem situados na junção de três placas tectónicas, ou seja, é uma zona de grande atividade sísmica, tudo isso mudou o nosso povo. Fez com que a comunidade fosse muito próxima e muito festiva. Ao contrário de uma imagem que também perdurou durante muito tempo, de que é um sítio cinzento e onde chove muito e as pessoas são tristes, o açoriano é uma pessoa feliz. Essa ideia não poderia estar mais distante da realidade, porque o açoriano passa a vida com outras pessoas, juntos. Fazemo-lo simplesmente pelo facto de continuarmos aqui, estamos vivos, continuarmos a sobreviver às dificuldades, aos vulcões, aos desamores e às tempestades.
Em último recurso, faz-se a festa. É isso?
As festas do Espírito Santo são precisamente uma demonstração disso. Nas festas do Espírito Santo, que se celebram em todas as ilhas e todas as freguesias, há sempre um dia que é tradicionalmente dedicado aos pobres. Um dia onde a comida e a bebida é distribuída gratuitamente em toda a gente. Hoje em dia, evidentemente, existem muito menos pessoas em condições difíceis do que há cem, duzentos, trezentos anos, mas a tradição continua, a tradição continua. Esse espírito comunitário é importante. E depois, nesta lógica de querermos sempre regressar, entra obviamente a avassaladora beleza natural das ilhas, uma sensação de segurança como não há em lá nenhum. Estou convencido que estes fatores fazem com que todos os açorianos tenham este apego particularmente forte à sua terra e que muitas vezes prefiram voltar para lá do que continuar no continente, onde eventualmente teriam condições profissionais mais favoráveis.
É por isso que regularmente acaba por usar o arquipélago como cenário dos seus trabalhos? É fácil puxar do orgulho quando há essa “beleza natural avassaladora”, não é?
(risos) Faço-o sobretudo por ser a minha terra, mas claro que a beleza é um extraordinário incentivo. Costumo dizer aos meus amigos que trabalham nesta área que os Açores são um sítio tão bonito que basta montares o tripé, a câmara, dás-lhe uma chapada e para onde ela ficar a apontar, está tudo bem. Dito isto, também é um local de clima instável, que é um pesadelo para as produções audiovisuais.
Nem isso impediu que a Netflix por lá fizesse uma das suas novas grandes produções, “Rabo de Peixe”, onde teve até um pequeno papel num dos episódios. Vai voltar para a segunda temporada?
Não posso dizer.
A série é outra oportunidade para levar os Açores a ainda mais pessoas. Sentiu-se algum impacto na região?
Não podia estar mais orgulhoso. Vi a série três vezes e não só adorei como acho que o resultado de grandes projetos audiovisuais sobre determinados locais dão sempre muitos bons resultados porque despertam curiosidade. E apesar de não ser a minha ilha, tenho muitos amigos em São Miguel, e os relatos que me chegam é de que há uma enorme crescimento turístico em Rabo de Peixe. Dito isto, eu tenho a certeza que esta história aconteceu por ser uma grande história e não especialmente pela beleza de Rabo de Peixe, porque, com todo o respeito, haveria 200 sítios dos Açores mais bonitos que podiam ter escolhido. Mas estamos a falar de uma terra que durante décadas largas, foi o sítio mais pobre da nação e inclusivamente, até há não muito tempo, era a freguesia mais pobre da Europa. E hoje em dia, em parte graças à determinação daquele povo, e em certa medida também agora graças ao sucesso internacional desta série, a ideia que existe hoje em dia de Rabo de Peixe é a de um sítio onde as pessoas fazem das tripas coração. Não são personagens de ficção, mas eu como espectador, o que retiro daquele grupo de amigos capitaneado pelo Eduardo, a personagem do Zé Condessa, é que há pessoas sem recursos em Rabo de Peixe que capazes de criar oportunidades a partir do drama. E há um enorme sentido de humor que perpassa na série e que eu acho que é muito característico daquela zona. Porque normalmente, quanto mais dificuldades as pessoas atravessam, mais usam o humor. Sei que há quem tenha outras opiniões e respeito isso, mas pessoalmente eu acho que a série de Rabo de Peixe, ainda por cima criada por um açoriano, um açoriano da ilha de São Miguel, só trouxe coisas boas.