“ZEITGEIST”
Escrevi e publiquei este poema há uns 25 anos, no início da onda moralista e proibicionista que hoje parece dominar o mundo – e cujo sinal mais
recente consiste nesta lei que nos irá roubar o prazer de fumar um cigarro numa esplanada. O poema é de 1997 ou 98 e talvez esteja datado aqui ou ali, mas mantém alguma actualidade. Partilho-o sem mais comentários:
ZEITGEIST
Os meus contemporâneos falam muito
e dizem: “Então é assim”
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.
// Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios onde, às escuras
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança “propostas” decisivas
e percorre as “vertentes” de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, para conservarem
o equilíbrio físico e mental.
// Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz:
proíbem o tabaco e o açúcar
e se estão tristes tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos de segurança.
// Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
“tropeço de ternura”, queria ser
pelo menos tão ingénuo como eles,
partilhar cada frémito das bocas,
a labareda vã das gargalhadas
pela madrugada fora. No entanto,
assedia-me a acédia de ficar
assim, mais preguiçoso que um Oblomov
à escala portuguesa – ó doce anestesia
a invadir-me o corpo, a libertar-me
desse feitiço a que se chama o “espírito
do tempo” em que vivemos, sob escombros
de um céu desmoronado em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
à flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação “save”
e assim alcançarem a eternidade.