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Fez no dia 15 de Agosto um mês que aconteceu, em Luanda, o primeiro momento do lançamento, em Angola, do meu livro “Cuéle, o Pássaro Troçador”, seguindo-se, no dia 20, o segundo momento, desta vez bem mais a Sul, na cidade do Lubango. Destes acontecimentos fui fazendo postagens que, pelas “pegadas”, tiveram a visita de muitos amigos. Por isso não é propriamente para falar do mesmo que estou de novo por aqui, mas para dar a ler parte (só parte, dada a extensão do texto) da comunicação/apresentação do livro com que José Luís Mendonça nos deliciou, a todos quantos pudemos ouvi-lo no auditório do Instituto Camões, em Luanda. Para quem não o conhece, ou conhece mal, passo a fazer uma breve apresentação.
José Luís Mendonça é natural do Golungo Alto, Angola, é Licenciado em Direito, professor universitário, e tem vindo a exercer, também, o jornalismo nas colunas de diversos periódicos angolanos. Foi Director e Redactor Chefe do semanário “Cultura – Jornal Angolano de Letras e Artes”, editado em Luanda. É membro da União de Escritores Angolanos e Prémio Nacional de Cultura e Artes, na categoria de Literatura. É autor de catorze títulos de poesia e ficção. Em 1981 tem a sua estreia literária com Chuva Novembrina, livro que lhe deu o prémio de poesia “Sagrada Esperança”. Seguiram-se mais treze títulos, tendo sido galardoado com quatro prémios: “Sonangol da Literatura”, por duas vezes; “Sagrada Esperança”, mais uma vez; prémio “Angola 30 Anos” (2005).
A Comunicação:
Cuéle, o Pássaro Troçador, de Jorge Arrimar:
epopeia da resistência no Sudoeste angolano
de José Luís Mendonça
0 RUMINAÇÃO
Uma justificação válida para que alguém leia o livro de Jorge Arrimar, Cuéle, o Pássaro Troçador, é a razão apontada na página 25, pelo autor:
“Neste texto – pontualmente visitado pelo cuéle, o pássaro do canto trocista que persegue os nossos fracassos e contradições –, a história mistura-se com ficção, fazendo da realidade apenas um ponto de partida para a literatura. São poucos, dispersos, os vestígios que a história guarda da maior parte das pessoas que estão por trás das personagens que estruturam este livro. Uma das principais personagens é forjada a partir de António José de Almeida, (…) sobre a qual não se sabe muito, pelo menos à dimensão da importância que teve na sua época.
De outras figuras da vida e da história do Sul de Angola ainda menos se fala, menos se sabe. Chegaram até nós apenas breves apontamentos, quase sempre distantes do seu quotidiano, do seu pensamento, das suas alegrias ou das suas tristezas. Assim acontecia, e ainda acontece, com as figuras marcantes das sociedades tradicionais, dos seus sobas ou hambas, das suas famílias, das suas circunstâncias. E quando se aponta, se estuda, se conversa e se especula também, são quase sempre os mesmos (Jinga, a norte; Lweji, a leste; Mandume, a sul). Atrevi-me a imaginar como teriam vivido algumas pessoas do Sudoeste angolano, o que teriam pensado, desejado e sofrido. Algumas delas são Igura, do Cuamato Pequeno; Hangalo, do Mulondo; Amúli, de Quipungo; Nande, do Cuanhama; Cariparula, do Cuamato Grande; Tchakuhílua, do Caholo; Caturiende, da terra Cuvale. E é com uma dessas personalidades que inicio este livro, uma viagem onírica, um capítulo apenas, mas que é, afinal, a condensação metafórica do tempo (e suas gentes) em que esta narrativa se amarra.”
Este romance podia ter saído a público com outro título. Ninguém daria a uma obra ficcional de pendor historiográfico, um nome de pássaro. É preciso uma dose suficiente de alma poética e de guardador de rebanhos habituado ao campo, para imortalizar o pássaro troçador, cuéle, no extenso daguerreótipo que vai desde finais do século XIX até quase ao fim do século XX, o animal poisado sobre um carro bóer que a história dos suis de Angola guarda no seu pulmão. É preciso existir neste mundo a pessoa de Jorge Arrimar, com esse olhar troçador de eterno candengue na face, para nos brindar com este livro.
Esta e outras obras de Jorge Arrimar têm sofrido uma injustiça na história da literatura angolana contemporânea. Já é tempo de merecerem o devido reconhecimento e louvor, seja através do Prémio Nacional de Cultura e Artes, seja através do seu estudo por parte dos peritos na matéria.
Canta, então, ó Cuéle!
I TRAÇADO GEO-DISCURSIVO
Cuéle, o Pássaro Troçador é uma obra do género imortalizado por Homero, há milénios: estamos perante um imenso e intenso poema épico, uma epopeia, de cuja acção central nos ocuparemos mais adiante.
Estamos perante um subsídio valioso para a narrativa meridional da Literatura Angolana. Um hemisfério do campo literário angolano que já conta com nomes sonantes como Henrique Abranches, Ruy Duarte de Carvalho, Paula Tavares, Aníbal Simões, Sousa Jamba.
Para se construir um texto com esta dimensão lexical e histórico-cultural, o autor, como é óbvio nos cultores da grande literatura de qualquer país, bebeu de múltiplas fontes: anotámos mais de 100 fontes bibliográficas, sem contar com o elucidário iconográfico no final da obra, mais uma fonte viva, oral, que narra um episódio muito interessante, na página 342, sobre o esfriamento das pontas de flechas ardentes de zagaia.
Dando parte das suas características discursivas, diremos que esta epopeia se enquadra na linha sígnica, estética e mitológica do realismo feiticista, do qual emana um odor a pemba multicolor, um tanto ou quanto diferenciado dos odores do realismo mágico latino-americano, embora tenha com este, algumas intersecções, ainda que atravessadas apenas pela imagiologia do intertexto. Faz parte do feitiço o pássaro cuéle, que entra com 26 cantares premonitórios ou meramente expletivos, do princípio ao final do romance, como que a troçar de nós próprios, leitores angolanos, nem o próprio Arrimar saberá porquê.
Na verdade, pela tessitura da fala eloquente dos narradores, e pela centralidade da fundação de novos povoamentos ou da sua extinção sob a égide do clã familiar, pela colação de mitos, línguas, e do esforço conjugado, por vezes, sacrificial, de muita gente num ambiente multicultural, sobretudo pelas narrativas das guerras e seus heroísmos e traições, este é um romance que bebe da sequência memorial de Cem Anos de Solidão. Contudo, este Cuéle contrasta com a Solidão de García Márquez, no compacto adobe feito de terra amassada e capim de que se compõe o choque de civilizações (a dos povos Bantu e a do povo Lusíada). Aqui há, não propriamente uma solidão caracterizada pelo remoto isolamento de Macondo, mas outra solidão, a que procede da constância da guerra, na qual os homens estão em interacção, só que isolando, negando o outro, com a solidão perene da morte, ou efémera da fome e do trabalho forçado.
Uma particularidade é a continuidade dos diálogos na própria narração, como parte intrínseca dela, sem recorrer aos dois pontos e ao travessão, ou às aspas. O estilo, a essência suprema da literariedade, apresenta uma riqueza verbal impressionante, para além das construções metafóricas e de outro âmbito figurativo. Este livro contém quase todos os nomes das coisas locais nas suas variadas línguas, tanta coisa capaz de preencher livros sobre botânica, fauna, geografia, antropologia, indústrias, e outros domínios que fazem de Cuéle um repositório dos usos, costumes, espaços e história dos povos do Sudoeste de Angola e que situam a sua narrativa no ideário dos fundadores do apócrifo Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, lançado em 1948, e que teve curta vida, mas que vive até hoje pelo seu slogan “VAMOS DESCOBRIR ANGOLA”.
[…]
(Excerto da comunicação de José Luís Mendonça sobre o livro “Cuéle, o Pássaro Troçador”, Luanda, 15Ago.2023)
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