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11 m

A CAUSA DAS COISAS
via: Luís Maria Gottschalk
«O meu pai está num lar de idosos, no Porto, há praticamente 11 anos. Tem demência de Alzheimer. Está doente há 20 anos. Estava comigo diariamente, duas vezes por dia (na minha hora de almoço e no fim do dia). Tirava-o do lar aos fins de semana e feriados. Sempre lhe proporcionei um simulacro de vida. Não fala, não vê e não tem mobilidade. Era eu que o mantinha “vivo”.
O primeiro parágrafo desta crónica é o parágrafo final de uma mensagem que recebi e à qual também roubei o título. Retrata bem o desespero de quem vê o pai morto em vida.
Desde março que em muitos lares, e seguindo as recomendações da DGS, os velhos vivem em reclusão. Não podem sair. Se saírem, nem que seja para ir ao médico, são condenados a um isolamento de duas semanas. As visitas que recebem são muito restritas, espaçadas e à distância. Todas estas regras são cruéis e, algumas delas, absurdas. Como é que alguém pode negar a um doente de Alzheimer profundo e cego o contacto físico com a filha? É mais do que conhecida a importância do tato para estes doentes. Qual é o problema de lhe dar a mão e depois desinfetá-la? Aumenta assim tanto o risco? Que estudos científicos demonstram a necessidade desta desumanidade?
Todos sabemos que não é um assunto fácil. Ao contrário do que se passa nas escolas, a população aqui servida é vulnerável à covid-19. Mas, em algum momento, temos de exigir uma análise custo-benefício. Estas regras evitaram surtos em dezenas de lares? Como sabemos, a resposta é não, pelo que devemos questionar quais os benefícios de continuarmos com a mesma política que tantas vezes falhou. Do lado dos custos, alguém duvida dos enormes custos para a saúde mental e física das pessoas que vivem nos lares? E dos enormes custos para a saúde mental dos seus familiares?
Bem sei que em Portugal andam todos convencidos de que os velhos em lares foram abandonados pelas famílias, que deles não querem saber. É verdade em muitos casos, com certeza, mas é falso em muitos outros. A muitas famílias não resta outra alternativa que não esta. E essas famílias sofrem com as regras que a DGS impõe.
Sempre que escrevo ou falo sobre isto, uma amiga pergunta-me que solução tenho. Não tenho resposta imediata, porque a minha primeira pergunta é aquela que já fiz muitas vezes: isto é para manter até quando? Estamos há seis meses com estas regras. Qual o limite temporal? A partir de que momento vamos considerar, enquanto sociedade, que é uma solução insustentável?
Claro que não tenho uma resposta fácil. Mas tenho uma pergunta. Quando é que deixamos de tratar os velhinhos como crian­cinhas e lhes pedimos a opinião? Bem sei que este argumento é extremo, mas vale a pena segui-lo. Se aprovámos uma lei que legaliza a eutanásia, ou seja, se consideramos que alguém, no seu espaço de liberdade, tem o direito de não só morrer como de pedir ajuda para morrer, que autoridade temos para negar aos velhos o direito de escolherem os riscos que querem correr?
Conheço o contra-argumento. A decisão não pode ser totalmente individual, porque um contaminado representa um risco para os outros. Alguém que aceite correr mais riscos também está a arriscar a vida de outros, que podem não ter optado por isso. O argumento é válido, naturalmente. Mas é incompleto, porque os outros também podem estar dispostos a correr esses riscos. Para o sabermos temos de lhes perguntar.
Podemos criar, por exemplo, dois conjuntos de regras — um bastante estrito, como o atual, e outro mais flexível (não se confunda com ausência de regras) — e perguntar a cada utente do lar (ou um seu representante, em caso de incapacidade) qual prefere. É assim tão estranho isto de perguntar às pessoas quais os riscos que aceitam correr? Se calhar, em Portugal é. Mas não devia ser. A partir daí, atua-se, respeitando as escolhas de cada um. Se, por exemplo, 80% dos velhos num lar preferirem uma solução mais flexível, apenas será necessário encontrar uma alternativa para os 20% que exigem regras mais estritas. Em alguns lares, será possível juntá-los numa ala à parte. Noutros, poderá ser diferente. Podemos até pensar numa reafetação de utentes, juntando os que preferem regras mais estritas nuns lares e os restantes noutros. Em algumas situações, em algumas localidades, talvez não haja uma solução satisfatória. Até lhes perguntarmos o que preferem, porém, não podemos sequer tentar encontrar uma resposta que os respeite.
Claro que fazer isto é muito difícil em Portugal. Especialmente no ambiente em que vivemos, em que tantos julgam saber o que é melhor para os outros e acham que é a sua missão impor a sua vontade.»
LUÍS AGUIAR-CONRARIA
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