Lidar com o cancro não é um processo fácil,

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“Lidar com o cancro não é um processo fácil, pelo que é expectável que possamos sentir medo, dúvida e raiva,”afirma Pedro Mackay
Pedro Mackay, natural da ilha Terceira, conta hoje com 40 anos de idade e é psicólogo na Estrutura para a Saúde Mental, afecta à Secretaria Regional da Saúde e Desporto. Há 12 anos encarou-se com a necessidade de lutar contra uma leucemia aguda, que ultrapassou depois de seis meses em Lisboa, no Hospital de Santo António dos Capuchos, onde foi sujeito a vários tratamentos de quimioterapia que, embora o tenham deixado com uma grande vulnerabilidade imunitária, foram também cruciais para, seis meses mais tarde, receber a notícia de que tinha entrado em remissão.
O interesse pela Psicologia, conforme conta, foi algo que surgiu naturalmente, por volta dos 15/16 anos, no ensino secundário, quando percebeu que gostava de aprofundar conhecimentos sobre as pessoas, os seus comportamentos e as suas emoções, o que lhe permitiria também utilizar estes recursos para ajudar a melhorar a saúde mental e o bem-estar das pessoas.
Assim, licenciar-se-ia em Psicologia através da Universidade do Minho, em 2006, regressando depois à ilha Terceira, onde acabaria por começar a trabalhar numa Equipa de Adopção e de CATE’s e Lares, da Divisão de Acção Social de Angra do Heroísmo até 2010, ano em que a sua vida foi colocada em suspenso depois do diagnóstico da doença oncológica. Porém, hoje, adianta que se sente grato por ter passado por esta experiência, nomeadamente “por ter superado o processo de tratamento e por estar vivo, saudável e consciente”, procurando, desde então, ser “um agente activo na comunidade na luta contra o cancro”.
Correio dos Açores: Até 2010 tinha uma vida activa, livre de excessos e vícios. De forma mais detalhada, como era a sua rotina antes do diagnóstico de leucemia?
Pedro Mackay: Desde que me lembro, sempre fui uma criança muita activa e com aptidão para o desporto. Pratiquei, em regime federado, futebol, tendo, por volta dos 14 anos, transitado para o basquetebol, actividade que mantive com interesse e dedicação até ao ensino universitário. Já neste contexto, inscrito na Equipa da Universidade do Minho, tive uma lesão no menisco (joelho) que interrompeu o meu percurso de forma mais séria. Contudo, o interesse e motivação para o desporto mantiveram-se até aos dias de hoje. Diria que tenho um perfil de “personalidade desportiva”, o que sempre moldou os meus comportamentos e interesses, levando-me a cuidar da minha saúde, sem os excessos das saídas à noite, do consumo de tabaco ou dos consumos alcoólicos abusivos. Não me privei das saídas normais ou de copos com amigos. Porém, ocorriam de forma muito ocasional.
Quando começa a sentir que algo não estava bem com o seu corpo e quando resolve procurar um médico?
No Verão de 2010, em meados de Agosto, identifico que algo está diferente em mim. Diria que me sentia com menos energia, com humor um pouco alterado, e, genericamente, com a sensação vaga de algo estava diferente em mim. Pouco tempo depois, surgem-me aftas, de grande dimensão, que tendiam a não cicatrizar, o que comprometia a minha alimentação. Comia pior, dormia pior e acordava mais cansado.
Procurei ajuda médica, submeti-me a vários exames e análises, tendo efectuado endoscopias e monitorizado as análises, sem qualquer indicação de doença até finais de Novembro. Nesta altura, e ainda com aftas que não cicatrizavam, comecei a ter episódios de febre, o que me levou a repetir análises ao sangue, tendo, já em Dezembro, obtido a confirmação da doença, uma leucemia aguda.
O que recorda do dia em que lhe foi transmitida esta notícia e o que sentiu quando, aos 28 anos de idade, lhe foi comunicado este diagnóstico?
Recordo o estado de surpresa e choque com que recebi o telefonema que haveria de mudar a minha vida para sempre. Julgo que ninguém estará preparado para receber uma notícia destas, muito menos um jovem de 28 anos de idade, com tudo por fazer. Na verdade, havia, da minha parte, a percepção de que algo estava errado com o meu corpo. Os sintomas mostravam isso. Porém, estava longe de imaginar que poderia receber um diagnóstico tão fracturante quanto este.
Uma vez que a doença se instalou agressivamente, que sonhos foi obrigado a colocar em suspenso para que se pudesse concentrar na sua recuperação?
Em bom rigor, a vida como a conhecia ficou em suspenso. Com a chegada ao Hospital de Santo António dos Capuchos, em Lisboa, chegou a confirmação de que me teria de preparar para um ano de tratamentos e para me focar, exclusivamente, na superação diária. Afinal de contas, o grau de imprevisibilidade de todo o processo, onde a resposta imunitária e a adaptação do corpo aos tratamentos são específicas de cada indivíduo, não permitia sonhar com outra coisa, que não viver. E assim foi. Foquei-me em mim, no meu corpo, nos cuidados a ter e no “sonho” de passar um dia de cada vez, até ao final do processo. Sonhei viver. E assim foi!
Entretanto, esses sonhos foram já concretizados?
Os sonhos que tinha são os que tenho. Viver, saudavelmente, na companhia dos meus familiares e amigos, desfrutando das pequenas coisas. São sonhos que não se encerram. Cumprem-se diariamente, com consciência. Com a compreensão de que estar vivo e saudável, a gozar da presença de quem se gosta, não é um dado adquirido. É uma oportunidade a não desperdiçar.
Uma vez que se encontrava nos Açores quando recebeu a notícia, como viu a necessidade de passar este período da sua vida longe de casa, em Lisboa?
Na verdade, aceitei o facto de ter me deslocar para Lisboa com naturalidade. Conhecia alguns casos identificados na Terceira, cujo desfecho tinha culminado com a deslocação para o continente. É uma condição que aceito como natural, no contexto em que nos inserimos. Porém, é inegável que lidar com os ciclos de tratamento longe de casa tornou o processo ainda mais desgastante. Afinal de contas, perde-se parte da rede de suporte e vê-se interrompido o nosso quotidiano de conforto.
Passou por este período sozinho ou com o apoio incondicional de familiares/amigos?
Com o apoio de familiares. Foram e são, absolutamente, essenciais em tudo o que faça. Na doença oncológica em particular, com todas as transformações emocionais e físicas que daí decorrem, contar com o suporte de uma rede familiar sólida faz toda a diferença. E ainda que haja quem o passe sozinho(a), sei, por experiência própria, bem como pelo que está documentado, que uma rede de suporte faz toda a diferença.
Quão importante sente que, para um doente oncológico, é importante ter uma boa rede de apoio para ultrapassar a doença?
Ao encontro do que foi mencionado atrás, e considerando a natureza da doença, que pode ter características muito distintas, com diferentes impactos imunitários, e exigindo o recurso a tratamentos com particulares tipologias e complexidades, é expectável que o doente se confronte com exigências várias, por períodos mais ou menos longos. Nesse sentido, contar com um suporte emocional sólido, durante um processo incerto e, por vezes, demorado, é de uma importância extrema.
Falando de efeitos secundários da quimioterapia, quão severos foram os seus sintomas e o que o mais surpreendeu pela negativa ao longo dos tratamentos?
Neste caso, tratando-se de uma leucemia aguda, o protocolo pressupunha, obrigatoriamente, ser submetido a vários ciclos de quimioterapia, com características distintas de ciclo para ciclo, por um intervalo de tempo considerável. Na verdade, receber a indução desse tratamento não produziu dor ou desconforto per si. A meu ver, o maior desafio das quimioterapias é o facto de as mesmas produzirem um efeito “destrutivo” sobre as células malignas mas também sobre todas as restantes, o que, no fundo, nos coloca numa posição de grande vulnerabilidade imunitária. O cansaço, a falta de energia, a indisposição, as febres e essa fragilidade perante qualquer vírus são características que a maior parte dos doentes oncológicos experiencia.
De que forma foi afectada a sua saúde mental ao longo deste processo? Isto é, conseguiu manter-se positivo em relação ao que estava a passar ou, por outro lado, sentiu que esta era uma grande injustiça que lhe tinha sido colocada nos braços?
Lidar com uma doença oncológica é um processo que tende a ser muito desafiante. E comigo não foi diferente. Enfrentar uma leucemia aguda, com as características da que me afectou, pressupôs lidar com um impacto emocional tremendo, trazendo à tona, principalmente, o medo e a incerteza. Do desfecho final e do processo em si. Porém, uma vez assimilada a notícia inicial, foquei-me no processo. Numa etapa de cada vez. No ultrapassar de cada dia, procurando alimentar-me bem, resguardar-me de contactos sociais, dormir para dar descanso ao corpo, e visualizar a minha recuperação. Mentalmente, imaginei-me a recuperar, a reencontrar aqueles que amo, e a celebrar.
Como se tivesse acontecido mesmo. E aconteceu!
Alguma vez temeu não recuperar?
Sim, temi. No início, o medo da finitude foi inevitável. Contudo, não me detive neste medo. Foquei-me no ultrapassar um dia de cada vez, sem dar espaço ao medo para crescer.
Seis meses após o início dos seus tratamentos, recebe a notícia de que entrou em remissão. Como é que essa notícia o fez sentir?
A felicidade que senti por estar a melhorar foi acontecendo, dia após dia. Não aconteceu como quem recebe uma boa nova, em determinado dia. Fui percebendo que o meu corpo estava a responder e a retomar a vitalidade natural. Acreditei que essa retoma significava vida.
Teme voltar a receber um diagnóstico como aquele que recebeu em 2010?
O medo de uma recaída faz parte de uma grande parte dos sobreviventes oncológicos. Também neste aspecto não sou diferente. No entanto, esse pensamento não me acompanha no meu quotidiano. Está no meu íntimo. Mas isso faz-me valorizar, agradecer, e viver com mais entusiasmo. Sei que a finitude pode estar mais perto do que se imagina e isso faz-me aproveitar cada dia, com consciência. Quanto à monitorização da minha doença, já é algo que acontece, regularmente, há 12 anos, sendo que agora sou avaliado de 6 em 6 meses.
De que forma se sente grato por ter passado por esta fase menos positiva da sua vida, e de que forma sente que consegue ajudar outras pessoas que estão a passar ou que já passaram pela mesma situação?
Sinto-me, profundamente, grato por ter superado o processo de tratamento e por estar vivo, saudável e consciente. E fazendo uso desse sentimento de gratidão, bem como de toda a aprendizagem e reflexão adquiridos ao longo do processo, aliado ao meu conhecimento técnico como psicólogo, tenho procurado ser um agente activo, na minha comunidade, na luta contra o cancro. Acredito, inclusivamente, que é parte de um propósito pessoal meu.
Considera que o processo de cura/tratamento de um cancro passa também por exercitar pensamentos positivos?
Acredito que cultivar pensamentos positivos tem impacto na forma como lidamos com a doença e com os processos de tratamento. Porém, importa reter que lidar com a doença oncológica não é um processo fácil, pelo que é expectável que possamos sentir medo, dúvida, raiva até. Vivemos numa era do culto ao positivismo e por vezes essa ideia traz resultados inversos ao pretendido.
Sendo a doença oncológica algo que desafia o nosso bem-estar e estado de saúde de uma forma complexa e a vários níveis, é absolutamente necessário que tenhamos a noção do desafio, que procuremos a ajuda clínica necessária, uma boa rede de suporte, e nos foquemos no nosso auto-cuidado. E aqui, trabalhar os pensamentos positivos pode ser importante.
Uma vez que esta é também uma oportunidade para falarmos de saúde mental, quão importante é para quem vive com uma doença oncológica receber apoio psicológico?
A meu ver, e num mundo ideal, todas as pessoas, e não só os doentes oncológicos e seus familiares, deveriam ter um fácil e rápido acesso a cuidados de saúde psicológica, sempre que necessitassem. Contudo, sabemos que, apesar dos progressos na rede de respostas de cuidados de saúde mental verificados a nível regional, estamos ainda longe dos cuidados ideais. No domínio da doença oncológica, e apesar do meritório trabalho das respostas públicas, bem como de entidades como a Liga Contra o Cancro, com representação regional, penso que haverá ainda algum caminho a percorrer, de forma a garantir um acompanhamento ainda mais amplo e consistente.
Considera que o Serviço Regional de Saúde tem uma rede de psicólogos com dimensão suficiente para dar conta de todos estes casos?
O Serviço Regional de Saúde tem vindo a aumentar o seu leque de profissionais e procurado investir na melhoria das suas equipas e respostas, sendo que ainda poderá, e deverá caminhar no sentido de aumentar e melhorar a sua capacidade de corresponder às necessidades dos doentes oncológicos e suas famílias.
Joana Medeiros
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