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FOLHETIM
@Norberto Ávila
FRENTE À CORTINA DE ENGANOS
Romance
Capítulo 6
“Vai ser uma bela, uma espectacular surpresa para os dois pombinhos!” assegurou Claudite Marlene, ligeiramente agitada. E Zebedeu Corujão, seu operador de imagem, mascou a pastilha elástica, de que se perdera já o gostinho a morango.
Era isto em Veneza, no aeroporto Marco Polo, no átrio em que muitas pessoas aguardavam passageiros de duas ou três proveniências.
Do voo da Alitalia n.º não-sei-quantos (que nem quero dar-me ao trabalho de investigar semelhantes insignificâncias) constava já a chegada no vasto quadro electrónico, aliás confirmada pelos altifalantes.
Estavam os dois colaboradores da nossa TV Planeta lado a lado, mesmo à frente da barreira metálica que sustinha os aguardantes. O plácido Corujão, câmara preparada, assente no ombro, mantinha-se atento às ordenações de Claudite, a qual, de microfone em punho, chamejava no seu decotado vestido cor de açafrão.
Junto à famigerada criadora e apresentadora do programa Amor com Amor se Paga perfilava-se uma menina de uns 5 ou 6 anos, que segurava, muito senhora do seu papel, um ramo de antúrios brancos e vermelhos. Eram para Sandra. Pois Claudite Marlene, minutos antes, comunicando num francês inábil com a mãe da pequena, havia pedido o favor da entrega daquelas flores a uma passageira, a seu tempo indicada. E a mãe, achando que seria um agradável divertimento para a sua Fiametta participar naquele apontamento de reportagem, de tão apaixonante significado, disse logo que sim, sem hesitar.
Mas eis que a espampanante Claudite, olho fixo na larga porta que vai despejando passageiros aos magotes, descobre finalmente Sandra, que vem agarradinha ao namorado. “É aquela, vestida de esmeralda,” faz saber a Zebedeu, que logo inicia a gravação. E transmite, nervosa, a informação à senhora italiana, que a transmite a Fiametta. Fiametta, ramo de antúrios em riste, avança para a jovem vestida de esmeralda. Mas Claudite apercebe-se de que aquele a quem a Sandra vem tão amorosamente atracada… não é – que brincadeira aquela! – o romanesco Marco Galisteu. Ao contrário de Marco, que é encorpado e moreno, este é um tanto esguio, esbelto e alourado.
“Estarei eu enganada?” murmura Claudite Marlene, um tudo-nada aturdida. Mas já Fiametta oferece o ramo de antúrios a uma Sandra jovial e risonha, por certo surpresa, que se curva para aceitar as flores e beijar a criança.
E Corujão a gravar o acontecimento, dando mostras de muito brio profissional.
“Porra!” soltou Claudite, abanando o microfone, que já tinha ligado, para registo daquele ambiente sonoro e posterior entrevista aos dois apaixonados lisbonenses.
“Pára, Zebedeu! Temos um barbicacho!”
E ele, interrompendo a captação de imagem: “Mas o que foi? O que se passa?”
“O Marco vem atrás, afinal. Vai ser preciso repetir. É aquele morenaço, de saco cinzento ao ombro.”
Saltitante, tornava já Fiametta ao encontro da mãe. Seguindo-lhe o trajecto, só então Sandra deu pela presença dos dois enviados da TV Planeta. Voltou-se logo para Marco, seu irmão, e advertiu: “Olha quem ali está! A Claudite Marlene! Em reportagem, pelos vistos!”
Marco e Bruno gargalharam gostosamente.
A repetição era inevitável. E assim, tendo Sandra apresentado Bruno Santiago aos dois repórteres da televisão, dizendo-o seu colega na Faculdade de Letras, o singelo ramo de antúrios voltou aos bracinhos de Fiametta, depois de Claudite haver justificado à mãe da pequena a duplicação do servicinho (e a boa senhora sem entender muito bem, mas sem pôr obstáculo).
Juntou-se Bruno, por um instante, à equipa de reportagem, enquanto Sandra e Marco retrocediam uns bons metros além da grande porta, que continuava a debitar grupinhos de passageiros. Regressaram enlaçados e sorridentes, cumprindo lindamente a enganosa função de apaixonados, para gáudio do auditório vastíssimo da TV Planeta.
Uma vez mais a inocente Fiametta se dirige a Sandra Galisteu, para a gentil oferta do raminho de antúrios. Uma vez mais recebe um beijo da jubilosa recém-chegada, tendo por inesperado complemento um apetitoso chocolate extraído dum bolso exterior do saco de viagem. Espontâneo, estou em crer, este último gesto de gratidão (a menos que suscitado por um desejo de agradar em pleno à numerosa audiência virtual).
Claudite Marlene, com a perspectiva dum animado, alegre passeio a Veneza, convencera o produtor do programa e o director da TV Planeta a deixá-la ir, levando por repórter de imagem o dito Corujão. Mas Marco e Sandra, a quem isso mais poderia interessar, não foram a tal respeito nem ouvidos nem achados. E ainda bem para Bruno Santiago, que de outro modo ter-se-ia talvez recusado a acompanhá-los. E ainda bem para os irmãos Galisteus, que assim poderiam dispor de um cicerone tão informado quanto divertido, óptimo conhecedor de Veneza e de toda a região do Véneto, já que por ali jornadeara várias vezes, por ocasião do Festival de Cinema, da Bienal e até do não menos famoso Carnaval.
Já nos primeiros momentos de convívio, após o apontamento de reportagem no aeroporto, Claudite Marlene confessara que ela e o seu câmara bem desejariam ter ficado instalados no Hotel Marconi, o mesmo em que a produção do programa havia reservado um quarto para os vencedores do concurso. Mas que a dita produção, vagarosa em resolver o assunto, já ali não achara lugar para mais duas pessoas (quartos individuais, naturalmente), pelo que, embora a contragosto, tiveram de contentar-se com o Hotel Paganelli, muito simpático, aliás.
“Pois eu, esclareceu Bruno, “logo que a Sandra me deu a notícia deste prémio e consequente viagem a Veneza, com o Marco, senti muitíssima vontade de os acompanhar. Mas, a bem dizer, nem cheguei a manifestar esse desejo. De imediato um e outro , com uma simples troca de olhares, se puseram de acordo quanto a um convite para esta digressão. De modo que, por intermédio da nossa agência de viagens – o meu pai é proprietário da Agência Santiago – tratei logo de assegurar o bilhete de avião, no mesmo voo, e o alojamento, no mesmo hotel.”
“Estranho par é este de Marco e Sandra,” pensou Claudite Marlene. “Se haviam de preferir estar a sós nesta cidade fantástica, belíssima e única, optam pela presença de um intruso (que não parece mau tipo, diga-se a verdade…)”.
Foi então que Sandra achou de justiça esclarecer que Bruno Santiago, se aceitara com todo o entusiasmo aquela oportunidade invulgar, fizera questão de custear todas as suas despesas: viagens, alojamento, comidas…
A expressão “com todo o entusiasmo” ficara a remoer no espírito de Claudite, ao qual acudiu, repetidas vezes, a imagem daquele desemboque da rapariga no átrio do aeroporto, tão agarradinha a um presumível companheiro adventício, caído do céu aos trambolhões (como se costuma dizer). E quanto a Marco… a parte menos brilhante que lhe cabia do prémio televisivo… era a de vir agora muito em segundo plano, alguns passos atrás, desacompanhado. Surpreendente situação, caramba, que convinha esclarecer o mais cedo possível.
Questionavam-se ainda sobre o meio de transporte que mais lhes conviria tomar para a cidade. O barco amarelado puxante a creme, que metia passageiros no embarcadouro toldado de branco, era, na opinião de Bruno Santiago, suficientemente cómodo. E o percurso não levava mais de uma hora.
“Qual o quê!” opôs-se a Marlene ‘Dia-triste’ (como em privado a alcunhavam os colegas da TV Planeta). “Essa experiência fizemos nós ontem: o Corujão e eu, quando chegámos. Mas há bocado, de Veneza para aqui, tomámos um táxi. Aquático, já se vê.”
“Muito bem,” concordou o rapaz.
“E, depois desta viagem de avião: Lisboa-Roma; Roma-Veneza,” arrazoava ainda a repórter, “é natural que estejam desejosos de chegar ao hotel, tratar minimamente da instalação e gozar então o resto da tarde em passeios ou visitas a combinar.”
De qualquer modo, sempre eram 5 pessoas, e Claudite estava muito autorizada a efectuar despesas daquele género, de que depois seria reembolsada. Entraram então para um táxi aquático, barquito de madeira polida, com sua cabina envidraçada. O motorista, homem de uns sessenta e tal anos bem dispostos, acudiu a recolher as poucas bagagens e a câmara de TV de Corujão.
Iniciado o trajecto, depois de Bruno ter informado o taxista de que o destino era o Hotel Marconi, Claudite foi despejando umas impressões da viagem que fizera na véspera, com Zebedeu Corujão: voo TAP até Milão e transbordo Alitalia para Veneza.
“Poderíamos entrar na cidade magnífica pelo Rio dei Gesuiti, que vai desembocar no Canal Grande,” disse Bruno, “e sair na Ponte do Rialto. O Hotel Marconi é mesmo ali ao lado, na Riva del Vin.” Mas considerava melhor: “No entanto, atendendo a que a Sandra e o Marco não conhecem Veneza, e a Claudite e o Corujão só ontem puseram a vista em cima da Rainha do Adriático (e seja-me permitido o lugar comum) seria pena não fazermos como deve ser a aproximação do local incomparável: pelo lado da Praça de San Marco.”
Claudite e Corujão desencadearam comentários entusiásticos, satisfeitíssimos como estavam com o encantador panorama que já podiam gozar das janelas do Hotel Paganelli, esplendidamente implantado na Riva degli Schiavoni: a ampla bacia de ondas mansas e o opulento aglomerado arquitectónico de San Giorgio Maggiore.
E, havendo os outros concordado com aquela proposta, tão reveladora de sensatez e de amáveis intenções, Bruno deu indicação nesse sentido ao prazenteiro motorista.
Uns minutos passados, perfilava-se-lhes ao lado esquerdo um vulto insular.
“Essa ilha rasteira, agachadinha,” esclareceu Santiago, “ou talvez melhor: esse grupo de ilhotas ligadas por umas pontes, é Murano, a dos vidros mundialmente famosos. Havemos de lá ir, se tiverem disposição para isso. Tanto mais que a Basílica de Santa Maria e São Donato é digna duma visita.”
Claudite e Corujão continuaram a descrevinhar a experiência da véspera. Haviam jantado numa esplanada aberta sobre a laguna. Ela decidira-se por um fígado à veneziana (de cebolada, digamos assim); ele optara por spaghetti alle Vangole (com moluscos e molho de pimentão). E o vinho acompanhante era um Bianco di Custoza, ‘super Soave’. Mas ela recolhera-se relativamente cedo. Estava um pouco cansada. Corujão ainda dera umas voltas por uns bares…
O táxi passava entretanto à ilharga de San Michele, a ilha em que – elucidava Bruno, o atento cicerone – jaziam algumas celebridades das Letras e das Artes: um Diaghilev, um Ezra Pound, um Stravinski…
Finalmente, acercando-se da prodigiosa capital, o barquinho atravessou o bairro do Castello, entrando pelo canal (rio na designação local) de Santa Giustina, continuou pelos de San Agostin e della Pietá, até desembocar no amplo Canal de San Marco, mesmo em plena Riva degli Schiavoni.
E Claudite Marlene não resistiu a apontar, com exuberância de gestos, chocalhando pulseiras e braceletes, o edifício de maior relevância logística naquele momento: o Hotel Paganelli!, (seu local de hospedagem).
Foi então que Bruno se lembrou de pedir ao taxista que delineasse uma larga volta, até muito próximo da ilha de San Giorgio Maggiore, e só depois, rumando à Punta de la Dogana, iniciasse a subida do Canal Grande. Isto para que aqueles seus amigos pudessem ver, a uma razoável distância, o Palácio dos Doges no seu deslumbrante envolvimento. E assim se fez.
Mas, perante os elogios de Sandra e de Marco, perguntou-lhes Claudite Marlene: “ Não querem vocês, por agora, ficar ali na Riva degli Schiavoni e seguir logo à noite para o hotel que lhes está destinado? É que poderíamos jantar todos juntos, numa esplanada das redondezas, contemplando o entardecer, que é lindíssimo!” – e patenteava postais avermelhados de que já se havia fornecido, para saudar os parentes e os amigos e os colegas da TV Planeta.
Marco, porém, era de opinião contrária: “O melhor, creio eu, é seguir já para o Marconi. Deixar as bagagens, tomar um duche e voltar então para esta zona.”
Sandra e Bruno concordaram inteiramente. Pelo que o motorista do barco, apercebendo-se disso, não hesitou manter-se fiel às indicações recebidas.
Iniciaram portanto a descansada subida do Canal Grande. Um mapa turístico, que Sandra levava aberto sobre os joelhos, representava-o como um vigoroso S transtornado (a haste superior virada à esquerda), magnânimo curso de água servidor dos cinco bairros venezianos, na extensão de uns quatro quilómetros.
“Muito embora cada um seja livre de olhar e apreciar prioritariamente o que muito bem entender,” disse Bruno Santiago, “aconselho-os a, nesta ida para o Rialto, privilegiarem o que se nos for deparando ao lado esquerdo. Essa igreja branca, octogonal, é Santa Maria della Salute. Construída para comemorar o fim da peste de 1630, assenta, segundo os entendidos, em mais de um milhão de estacas de madeira.”
“Em estacas de madeira?!” assombrou-se Claudite Marlene.
“Sim! Tudo isso, aliás: da mais pequena casa ao maior dos palácios! Explicar-lhe-ei a técnica durante o jantar.” E prosseguiu: “Nesse palácio inacabado do século XVIII (era para ter 4 andares mas não passou do rés-do-chão) está instalada a importantíssima colecção de arte moderna da milionária americana Peggy Guggenheim. Podemos lá ir, se assim o entenderem.”
Porfiava o desfile de aparatosos palácios e palacetes. Passavam já sob a ponte da Accademia, junto da qual assenta um agregado de velhos edifícios religiosos – a Accademia – onde se guarda a mais preciosa colecção de pintura veneziana.
“E aí temos agora a Ca’ Rezzonico,” indicou o incansável cicerone, “exemplo notável de arquitectura do século XVIII. Tanto que se tornou um excelente museu da Veneza setecentista. Foi durante algum tempo residência do poeta inglês Robert Browning.”
“O que casou com Elizabeth Barrett?” perguntou quase afirmativamente Sandra Galisteu.
“Exacto,” confirmou o colega. “Autora dos tão celebrados Sonnets from the Portuguese.” E, num inglês impecável, muito univertsitário, voltando-se para Sandra, debitou, avulso, um verso inicial:
How do I love thee? Let me count the ways.”
“Este rapaz é um poço de conhecimento!” exclamou Claudite Marlene.
“E já agora, em maré de celebridades aqui residentes,” acrescentou Santiago, “estoutro palácio (Giustinian) acolheu Richard Wagner em 1858-59, quando ele compunha a ópera Tristão e Isolda.”
Muito mais impressionante porém era a formosíssima fachada do Palácio Foscari, harmonioso e deslumbrativo exemplo do gótico veneziano do século XV, com seus rendilhados balcões de pedra da Ístria.
Depois, já na chamada Volta del Canal, Bruno acho digno de referência o Palácio Balbi, sede do governo regional, de onde o ocupante Napoleão Bonaparte (diabos o levassem!) assistira a uma regata. “Esquece!” disse Marco.
Bruno então, vendo aproximar-se a Riva del Vin, deixou passar sem menção dois ou três edifícios ainda mencionáveis. “E aí temos a Ponte do Rialto, que veremos depois com mais vagar.”
Um pouco antes, à direita, avançava alguns metros o embarcadouro do Rialto, de onde precisamente desencostava um vaporetto carregado de gente variegada, mescla bem doseada de venezianos e turistas. Na outra margem, mesmo em frente, era a Riva del Vin, para a qual o velho motorista fez rumar o táxi aquático.
Prezando muito os bons ofícios de Bruno Santiago, quis Claudite Marlene saber quanto devia a TV Planeta por aquela deslocação. E satisfez a despesa com alguma liberalidade. Mas pediu um pequeno documento justificativo, como é natural.
Um após outro, lá foram saltitando para os degraus daquela plataforma de desembarque os visitantes portugueses. Passavam as bagagens de mão em mão. Sandra Galisteu sentia-se distinguida e realçada, portadora que era daqueles anturiozinhos de estufa.
A Riva del Vin (o cais onde em tempos remotos se procedia à descarga dos vinhos) era, no dizer de Santiago, um local bem privilegiado de Veneza, pelo seu passeio público aberto sobre o Canal Grande e tão vizinho da famigerada, originalíssima Ponte do Rialto. Por entre velhos candeeiros de ferro fundido, com seus altaneiros globos facetados, seguiam mesas cobertas de rosa e marfim, a que se sentavam inúmeros naturais e estrangeiros. E isto quase sempre ao abrigo de sucessivos toldos de lona, em tons de cobalto e verde-mar.
Aos nossos personagens não se afigurava o Marconi hotel de grande vulto. E dispunha até de poucos quartos (26, segundo o guia turístico que Bruno oferecera à Sandra, que também informava ser o pequeno edifício um palazzo do século XVI), e, desses quartos, apenas uma mínima parte teria vista para o Canal. Era um edifício modesto, sim, cor de canela. Tinha no 1.º andar uma varanda corrida, com três janelas amplamente envidraçadas, de arco de volta inteira, por cima das quais se declarava o nome do estabelecimento. Os dois restantes andares dispunham cada um de três janelas de peitoril, comezinhas, com suas persianas de um castanho muito escuro.
Entraram todos, e os novos hóspedes logo trataram de enunciar a sua comparência. Bruno Santiago saudou a recepcionista, que era morena e mais que simpática: insinuante. Entregou-lhe a garantia de locação (vulgo voucher e, após o preenchimento das fichas, recebeu as chaves e os cartões de hospedagem.
Claudite e Corujão subiram também, a dar uma espreita às instalações, que acharam bastante razoáveis, sendo o quarto duplo no 2.º andar e o individual no 3.º.
À fértil e lasciva imaginação de Claudite Marlene afluiram logo as nocturnas sombras de Marco e Sandra, no leito amplo, muito abrangidos e apertados.
“Também tiveram sorte,” opinou a Marlene ao seu câmara, descendo ambos a escada estreita.
“Mesmo num hotel (não digo já na residência de todos os dias, que aí então…), não há nada como uma janela aberta para um sítio agradável à vista.”
Concordou Corujão. E, ruminando a sua pastilha elástica, desta vez com gostinho a framboesa, seguiu-lhe os passos, para a saída.
A luz da meia-tarde, macia e transparente, caindo preguiçosa sobre o Cais do Vinho, convocava-os a um instante de repouso numa esplanada próxima. E por ali se quedaram, por conseguinte, aguardando os três jovens. Mandou cada um vir o seu café espresso. A espiritada repórter, procurando asserenar-se, tirou da bolsa de camurça uma dúzia de postais venezianos. Consultava depois uma agenda pequenina, em que criteriosamente ia selectando os destinatários e respectivas moradas, escolhendo então a imagem mais adequada a cada qual. Zebedeu extraiu do bolso do casaco uma obrinha famosa de Thomas Mann: Morte em Veneza, cuja leitura, iniciada na véspera, durante a viagem, retomou em silêncio.
* * *
Havia sobre a provecta mesa de mogno uma jarra de vidro opaco, em tons de vermelho e laranja, acabaçada e modernaça, em que a jubilosa Sandra Galisteu, depois de ir por água à casa de banho, depositou e ajeitou os antúrios.
Enquanto isso, Bruno, a seu lado, demandando-lhe com o braço direito a cintura fina, enlaçava-a suavemente, num prelúdio de carícias de que resultaram amplexos fortes e beijos incendiados.
“Então, minha esmeralda mais que preciosa,” perscrutava o jovem enamorado, “feliz com este nosso encontro na mítica, fabulosa cidade mediterrânea?”
“Louca de alegria, meu diamante de primeira água.”
“Bem talhado, facetado e polido seja eu por essas tuas mãos… tão sabiamente… tão audaciosamente… tão avidamente prospectoras…” E abandonava-se àquela onda de entusiasmo erótico. Súbito, porém, despertou para a realidade mais premente: “Não podemos, minha querida, fazer aguardar os zelosos repórteres da TV Planeta. Cada coisa a seu tempo – como diria D. Teodósio, Bispo resignatário de… Saibamos, portanto, esperar pela noite. Que ainda vem longe. Vamos ao nosso duche.”
“Em comum?”
“E então? Não te parece bem?”
“E quais serão as vantagens?, não me dizes?”
Ele fingiu-se então atrapalhado e argumentou: “Poupar água ao Hotel Marconi, bem se compreende.”
Duche em comum, por consequência. Mas aqui para nós, meu caro leitor, de boas intenções… (lá diz o provérbio). Não houve qualquer ‘poupança’ de água, que, muito pelo contrário, copiosa e cascateante, se despenhou sobre dois corpos esplendorosamente desnudados, por uns minutos largos, numa duchada cuja duração se evidenciou muito superior à de dois banhos sucessivos em circunstâncias menos excitantes.
Deixemos-lhes ainda o tempo de se enxugarem (e massajarem?) mutuamente e vestirem roupas mais leves, favoráveis a quem tem perspectiva imediata de umas quatro ou cinco horas de deambulação, por tão diversos lugares.
Subamos entretanto ao andar superior e, com maior precisão, entremos no quarto individual que Marco de muito boa vontade se predispôs a aceitar, nas suas amistosas negociações com a Sandra e o Bruno.
O jovem Galisteu tomou já o seu duche quase frio (pois mantinha esse hábito quer de Verão quer de Inverno) e, havendo enfiado uns calções castanhos e uma camisa cor de alface, ambas as peças de boa marca francesa, chegou-se à janela aberta de par em par. Pois não tardou em decifrar os da TV Planeta, amesendados a um cantinho da esplanada. Ora, que aguardassem um instante. De qualquer modo, era certo e sabido que os dois namoradinhos, Bruno e Sandra, demorariam ainda alguns minutos. Só então, deixando cair o olhar verticalmente, descobriu na janela mesmo por baixo situada, uma voluminosa cabeleira, muito loura, que veio a revelar-se feminina. Naquele extremo do corredor, quarto correlativo ou equivalente ao dele; portanto individual.
Era moça ainda a hospedada. Marco atribuiu-lhe uns 25 anos, no máximo. O braço nu, de pele clara um tanto rosada, saiu do peitoril e adiantou-se duas ou três vezes, para deixar cair umas migalhinhas de pão a uns pardais buliçosos na varanda corrida do 1.º andar. A inglesa (americana, alemã, suíça ou lá o que fosse) acabou por recolher-se. Outro tanto fez Marco, que ainda voltou a consultar o espelho da casa de banho, frente ao qual reajeitou o cabelo escuro e pesado, que trazia solto. Terminou com borrifar, moderadamente, a nuca e o colarinho com um perfume discreto. (Os catalães – Agua Brava e quejandos – eram os seus preferidos.)
Continua….

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