Julio Machado Vaz OS ANOS 60 NO PORTO

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Bom dia! Na Sexta, alguns de vocês pediram que publicasse o texto que saiu no Público sobre os (meus) anos sessenta no Porto. Não achei correcto fazê-lo de imediato, sabemos as dificuldades por que passa a imprensa escrita e o naco de prosa era para assinantes. Dois dias volvidos parece-me que a publicação é já pacífica. Aproveito para agradecer ao David Pontes a confiança depositada nesta velha esferográfica 🙂.
Era uma vez…
O rapazito, esbaforido, navega Rua da Alegria abaixo, em busca do casamento impossível entre o fim das aulas em dois colégios: o João de Deus e o Nossa Senhora da Esperança. A garota demonstra-lhe o afecto cúmplice – que já decretou amor! – com um lento e suave deslizar pelos corredores que desaguam no Jardim de São Lázaro. E de novo o milagre os visita e recompensa!, ei-lo encostado ao muro, corpo esgotado rejuvenescido por olhos brilhantes hpnotizados pela silhueta dela, que a coberto de colegas, gargalhadas e segredos juvenis, o afaga com sorriso furtivo e grato, “vieste”.
Ela vira à direita e ele à esquerda, dois navegares que resistem à passadeira tentadora, é imperioso garder la mesure. As professoras têm por hábito chamar ao quadro as alunas que exibem os namorados, quem sabe?, talvez por lhes recordarem os seus, desaparecidos em parte incerta ou transformados em maridos certinhos e enfadonhos.
Esquina dobrada, a Biblioteca testemunha abordagem de pirata pouco ambicioso no saque, a mão dela bem apertada lhe chega. Em dias de festa acontece um beijo roubado/exigido no Campo 24 de Agosto, mas solitário, a desejada segunda revolução liberal – mais nos costumes do que na política… – teima em não aparecer. E de novo a rua os separa, Santos Pousada não o faria, mas já morreu, as mãos acenam, os olhos insistem no abraço, já é azar!, a garota mora perto do Colégio.
Eu morava ali pertinho, em Anselmo Braancamp, cresci a jogar a trapeira com os putos que viviam nas “ilhas”, onde o dinheiro não abundava, mas sempre havia lugar para mais um à mesa. Aos nossos nomes juntava-se, qual apelido, a profissão do pai, eu ombreava com o filho do polícia, do homem do talho, etc, mas o inverso não era verdadeiro, fui sempre o filho da Clarinha, os tripeiros de gema não esqueciam quem cantara a Costureirinha da Sé. E o contraste entre as dificuldades que se lhes deparavam no quotidiano e o relativo desafogo em que vivia fez nascer e alimentou o meu horror às generalizações, elas afastam-nos da vida real, arrogam-se o direito de falar por todos e esmagam as diferenças que esculpem as identidades.
Daí o aviso à abençoada navegação da leitura – falo por mim e mais ninguém. Sou um filho da média burguesia portuense que recorda uma adolescência vivida na mítica década de sessenta. Tão mítica que, ao longo dos anos, os alunos me pediam para dela falar e da tão decantada revolução sexual. Embaraçado por lhes destruir as idealizações, respondia que o Porto não era Londres – o desejo estava lá, aguilhoante, mas obrigado a voar baixinho, não faltavam radares implacáveis. Mais do que a liberdade erótica, as duas cidades partilhavam uma húmida obsessão pelo nevoeiro!
Tomemos os bailes de garagem, que nem sempre aí aconteciam. Parece impossível existirem dúvidas sobre o que acontecia, bailar é sinónimo de corpos entrelaçados, mesmo quando por momentos separados é para melhor se desafiarem, “por que esperas para de novo me abraçar?” De acordo, mas há laços mais lassos do que outros, e por boas (?) razões. Desde logo porque os pais do anfitrião faziam aparições relâmpago, uns a pretexto de evitar o desmaio dos refrigerantes e das sanduíches, outros sem esconderem a intenção de assegurar que a moral judaico-cristã não corria perigo em suas casas.
Por receio desses, dos que em casa as esperavam ou por decisão própria, não era raro que as mãos das raparigas trocassem as nossas costas pelas clavículas, numa teimosia fronteiriça que impedia o roçagar dos corpos. Decidir se tal atitude era irreversível ou apenas a recusa de galgar degraus rumo a maior intimidade implicava uma sensibilidade apurada. E portanto considerada monopólio dos mais velhos, que arengavam às massas em reuniões ansiosas nos quartos de banho e redistribuíam os pares do alto da sua experiência. Mais proclamada do que vivida, muitos ainda ignoravam que as raparigas eram seduzidas pelos rapazes a quem já tinham decidido conceder tal privilégio. Se o baile corria bem, a mão que nos mantivera à distância aflorava-nos o pescoço, seguida por faces que se encostavam às nossas. Miseráveis cópias de Fred Astaire, eis-nos dançando cheek to cheek!
Longa nota de rodapé. Inserida no texto, pois de habitar rodapés se fartaram as mulheres ao longo da História – a descrição feita dos bailes da garagem parece confirmar estereótipo refastelado na evidência, os futuros machos alfa pressionando raparigas que por natureza eram mais passivas e alheias ao desejo, cediam afago a afago, beijo a beijo, centímetro a centímetro e acabavam por se acender por amoroso contágio. Não era verdade e aqui e ali havia um espasmo de protesto que se fazia ouvir.
Literalmente…Um dia, à boleia de absoluta falta de ética, alguém teve a ideia de esconder um gravador no quarto onde as raparigas se reuniam, retocavam a maquilhagem, pediam a opinião do espelho. O resultado foi assustador, o mundo entretinha-se a fazer o pino. Algumas tagarelavam no vernáculo portuense que esbugalha olhos, ouvidos e preconceitos dos que não conhecem a Invicta; outras desesperavam com a cegueira dos rapazes, que não percebiam sinais de repulsa ou encorajamento; para cúmulo, havia quem pusesse em causa a masculinidade dos parceiros, apoiando-se em critérios fisiológicos! Depois de momentos de estupor gélido e minutos de acesa discussão a diabólica fita mergulhou na chama de um isqueiro e o mundo voltou a obedecer à Ordem Divina. Ou pelo menos à versão distribuída pelos seus intérpretes, a Religião e a Medicina – homens pelas hormonas inflamados seduziam mulheres exibindo um recato “natural”.
Mas…, e os namoros consentidos; oficiais; em princípio destinados a perdurar no futuro? Os espartilhos continuavam a existir. Quem entrava em casa de quem? Que pais conheciam outros pais? Que podia o casal fazer em dueto a solo? E que pedidos eram aceites, mas implicavam liberdade condicional, do autocarro que parava na esquina da capela das Almas explodia apenas a nossa namorada ou, majestosa, descia também os degraus a mãe, pronta para o inevitável passeio por Santa Catarina, vulgo, o picadeiro?
As saídas em grupo gozavam de um estatuto particular, em geral o bando partia em liberdade, fosse para um passeio pela praia ou para uma ida ao cinema. E de novo o desejo se esgueirava por entre as grades, habitando dunas que escondiam breves festins ou provocando corridas aos bilhetes das últimas filas da sala ou mesmo dos camarotes. Filmes havia que jamais poderiam ter sido contados ao jantar, o desmaio das luzes era demasiado precioso, no escuro se matava alguma daquela sede inexperiente, a educação cinéfila podia esperar.
A entrada na universidade introduziu variáveis novas. Mas o início, pelo menos no meu caso, ainda vivia paredes meias com a segregação da adolescência. Na primeira aula o anfiteatro apresentou-se penteado com risco ao meio, rapazes e raparigas olhavam-se de frente – o que costuma ser louvável – mas também de longe, o primeiro a navegar aquele mar de saias despertou olhares de invejosa admiração.
E contudo as regras tinham mudado. Uns mudavam de cidade sem receio de chamadas pelo facetime, outros ficavam, mas livres de gozar longos dias sem controlo parental e com apetitosas aulas não obrigatórias. O Piolho tornou-se a Meca de todas as peregrinações, embora, pela distância a que ficava Faculdade de Medicina, os futuros clínicos fossem obrigados a maior demonstração de fé. Alguns tiravam a carta de condução e pediam os carros emprestados aos pais, a Queima dilatava as noites, a proximidade de exames para os quais pouco se tinha estudado servia de justificação às raparigas para frases que começavam por “posso dormir hoje em casa da…”. A ida à discoteca era difícil, mas não impossível, à beira-Douro havia carros estacionados, às vezes com camisolas servindo de parede improvisada, namorava-se nos bancos da frente e de trás.
Para uns quantos, a solução artesanal era vista como paleolítica, tinham chegado à Universidade os primeiros colegas brasileiros que ciciavam a palavra mágica – apartamento. E ao abrigo da comunhão da Língua dava-se a dos corpos, amando-se devagar e urgentemente, como escreveria o Chico vinte anos depois. No fim da década, a crise académica de 69 dividiu os estudantes, uns pedindo a abolição da Queima em solidariedade com os colegas de Coimbra, outras defendendo-a com unhas e dentes, amizades houve que só ressuscitaram anos depois. Mas algumas das palavras de ordem do Maio de 68 tentavam quase todos, era difícil esconjurar um apelo tão prometedor como “a imaginação ao poder”. Ela não chegou lá – e de lá continua arredia… -, mas havia um brilhozinho nos olhos de muita gente e a talentosa culpa ainda não era do hino do Sérgio.
Essa geração bateu de frente com a guerra colonial. E em tempos de sair de casa para outra casa, de juntar família própria à de origem, sem parênteses rectos ou sinuosos que permitissem explorar mais vida, a escolha de muitos foi casar antes e cedo. Só em função da guerra? Não, o olhar social mantinha-se atento, sobretudo às mulheres, perdi a conta às que me disseram em consulta “percebo hoje que me casei para ter mais liberdade”. Algumas acrescentando um “afinal…” que deixava adivinhar a narrativa que se seguia.
Penso-nos, mais de cinquenta anos volvidos, e não é a frase de Nizan que me ocorre, “eu tinha vinte anos, não consentirei que ninguém diga que é a idade mais bela da vida”. Seria histriónico; mentiroso; ingrato. As boas recordações fazem fila: a primeira canção dos Beatles, ouvida num gira-discos roufenho, mas que mudou as as nossas vidas; o primeiro beijo, que estupidamente continuamos a desconsiderar por confundirmos relação sexual e coito; os erotizados desgostos de amor adolescentes, que García Marquez tão bem descreve em O Amor nos Tempos de Cólera; a exaltação medrosa na altura de, em 69, levantar a mão e votar se saíamos nós ou entrava a polícia e a alegria de verificar que a rapariga/mulher a nosso lado erguia um braço, mas nos rodeava a cintura com o outro; o Douro, majestoso, liberto dos últimos fiapos de nevoeiro; o desejo do país mais justo exigido por Sophia.
E murmurar hoje, como então sem o conhecer, o verso que o Eugénio publicaria em 72 – “Assim é o amor: mortal e navegável”.
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