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A CAUSA DAS COISAS
Quando o Nónio avançou em Portugal, o consórcio que o desenvolvia e aplicava controlava cerca de 85% da audiência nacional de internet. Com a óbvia exceção da RTP, todos os grandes grupos de comunicação marcavam presença. A Plataforma de Media Privados engloba: os dois canais privados de sinal aberto (e os seus parentes no cabo, todas as SIC e TVI), todas as estações de rádio privadas de cobertura nacional, todos os jornais diários (entretanto o Público saiu), semanários e revistas com maior tiragem a nível nacional, num total de 70 sites de informação. Na prática, o projeto que se propõe a destronar a Google e o Facebook da liderança do mercado publicitário não ambiciona a destruição desse oligopólio, quer apenas que mude de mãos. O caso do Nónio é ainda mais caricato, uma vez que a maior parte do seu financiamento veio precisamente da empresa mais conhecida pelo seu motor de busca – pelo menos 900 mil euros através da Digital News Initiative (DNI), o valor mais alto de sempre atribuído pelo programa de investimento da norte-americana no jornalismo europeu. A insistência (direi, até, existência) do projeto é um sintoma da questionável relação entre a big tech (grandes tecnológicas) e a big press (grande grupos de media). Conforme explica Eduardo Santos da associação D3 – Defesa dos Direitos Digitais, o estreitamento de relações entre as duas esferas fortalece quem já tem a posição dominante, tanto de um lado como de outro, enquanto amplia o conflito de interesses no jornalismo – durante décadas, o maior adversário das grandes tecnológicas.
Apesar de aliviar constrangimentos financeiros de redações aflitas, a relação da Google com o financiamento do jornalismo não é de todo descomprometida. Uma investigação conduzida pelos jornalistas do Netzpolitik Alexander Fanta e Ingo Dachwitz indica que, nos últimos sete anos, a Google injetou mais de 200 milhões de euros no jornalismo europeu. Entre 2015 e 2019, apenas 9% desse investimento ficou reservado a meios sem fins lucrativos ou de serviço público; a maior fatia desse bolo (70%) foi para grupos de comunicação já bem estabelecidos. O restante foi para instituições de investigação, propostas individuais e start-ups de media não jornalísticas. Apesar de ter encerrado a DNI em 2019, a Google continua a desembolsar milhões no ecossistema jornalístico (europeu e não só). De conferências e bolsas de estudo até à utilização dos produtos e serviços, praticamente toda a rede de interações no ecossistema de produção jornalística está contaminada – incluindo, e sobretudo, nos grandes grupos privados de comunicação.
A promiscuidade da ligação entre a Google e estes grupos é particularmente notória na recente polémica da partilha de notícias por via de gigantes tecnológicas na Austrália, um dos territórios com maior concentração de propriedade de órgãos de comunicação social (OCS) no mundo – apenas atrás da China e do Egipto, dois países em que a comunicação está basicamente capturada pelo aparelho estatal. Em 2016, a mastodontica News Corp de Robert Murdoch detinha 57% do mercado local de circulação de periódicos, um número que terá aumentado entretanto graças a múltiplas aquisições. Por isso, não é de estranhar que tenha sido um dos primeiros grupos a conseguir a atenção e os dólares da Google, depois da aprovação da lei que obriga as tecnológicas a pagarem aos OCS pela distribuição desse conteúdo. Apesar do finca-pé inicial ao lado do Facebook, a gigante de Mountain View acabou por ceder. Em troca de um pagamento sigiloso e certamente avultado, nos próximos três anos, títulos como Wall Street Journal, The Times, The Sun ou Sky News (para nomear apenas alguns) serão disponibilizados através do novíssimo Google News Showcase. Será caso para dizer que a ovelha vestiu a pele do lobo, já que o serviço é uma aposta de mil milhões de dólares na centralização do consumo de informação através da Google, que solidifica a sua posição dominante no acesso aos hábitos de consumo informativo da população com a conivência (e aplausos!) dos maiores produtores de conteúdo em detrimento dos restantes. Um golpe de génio.
Como se não bastasse, a obrigatoriedade do pagamento de uma licença para a publicação de hiperligações de OCS é fogo no rastilho da proliferação de desinformação e notícias falsas. Desde a semana passada que a população australiana não tem acesso a informação credenciada no Facebook, uma vez que a rede social se recusou a pagar licenças, barrando conteúdo em vez disso. Apelidado de caótico, o bloqueio não ficou circunscrito aos OCS, alastrando-se por uma série de outras fontes credíveis de informação tais como organizações não-governamentais e instituições governamentais, nomeadamente direções gerais de saúde locais – algo particularmente grave durante uma pandemia. Se isto acontecesse em Portugal, seria expectável uma limitação significativa do alcance das notícias. O mais recente Digital News Report indica que, em 2020, 57,9% da população portuguesa usou as redes sociais como fonte de notícias em combinação com outros meios; 17% usou-as como fonte primordial, o valor mais alto desde 2015.
A medida australiana também afeta desproporcionalmente OCS de menor dimensão, que usam estas plataformas precisamente como alavanca para a divulgação do seu trabalho e cujo alcance restrito não lhes garante qualquer influência numa mesa de negociações com plataformas gigantescas. O contexto desta nova regulação é claro no texto do regulador local, ACCC, que fundamenta a necessidade de avançar com a medida nas perdas de receitas publicitárias por parte da imprensa tradicional – “Australian commercial media, and in particular traditional print media (now print/online media), first suffered a significant reduction in advertising revenue through the unbundling of classified advertisements from newspapers”. Apesar do texto aprovado apoiar por princípio um reforço nos programas de financiamento de OCS locais ou de menor alcance, a incompreensão deste segmento por parte dos legisladores e reguladores locais é evidente em documentos da plataforma Public Interest Journalism Initiative, precisamente um dos agentes da sociedade civil interessados no código. A título de exemplo, um relatório de fevereiro de 2019 denunciava critérios incompatíveis com a realidade destes OCS num desses programas com vista à empregabilidade e inovação neste contexto.
O caos desta devassa não está limitado à grande ilha do outro lado do planeta. Na União Europeia, a nova diretiva do direito de autor (aprovada em 2019 sob intensa contestação civil) aprovou direitos conexos para grupos editoriais. Neste momento, a regulação aguarda transposição para a lei local na maior parte dos Estados-membros (que deverá acontecer até junho deste ano), mas em França já está implementada. Até agora a medida só beneficiou grandes grupos, uma amostra representativa dos media tradicionais e de informação generalista no país – Le Monde, Courrier International, L’Obs, Le Figaro, Liberation e L’Express.
A soberania do Facebook e da Google na distribuição digital de conteúdo é problemática, mas a sua influência ultrapassa em larga escala o domínio do jornalismo. Por isso, resumindo e citando o ativista pelos direitos digitais Diogo Constantino, qualquer uma destas soluções:
“não resolve os problemas do mercado de publicidade;
favorece alguns gigantes de tecnologia, tornando mais difícil a concorrência contra eles;
favorece os grande media contra os pequenos, independentes, regionais e temáticos;
fortalece a erosão da privacidade.”
Paralelamente, assistiu-se ao decréscimo acentuado dos níveis de confiança nos meios de comunicação tradicionais ao longo dos últimos anos, mas há quem sobressaia pela excelência. É ao serviço público que a maior parte dos europeus recorre quando procura informação de qualidade, mas o oásis dos meios estatais está igualmente sujeito a aridez. Os desafios enfrentados pelos operadores públicos são complexos e duradouros – da dificuldade na competição com as gigantes tecnológicas, passando pelos efeitos de sucessivas crises financeiras, até à defesa da necessidade de sua própria existência.
Na Polónia, onde o estado de direito vive sob ataque permanente, o assédio aos operadores privados e simultânea instrumentalização de operadores públicos galopam num caminho que parece não ter fim. No Reino Unido, as acusações de falta de isenção por parte da BBC acumulam-se. Não obstante a confiança associada ao operador público britânico ser alta, nomeadamente no que respeita à reportagem de factos e notícias de última hora, o regulador local revelou desagrado com a cobertura de temas como o Brexit, por exemplo. Por cá, desde o início do ano que a RTP continua sem provedor do telespetador, na sequência do final do mandato de Jorge Wemans e posterior chumbo do Conselho de Opinião ao nome proposto pela administração do operador público, José Alberto Lemos – um pormenor recente numa extensa lista de problemas que envolvem a emissora pública, desde a integração de trabalhadores precários à controversa demissão da direção de informação em 2019 decorrente das audições parlamentares relativas ao adiamento na transmissão do programa “Sexta às 9”.
A importância de um terceiro sector dos média evidencia-se, assim, pelas debilidades dos outros: dos interesses comerciais privados à instrumentalização de operadores de serviço público, passando pela concentração de propriedade (e subsequente diminuição de variedade na oferta), e pela aparentemente inevitável aglomeração de meios nacionais nos grandes centros urbanos (não obstante o facto de 60% da população nacional viver fora das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto). Assim, a acessibilidade do jornalismo não deve estar reservada só a quem o consome, deve ser garantida a quem o quer fazer.
Portugal é hoje um dos poucos países da União Europeia cujo terceiro setor dos média está por regular (juntamente com a Grécia). Este terceiro setor – por influência anglófona habitualmente rotulado como comunitário ou participativo – situa-se entre os serviços público e comercial. Apesar de existirem algumas nuances na sua definição e nomenclatura consoante o país, eis as características fundamentais de OCS ligados a este movimento:
funcionam sem fins lucrativos, pertencendo à economia social;
fomentam a participação de não profissionais no processo editorial e de produção de conteúdo
têm estruturas de gestão democráticas e tendencialmente horizontais;
são mantidos maioritariamente por voluntários, colocando ênfase na transferência de competências e conhecimentos enquanto peça chave do desenvolvimento pessoal e coletivo;
produzem conteúdo alternativo ao disponibilizado por plataformas generalistas, dando visibilidade a temas e grupos marginalizados, promovendo a participação cívica e o diálogo entre comunidades.
Em setembro de 2008, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução que explicita o contributo dos média comunitários enquanto agentes relevantes na promoção de diversidade e pluralidade no espaço público, no fortalecimento da cidadania ativa, no desenvolvimento da literacia mediática dos cidadãos e na dinamização da criatividade local. Em suma, respondem a necessidades de comunidades específicas que nem o serviço público nem o comercial acomodam. No mesmo texto, os deputados apelavam ao reconhecimento legal deste terceiro sector por parte dos Estados-membros, incluindo na atribuição de licenças de transmissão radiofónica e televisiva, com vista à estimulação e real progresso do impacto positivo que têm na sociedade. Até hoje, Portugal ignorou a recomendação – nomeadamente na atualização à Lei da Rádio apenas dois anos depois, por exemplo. Os problemas da omissão deste enquadramento materializam-se em dificuldades acrescidas no exercício da operação dos que encaixam neste perfil.
Escolher uma personalidade jurídica sem fins lucrativos pode ser desgastante. Criar uma associação é um processo cada vez mais burocrático, cujas obrigações fiscais aumentaram substancialmente nos últimos anos – desde o pagamento do ato de constituição à obrigatoriedade de abertura de atividade nas finanças, independentemente do seu exercício efetivo, passando pela dificuldade crescente em abrir conta bancária (e custos associados). Uma ASL também obriga ao envolvimento de um número substancial de pessoas; quase uma dezena, pelo menos três para cada um dos órgãos sociais. Regulada pelo Código Civil, num texto que pouco terá mudado desde 1966 – a existência de ASL resiste num emaranhado de procedimentos opacos, cuja justificação legal é difícil de desvendar, tornando-se rapidamente num jogo às cegas em que o desfecho é ditado pela sorte. É certo que existem outros tipos de enquadramento que permitem atividade comercial sem fins lucrativos, como as cooperativas, mas a sua criação também exige pelo menos quatro membros e obedece a regras específicas no que toca à sua capitalização. Em qualquer das situações, o atrito de um começo na economia social é significativamente maior do que na criação de uma empresa.
Fundar um OCS também não é para todos os bolsos. Entre a exigência de registo de marca e o registo na ERC, são cerca de €225 (no mínimo). Acrescendo os custos de pelo menos uma carteira profissional e (na maioria dos casos) o registo de pessoa coletiva, são necessários pelo menos €600 para legalizar um OCS. Ou seja, praticamente o mesmo que o salário mínimo nacional – aquilo que um quinto da população ativa em Portugal leva para casa todos os meses. Estes valores são válidos para o registo de qualquer publicação periódica: tenha ela três ou trezentos trabalhadores, seja ela propriedade de uma pessoa singular, de associação sem fins lucrativos ou de uma sociedade anónima.
A resistência da ERC aos que constroem a mudança no jornalismo em Portugal impõe-se em formalidades kafkianas que dificultam aquilo por que devia primar acima de tudo enquanto regulador: “O direito à informação e a liberdade de imprensa”.
Durante o presente estado de emergência, num ato de profunda misericórdia, a ERC convidou os proprietários de publicações períodicas à suspensão da edição ou alteração do respetivo suporte ou periodicidade, de modo a evitar o eventual cancelamento do registo. Sucede que estas alterações não são gratuitas. Perante a possibilidade de a gráfica não conseguir cumprir os prazos de impressão face aos constrangimentos impostos pelas medidas de contenção da Covid-19, a Revista Variações foi obrigada a pagar para poder manter apenas a edição digital sem risco de perder a inscrição. Quando voltar a publicar em papel, terá de pagar de novo para regressar às condições iniciais. Apesar destes averbamentos não serem muito caros, o projeto é voluntário e tem um orçamento diminuto. Para quê tanta fricção? Não admira, portanto, que alguns dos projetos de jornalismo e comunicação mais emblemáticos da última década em Portugal não estejam sequer registados na ERC, casos dos sites BANTUMEN ou Rimas e Batidas, por exemplo. Outros, mesmo registados, como o Shifter ou o Espalha Factos, resistem igualmente graças ao esforço de dezenas de voluntários que continuamente se dedicam a noticiar, reportar, refletir, questionar e analisar com brio realidades que de outra forma dificilmente seriam iluminadas.
O Mário Rui André também já se debruçou detalhadamente sobre a desadequação do atual Estatuto do Jornalista à realidade noutra reflexão aqui partilhada, mas permitam-me um regresso à definição da atividade. A expressão “permanente e remunerada”, juntamente com a previsão de coimas para quem exerça funções de jornalista sem carteira, exclui a legitimidade de qualquer expressão voluntária de jornalismo comunitário ou de cidadão. Alguém que decida reportar com regularidade sobre o que acontece no seu bairro não é jornalista? Uma associação de reformados que publique um jornal local não está a fazer jornalismo? Ou uma jovem que crie regularmente conteúdos informativos nas redes sociais? Fala-se tantas vezes na falta de literacia mediática, mas o exercício do jornalismo enquanto prática de cidadania ativa está efetivamente vedado à maioria já nem tanto pela dificuldade de acesso aos meios de produção, mas antes pelos constrangimentos legais e pelo corporativismo da profissão.
Se existirem dúvidas sobre o valor desta proposta, talvez importe relembrar que alguns dos mais importantes projetos de jornalismo alternativo em Portugal começaram precisamente como iniciativas deste tipo. Tanto o Shifter como o Fumaça nasceram neste limbo fosco que vai do fazer jornalismo ao ser jornalista – sem salários, nem carteiras profissionais ou registo. Hoje, distinguem-se pela oferta singular e de alta qualidade, tratando assuntos pouco escrutinados nos meios generalistas (da importância de um ensino livre também no software, à teia de abusos laborais no sector de segurança privada) – em português, privilegiando o acesso aberto aos seus conteúdos e uma relação de proximidade com as respetivas comunidades.
O que desvirtua o jornalismo não é o voluntariado nem a eventual falta de credenciais. O que desvirtua o jornalismo é a falta de rigor e ética, a luta por cliques, a invasão da privacidade dos leitores por trocos extra, as manchetes enganosas, a inexistência de representatividade no tratamento e debate dos temas. O que desvirtua o jornalismo é a exploração do trabalho pelos grandes grupos empresariais de comunicação, reféns de fundos de investimento e acionistas para quem a informação não é um bem público, mas apenas mercadoria.
Está na hora de o tratarmos bem, valorizando as vozes de quem fica tanta vez por ser ouvido.
A Rute Correia, co-fundadora e jornalista do Interruptor. A rádio tem sido central no seu percurso profissional. Especializada em jornalismo musical, já passou por várias estações, incluindo a Oxigénio onde já foi reconhecida com o “Silver Innovation Award” nos Community Radio Awards em 2016. A sua formação conta com um mestrado em Produção e Gestão de Rádio, e um doutoramento cujo foco da tese é o “open source” enquanto modelo de sustentabilidade para rádios comunitárias.
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Da acessibilidade do jornalismo e do exercício da cidadania
“O que desvirtua o jornalismo é a exploração do trabalho pelos grandes grupos empresariais de comunicação, para quem a informação não é um bem público, mas apenas mercadoria.”
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