LEMBRAR JOSE MARTINS GARCIA

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JOSÉ MARTINS GARCIA
(17.02.1941 – 03.11.2002)
[Monte Brabo: do tempo cíclico (e dos rituais) à chegada da História]
(…)
Francisco Gonçalves cresceu sobre um mundo que da mudança só conhecia a Morte (começo de outra vida, provavelmente paralela à de cá de baixo). O Ano Novo não era um novo ano; era uma cantoria igual à de todos os anos. Todos os anos se matava o porco, o mesmo porco. Todos os anos nascia o mesmo Menino Jesus depois das mesmas novenas. E todos os anos, sem esperança de escapar ao destino, o Menino nascia, ia ao Templo dar uma lição aos doutores (e os mesmos doutores nunca aprendiam a lição; estavam sempre em estado de ignorância e o Menino ensinava-lhes inutilmente lição de sempre), pregava, aturava o Demónio e suas tentações, era vendido por Judas, negado por Pedro e morria na cruz, entre dois ladrões. E não havia emenda para tamanho desconcerto. Todos os anos se semeava o mesmo milho (meu pai contava os mesmos causos quando, na casa velha, a pirâmide das maçarocas começava a esborralhar-se), se rapavam as mesmas vinhas , se sulfatavam as mesmas folhas, se desfolhava a mesma parreira, se colhia e moía o mesmo bago, se provava o mesmo mosto, se fervia o mesmo no mesmo balseiro, se tirava o vinho novo que repetia o vinho de sempre, se destilava o mesmo bagaço, a mesma aguardente, se bailava a mesma chamarrita, se tosquiava a mesma ovelha, se ajuntava o gado no mesmo Setembro… e tudo sempre em ciclo e em círculo até que Deus viesse com o ponto final.
(,,,)
Nesse tempo, [eu]só podia arriscar a seguinte ilação: quando um filho não quer lavar os pés na selha dos antepassados é porque se rompeu algo no seio da sociedade.
Contagiado pela sátira (em vez de sentir ódio ou desprezo), viria a concluir: a rejeição da selha dos pés significava a chegada da História e, com ela, a luta de classes.»
(Excertos do CAPÍTULO XI)
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