JOSE LUIS PEIXOTO Portugal, o país do sol morninho junho 2013

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  • Em junho, a convite do Le Monde Diplomatique, escrevi este texto para a secção “Un écrivain, un pays”. Penso que continua actual. Ler aqui o original português:http://pt.mondediplo.com/spip.php?article966

    Um escritor, um país

    Portugal, o país do sol morninho

    (arquivo: Junho de 2013)

    por José Luís Peixoto

    Passagem do tempo de trabalho de 35 para 40 horas, aumento da idade de reforma, diminuição das pensões, despedimentos na função pública… Com o novo plano de austeridade aprovado no passado dia 12 de Maio, Portugal prossegue a sua descida aos infernos. Os seus habitantes, os que partem e os que ficam, fazem o luto dos seus sonhos de futuro.

     

    Lisboa. O sol entra pela janela atrás de mim. Enche a sala inteira. Uma parte dessa luz pousa sobre o ecrã do computador onde escrevo. Debaixo da claridade, as palavras vão-se acrescentando a essa palidez, uma a uma, como se contribuíssem para a sua erosão.

    Nas conversas correntes, este é o sol que se aponta como uma das principais qualidades de Portugal. Normalmente, a estrutura desse discurso é: as pessoas só vêem o lado negativo das coisas, esquecem-se de valorizar o que dão como adquirido, que é o mais simples e que, no fundo, é o mais importante. Exemplo: o sol.

    Esta linha meteorológica de argumentação surge quase sempre como reacção aos noticiários. Nessas horas, falar do sol é um escape, uma defesa. Os portugueses estão traumatizados com os noticiários. Hoje, já podia haver uma palavra na língua portuguesa que caracterizasse especificamente a neura com que se fica depois de assistir aos noticiários. Se inventámos a palavra «saudade» para falar de um tipo particular de melancolia, já podíamos ter encontrado um termo que nomeasse esse mal-estar mal-humorado.

    Mas o sol também pode ser uma espécie de consolo. Quando se recebe a notícia de alguém que emigrou para o Reino Unido ou para a Suíça, uma das possibilidades estereotipadas de resposta é: «aposto que lá não têm este sol». Essa resposta permite um instante de ligeireza, um pequeno descanso. Por enquanto, ainda ninguém acredita que o governo chegue a privatizar o sol. Mas nunca se sabe.

    No Facebook, são muitos os que se queixam do primeiro Inverno passado em países com neve. Às vezes, nos comentários, têm a resposta de outros que foram para o Rio de Janeiro e que se queixam do Verão abafado, mais de trinta e cinco graus. Esse lugar-comum da globalização poderá ficar completo com a frase de algum ex-colega de universidade sobre as temperaturas em Luanda [1]. Nesse caso, os hipotéticos utilizadores do Facebook no Brasil e em Angola estariam a seguir o conselho do actual primeiro-ministro português que, há dois anos, sugeriu aos professores a emigração, justamente para esses países. Mas, quer se tenham exilado num país quente ou num país frio, todos estariam a contribuir para o orgulho do ex-ministro dos Assuntos Parlamentares que, transmitido em todos os noticiários, se mostrou satisfeito com a nova vaga de emigração portuguesa, tendo ficado muito impressionado com nível de educação desses novos emigrantes.

    Mais do que possa parecer à primeira vista, essas declarações encerram uma importante mudança de paradigma em relação à identidade nacional. Até aqui, em Portugal, «emigração» tinha um significado muito preciso, carregado de símbolos. Quando alguém mencionava essa palavra, referia-se principalmente a uma multidão de centenas de milhares de pessoas que saíram do país nos anos sessenta e setenta. Empurrados pela miséria da ditadura salazarista e pela guerra colonial, uma grande parte desses indivíduos atravessavam as fronteiras ilegalmente e quando chegavam a França era como se aterrassem no planeta Marte. Com muito pouca educação, os homens trabalhavam na construção civil e as mulheres faziam limpezas em casas privadas ou eram porteiras de prédios.

    A entrada para a União Europeia

    Se tivesse de escolher uma data, diria que a entrada para a União Europeia, em 1986, foi o momento em que se começou a tentar apagar essa emigração da imagem do país. A ideia de que já não éramos esse Portugal foi vendida com a entrada de dinheiro de Bruxelas e com a menor dependência das remessas dos emigrantes. Esse discurso vinha de encontro ao sentimento que os portugueses que não saíram do país mantinham em relação aos seus compatriotas emigrados. Especulando no domínio da psicologia social, diria que se tratava de uma espécie de inveja/vergonha: inveja dos carros e de outros objectos brilhantes que os emigrantes exibiam nas férias de Agosto; vergonha da baixa educação e daquilo que isso poderia dizer sobre si próprios. No fundo, vergonha de si próprios: um sentimento que muitos portugueses mantêm e alimentam.

    A este nível, após mais de duas décadas de rejeição e desprezo cultural em relação à emigração portuguesa, as declarações do ex-ministro dos Assuntos Parlamentares vêm dizer que esta emigração é muito diferente da outra. Nada de confusões com esse passado incómodo. Esta emigração, afinal, até deve ser motivo de orgulho. Essa é a mudança de paradigma a que me refiro.

    Não há dúvida de que a realidade é hoje bastante diferente daquilo que foram os anos sessenta e setenta. Hoje, as declarações do ex-ministro, bem como todas as críticas que espoletaram, foram bem noticiadas nos jornais, nas rádios e nas televisões. Nessas redacções, uma grande parte dessas notícias foram escritas por estagiários. Jovens licenciados, muito provavelmente a estagiar pela segunda ou pela terceira vez. No jornalismo, como em várias outras áreas profissionais, a quase exclusividade dos trabalhadores com menos de trinta anos são estagiários. Não têm qualquer remuneração, mas alimentam a esperança cega de virem a conseguir um contrato. Esquecem-se talvez de que, com contrato, teriam de receber salário. Não há falta de candidatos a estágio e, por isso, existe a impressão de que estagiar sem salário não é mau de todo. Pelo menos, tem-se resposta a dar quando alguém pergunta o que se está a fazer.

    Além disso, enquanto se está a estagiar num jornal, não se está a atender telefones num call center ou a atender clientes com o uniforme de uma multinacional de comida rápida. No contexto actual, depois de se estudar dezasseis anos, de se terminar uma licenciatura ou mesmo uma pós-graduação, fazer gratuitamente o trabalho que os profissionais mais estabelecidos não querem fazer é visto como uma possibilidade digna.

    Estes detalhes, como o sol, ajudam a suportar a tal neura pós-noticiários. Não é fácil. A tempestade de más notícias é constante. O paralelismo meteorológico seria um Inverno com a duração de anos, sem descanso. Às vezes, nos noticiários, há reportagens que tentam explicar alguns conceitos económicos aos cidadãos comuns. Então, com gráficos coloridos, explica-se a dívida ou repetem-se números, como os milhares de milhões de euros que o governo já gastou com a banca.

    Há aqueles que ouvem com atenção e que sentem a indignação a transformar-se rapidamente em impotência. Milhares de milhões de euros são muito pesados sobre os ombros de alguém sentado no sofá da sala, a ver televisão. E há também aqueles que já não ouvem. «Crise», «austeridade» são palavras que sinalizam os momentos em que aquilo que se está a dizer se transforma em ruído estático.

    Todos os dias há números novos a carregarem essas palavras, «crise», «austeridade». Há alguns tempos, chegaram os números da emigração. Os números oficiais e indiscutíveis, certificados pelo Instituto Nacional de Estatística. Essas entidades, já se sabe, têm sempre um ligeiro atraso; por isso, apresentaram agora os números de 2011. Ficou então comprovado pela ciência da estatística aquilo que já era do conhecimento público: a emigração cresceu 85% em relação ao ano anterior. A maioria desses emigrantes tinha entre 25 e 29 anos, mas também havia um número significativo de crianças e de adolescentes. O número de licenciados a emigrar aumentou 49,5% entre 2009 e 2011. 49,5%, como naquelas promoções em que o preço é 99,5 euros para não parecer tão caro.

    Números. Toda a gente já sabia que não há lugar em Portugal para a maioria dos recém-licenciados. Principalmente os próprios estudantes, a tirarem apontamentos para exames acerca de assuntos que, com muita probabilidade, não farão parte do seu quotidiano profissional. Se gostarem de literatura e tiverem sorte, pode ser que cheguem a arrumar livros numa cadeia de livrarias. Se gostarem de moda e tiverem sorte, pode ser que cheguem a distribuir fichas nos provadores de uma loja de roupas. Além disso, ouve-se dizer que, no Brasil, há boas oportunidades para arquitectos. Na Alemanha, precisam de enfermeiros, pagam bem e até dão aulas de alemão.

    Em alguns momentos, estupidamente, tentou transformar-se esta questão numa conflito geracional. Chamaram «mimados» a estes jovens, descreveram as dificuldades das gerações anteriores, quiseram comparar os obstáculos que se colocaram a uns e a outros. Os mais velhos vieram dizer que no seu tempo era pior. Os mais novos escreveram nas paredes que agora é que é pior. Não se chegou a nenhuma conclusão. Nesse debate, ficaram em silêncio os mais velhos que assistem de perto e que sofrem com as dificuldades dos seus próprios filhos e netos. E, também, ficaram em silêncio os mais jovens a quem custa ser um peso para os pais e avós. Nenhuma geração é estanque.

    É preciso dizer alguma coisa

    É preciso dizer alguma coisa. Em Setembro do ano passado, um oceano de milhares de pessoas encheu as ruas das principais cidades. E, este ano, no mês de Março, Portugal teve as suas maiores manifestações desde a revolução de 1974. As multidões precisavam de falar, como se estivessem quase a asfixiar e respirassem palavras. Cada indivíduo dessas multidões precisava de falar, o Facebook deixou de ser suficiente. Por isso, cada um trouxe o seu cartaz feito de casa. Muitas vezes, com insultos: expressão máxima da frustração perante a verborreia. Perante todos os argumentos, bem articulados, sem hesitações, apenas insultos simples: ladrões.

    Esses insultos nasceram de algo muito fundo, acumulado todos os dias ao longo dos últimos anos. Noticiários sucessivos e aquela sensação de neura com que se fica todos os dias, todos os dias, acumulada. A sensação de que pode sempre piorar e de que vai piorar.

    É preciso fazer alguma coisa: nem que seja ir para Londres, dividir um quarto com um amigo, trabalhar num bar; nem que seja ir para o Luxemburgo, viver provisoriamente com os tios da namorada, trabalhar numa fábrica ou na construção civil, exactamente como os emigrantes dos anos sessenta. Aliás, apesar de o novo estereótipo afirmar que a actual emigração portuguesa é constituída apenas de trabalhadores altamente qualificados, a verdade é que também é feita de muitos com pouca educação e de outros que, mesmo emigrando, acabam por se ter de conformar com empregos muito abaixo das suas qualificações.

    O desafio que se coloca aos jovens portugueses não é evidente. A razão principal dessa dificuldade tem a ver com o facto de serem muitos e de cada um deles acreditar em ambições próprias. Entre esses, são poucos os que sonharam com um trabalho repetitivo, pouco desafiante, mal remunerado e de total precariedade. Actualmente, em Portugal, estabilidade profissional para um jovem com menos de trinta anos significa um contrato de seis meses. Aos outros resta o desemprego ou uma existência feita de «recibos verdes» [2], sem qualquer vínculo com a entidade patronal.

    Não apresento percentagens, estou cansado de percentagens como quase todos neste país. Refiro-me aos jovens com menos de trinta anos mas poderia, facilmente, subir a referência até faixas etárias mais altas. A instabilidade é a mesma. Às vezes, ouço pessoas a defenderem que todos suportariam melhor esta situação se nunca tivessem tido a oportunidade de ambicionar outro futuro, se não tivessem passado anos a acreditar que seriam designers ou professores de Filosofia. Que raciocínio triste. Poderá chamar-se «vida» à passagem do tempo se não tiver sonho, desejo, ambição?

    Muito indirectamente, numa coisa, o ministro tem razão. Enquanto portugueses, devemos ter orgulho nos nossos compatriotas que procuram uma vida melhor fora de Portugal. Ao fazê-lo, demonstram coragem e uma série de qualidades que caracterizam este povo naquilo que tem de melhor. Mas, acrescento, esse orgulho é o exactamente o mesmo que devemos àqueles que tiveram de abandonar o país nos anos sessenta e setenta. Ao fazê-lo, demonstraram essas mesmas qualidades. Sei do que falo. Sou o filho orgulhoso de um pedreiro e de uma empregada doméstica dos subúrbios de Paris.

    Portugal é um país envelhecido que, ainda assim, assiste à partida dos seus jovens. O sol entra pela janela atrás de mim. Enche esta sala onde estou. As palavras, como o país inteiro, cansam-se debaixo desta claridade. Há momentos em que as próprias palavras parecem querer desistir. E sentimo-nos derrotados por algo que nunca chegámos a conhecer. Damos-lhe um rosto que inventámos a partir do nosso próprio medo. É preciso fazer alguma coisa. É preciso fazer alguma coisa neste país. O toque ameno do sol é um fraco consolo, não é suficiente para compensar toda a esperança que nos falta.

    JOSÉ LUÍS PEIXOTO *

    * Escritor. Autor, entre outras obras, de Livro, Quetzal, Lisboa, 2010.

    quinta-feira 2 de Janeiro de 2014

    Notas

    [1] Ler Augusta Conchiglia, «Angola socorre Portugal», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Maio de 2012.

    [2] Os pagamentos em recibos verdes, que não permitem quaisquer direitos, são feitos de forma maciça. Ler Marie-Line Darcy e Gwenaëlle Lenoir, «Em Portugal, os “recibos verdes” são o rosto da precariedade», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Janeiro de 2011.

  • Em junho, a convite do Le Monde Diplomatique, escrevi este texto para a secção “Un écrivain, un pays”. Penso que continua actual. Ler aqui o original português:http://pt.mondediplo.com/spip.php?article966
    Ou ler aqui a tradução francesa: