LITERATURA AÇORIANA, ESSE PROBLEMA…Ruy Galvão de Carvalho

LITERATURA AÇORIANA, ESSE PROBLEMA…
Problema que tem sido, de alguns anos a essa parte, larga e apaixonadamente discutido; ou seja: a possibilidade de uma literatura de expressão açoriana.
Certo, o Acoriano é dos povos de ascendência portuguesa, aquele que, devido a circunstâncias especiais, entre as quais o factor geofísico, a insularidade, a paisagem que apresenta sempre maravilhosos contrastes, o isolamento plurissecular convidativo ao devaneio e à meditação, a natureza vulcânica do solo actuando na imaginação do ilhéu, o mar oceânico dando-lhe a imagem viva do efémero, o jogo caprichoso das nuvens e dos ventos… ora, como estávamos a dizer, dos povos de raíz portuguesa é o Acoriano aquele que possui uma fisionomia própria e inconfundível. O Açoriano evidencia-se, de facto, de entre a família lusitana pelas suas formas originais de pensar e agir, de vee e sentir as coisas, o meio ambiente, as gentes, o universo…
Conservador no culto do Passado e da Tradição, ele é simultaneamente inovador no seu poder de adaptação, a situações novas, permeável às situações de tudo quanto vem de fora. Daí, por conseguinte, o seu humanismo e universalismo.
Contemplativo e idealista, emotivo e solitário, o Açoriano é, a par, um homem de acção, realista e prático. Finalmente, vivendo no sonho, sente-se no entanto preso à terra-mater, ao torrão natal: é um enraizado debaixo desse aspecto, mas um enraizado que é ao mesmo tempo um cidadão do mundo.
Assim no-lo revelam as suas as suas múltiplas manifestações literárias e artísticas.
Posto isto, importa primeiro perguntar, e este é o grande problema: Será possível pela “matéria prima” de que podemos dispor, criar uma literatura inteiramente nossa, portanto sem influências de qualquer origem, mesmo dos nossos irmãos continentais? Mais ainda: poder-se-á, porventura, dar expressão literária ao “caso” do homem açoriano tornando-o universal? Enfim, estas características que no princípio apontamos serão suficientes para justificarmos a possibilidade de uma literatura de expressão açoriana? Definir, numa palavra, psicologicamente, o viver do homem ilhéu destas plagas atlânticas?
Vejamos, a esse respeito, algumas condições que nos parecem essenciais”
Em primeiro lugar, para que um povo possa ter, realmente, uma literatura sua, necessita de uma língua viva que lhe surva de instrumento de comunicação expressiva, de veículo transmissor, quer dizer, que esteja, como opina, acertadamente, o ensaísta José Osório de Oliveira, “em condições de satisfazer as necessidades de expressão”, e que os seus escritores tomem para tema das suas obras material local, ou seja, a terra e o seu habitante, ao mesmo tempo dando-nos “obras vivas autênticas capazes de interessar os outros homens e com possibilidades de ficar como documentos humanos e como criações artística verdadeiras” (in Enquanto é possível, pág 41-42).
Debaixo desse ponto de vista, não há dúvida, temos uma língua viva, a portuguesa, aquela que herdámos dos nossos antepassados, dos primeiros povoadores destes “penhascos floridos”, embora ela viesse a sofrer modificações dialectais e, com o mesclamento de povos estrangeiros, enxertias vocabulares.
Seguudamente, a este elemento, que é indispensável, associam-se os, propriamente, de natureza local.
O Prof. Vitorino Nemésio indica alguns deles: ” Em primeiro lugar, o apego à terra, este amor amor elementar que não conhece razões, mas impulsos; e logo o sentimento de uma herança étnica que se relaciona inteiramente com a grandeza do mar.” Mais abaixo continua continua: “Uma espécie de embriaguez do isolamento impregna a alma e os actos de todo o ilhéu, estrutura-lhe o espírito e procura uma fórmula quase religiosa de convívio de quem não teve a fortuna de nascer, como o logos, na água.” E concluindo, observa ainda: “…a vida açoriana não data espiritualmente da colonização das ilhas: antes se projecta num passado telúrico que os geólogos reduzirão a tempo, se quiserem… Como homens, estamos soldados historicamente ao povo de onde viemos e enraizados pelo habitat a uns montes de lava que soltam da própria entranha uma substância que nos penetra. A geografia para nós, vale outro tanto como a história, e não é debalde que as nossas recordações escritasl insenrem uns cinquenta por cento de relatos de sismos e enchentes. Como as sereias, temos uma dupla natureza: somos carne e pedra. Os nossos olhos mergulham no mar,” (in Insula, Revista 7 e 8 de Julho e Agosto de 1932).
A influência do mar é incontestável, visto o mar ter em parte feito à sua imagem e semelhança o homem açoriano. Afirma-o também Vitorino Nemésio: “a alma do ilhéu exprime-se pelo mar.” “O mar é não só o seu conduto terreal como seu conduto anímico (in Sob os Signos de Agora, pág 140). Antero reconhecia igualmente: “Filhos do mar, como que hidráulicos por constituição ” (in Prosas, vol 1, pág 109).
Outra característica merece aqui ser registada: de mistura com um certo fatalismo, existe em todo o açoriano um fundo místico que o sociólogo brasileiro Gilberto Freire filia na colonização flamenga das ilhas dos grupos Central e Ocidental (cit por Otto Maria Carpeau, Antero de Quental e o pensamento Alemão, in Atlântico. Revista Luso-Brasileira, 3, pág 41).
Em derradeira análise, a insulariedade fez do português dos Açores um homem independente, de mentalidade autónoma, e, sob o aspecto antropológico, como provou Arruda Furtado, um tipo bem diferenciado e bem definido tendo a esta mesma conclusão chegado A. Morelet e o mencionado Gilberto Freire, entre outros.
Porém, literariamente falando, poucas são ainda as obras, em verso e prosa, mesmo em teatro, de essencialidade açoriana.
Daí, por isso, o de não termos propriamente uma literatura nossa. Não só nossa, mas que seja capaz de interessar o homem de qualquer parte do mundo. Tenha, em suma, significação universal.
Infelizmente faltou-nos sempre, ao longo dos séculos, aquilo que é fundamental para a sua formação: tradição e continuidade. Pois uma literatura não se fabrica, cria-se.
A terminar, bosso apelo neste momento é este: que as gerações actuais sejam as primeiras a dar os primeiros passos nesse sentido, tomando por tema o viver das nossas gentes: seus usos e costumes, suas lendas, crendices e superstições, suas tradições e folguedos, suas danças e cantares, seu falar e seu drama quotidiano. Repetimos: Com significação humana e universal.
A regionalização pode ser agora um feliz começo… Oxalá!
Refundido aos 13 de Março do Ano da Graça de 1982
Ruy Galvão de Carvalho
In Poetas dos Açores
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