32º COLÓQUIO JORGE ARRIMAR, MARIANA BETTENCOURT, A CADELA PURA

jarrimar@gmail.com JORGE ARRIMAR E O 32º COLÓQUIO DA LUSOFONIA

Uma das interessantes comunicações que se ouviram durante o 32º Colóquio da Lusofonia, que teve lugar este ano na ilha Graciosa, nos Açores, foi a de Mariana Bettencourt, que nos surpreendeu agradavelmente com uma perspectiva psiquiátrica da personalidade e da vida perturbada (e perturbadora) da formosa Margarida Victória, Marquesa de Jácome Correia, nascida em Ponta Delgada em 1919. Não pude deixar de intervir no final da sua comunicação, lendo um poema de Vitorino Nemésio, que por este fora dedicado a Margarida Victória. Ora, com este belíssimo poema de amor de um dos mais importantes poetas da literatura portuguesa, havia embelezado eu um texto escrito três anos antes e que fora publicado no blog Palavras no Branco de Eduardo Bettencourt Pinto, meu amigo, que também se encontrava a ouvir a comunicação de Mariana. Tratava-se de um comentário meu a um texto de Eduardo, intitulado “Uma casa no meio do mar”, no qual o autor fazia referência a várias situações vividas no nosso tempo micaelense (ambos residimos em S. Miguel, nos Açores, depois de 1976), entre elas, a da publicação na ilha de um livro insólito, que chamava a atenção pelo título provocatório: Amores da Cadela ‘Pura’. Tratava-se de um livro de confissões apaixonadas e pungentes de uma vida de encontros e desencontros de sua autora, a Marquesa de Jácome Correia. A mesma personagem tema da comunicação de Mariana Bettencourt.

No seu texto o Eduardo também fazia referência a três cadelinhas de pêlo curto e de olhar sombrio que o assustavam quando ele, para alcançar “o quarto de banho tinha de passar por elas na cozinha e invadir-lhes o espaço. Era então que, erguidas “dos seus leitos com veemência plástica”, recuavam de olhos cintilantes para ele que, estarrecido, tentava acalmá-las num esforço que resultava estéril. (MARÇO 12, 2016)

O meu Comentário:

“Cheguei a S. Miguel com os ventos frios e húmidos de Janeiro, faz quarenta anos, quando a ilha era só água. A chuva que caía fazia da terra mais uma onda, mais uma vaga.

Fiquei hospedado nas águas furtadas de dona Maria, uma casa antiga na rua do Saco. A sua residente mais apaparicada e, ao mesmo tempo, mais resmungona era a cadela Milú, tão bravia como as três de “pelo curto e olhar sombrio” que te alarmavam a casa da Vila Nova. A cadela de dona Maria não admitia confianças a nenhum estranho. Na primeira manhã do primeiro dia como habitante daquela casa, passei por momentos difíceis. Quando consegui atravessar o corredor, pé-ante-pé para a Milú não dar por mim, mal chegado à casa de banho atirei-me lá para dentro como um náufrago se atira a um salva vidas. Mas não demoraria a perceber que, salvo dos dentes afiados da Milú, tinha-me trancado numa casa de banho para morrer. A cadela, cujo instinto lhe garantia que, naquele lugar, qualquer estranho poderia encontrar um final pouco feliz, ficou silenciosa. Eu estranhei. Despi-me e, feliz pelo banho retemperador que me aguardava, liguei o esquentador e abri a água. Tudo corria bem, até começar a sentir que o velho esquentador, que resistia há décadas por cima da banheira de dona Maria, não só aquecia a água como envenenava o ar.

No palácio de Santa Luzia, Margarida Jácome Correia mergulha numa funda banheira de mármore polido, enquanto duas criadas a ajudam, com extrema delicadeza, a tomar banho. Da água elevam-se nuvens de vapor perfumado e inebriante. Próxima da grande banheira, uma cadela dormita com as patinhas fofas sobre dois livros, ou melhor, sobre dois volumes de um livro só “Os Amores de uma Cadela Pura”.

Ainda na banheira de esmalte maltratado, começo a sentir a cabeça às voltas. Incomodado, acho que será mais seguro sair dali o mais depressa possível. Lá fora, a cadela começa a latir e a arranhar a porta. Maldita cadela!, digo alto. E começo a ter alucinações, a perder a orientação. Os latidos da cadela estão cada vez mais dentro da minha cabeça, como se a própria Milú habitasse nela.

Margarida pede a uma das empregadas que lhe traga a toalha e enrola-se nela. Já não é nova, mas o seu corpo ainda guarda alguma da grande beleza que tinha tido. Pura, pura, vem cá! Vem cá, meu bichinho. Ao ouvir o seu nome, a cadela salta-lhe para o colo onde é afagada com meiguice. Margarida dispensa o apoio das suas empregadas e começa a vestir-se. Teria um convidado especial nesse dia. Um poeta oriundo da ilha Terceira. Um amor de poeta.

Não cantarei a virgem que o cavalo

Com um xairel de sangue arrebatou,

Quebrada pelo bruto, nem levá-Io

Ao potro vingador de um verso vou.

Não cantarei tal noite aziaga. Falo

Apenas do que tenho, do que sou

Com ela, como o vinho no gargalo

Do frasco em que me bebe e me esgotou.

Nem cantarei a vítima do resto,

Violada na inocência que perdeu

Nas emboscadas de um punício lodo:

Que só meu próprio amor acendo. E atesto

A chama da Victória que me deu

Na margarida branca o mundo todo.

(V.N.)

Estonteado, consigo chegar à porta e empurro-a com a força que ainda me resta. A cadela, entalada contra a parede, põe-se a ganir. Caio, bato com a cabeça num vaso de flores e desmaio. Quando acordo, a cadela lambe-me a cara. Afasto-a devagar e levanto-me a custo. Após algum descanso, saio para dar uma volta pela cidade. Preciso de ar puro. Ponta Delgada é a minha cidade mais recente. Sinto com agrado o ar fresco e húmido tocar-me o rosto. Desço até ao Largo 2 de Março e não encontro o Sr. Raúl, com “a mão direita ao alto, branca como uma asa de gaivota”, como o vê o meu amigo Eduardo. Mas cumprimento o Sr. Raposo, que, da porta da Farmácia onde trabalha, observa tudo. No ‘Gil’ tomo o pequeno-almoço e sinto a as forças regressarem aos poucos. Mais uns passos e, na Tabacaria Açoriana, chama-me a atenção um livro com um título curioso, provocador, “Os Amores de uma Cadela Pura”, de Margarida Vitória. Compro-o e levo-o comigo. No Campo de S. Francisco aproximo-me do banco de Antero, onde moram alguns pombos, e sento-me entre eles. São tristes os pombos, como se tivessem assistido ao disparar da pistola sobre a têmpora do poeta. Naquele lugar não sinto vontade de ler o livro que comprei. Fá-lo-ei quando chegar a casa… se a cadela me deixar entrar.”

Jorge Arimar