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As Terras Altas da Huíla
Quando a História e a Literatura se Encontram
O encontro da História e da Literatura é um tema que me interessa muito, porque me formei em História e esta disciplina tem sido a minha ferramenta de trabalho e, também, porque me tenho servido dela para me envolver no espaço da literatura. Tem sido um tema que me tem levado a estar presente em alguns momentos importantes durante este ano, como a I Conferência Pensar o Sudoeste, realizada pelo Instituto Superior Politécnico da Tundavala, na Huíla (Angola), de 26 a 27 de Setembro e o 1º Congresso Internacional de Angolanística, que teve lugar na Biblioteca Nacional de Portugal, entre os dias 17 e 18 de Outubro.
Angola tem-me interessado mais numa perspectiva literária, mesmo quando a História é chamada ao terreiro da poesia ou da prosa. A Literatura permite-me essa dupla, e para mim mais confortável posição, que é a de ir à História escrita e à Oralidade buscar os elementos que me interessam para trabalhar a minha narrativa ficcional. Assim aconteceu, por exemplo, com a trilogia dos planaltos (O Planalto dos Pássaros, O Planalto do Salalé e O Planalto do Kissonde), que funcionam como janelas da História. Nestes romances pude dar largas à imaginação e intuir o que a História não deixou documentado. O encontro salutar da História com a Literatura pode acontecer sem que os fundamentos daquela sejam postos em causa pela fantasia desta. Só assim, no espaço livre da literatura se pode trabalhar o ambiente, a mentalidade e os comportamentos com independência e a amplitude que a História-ciência não permitiria.
Hoje, os historiadores não se coíbem de usar diversas fontes, mesmo aquelas que, usualmente, ficavam de fora em trabalhos do género. Como nos diz o historiador africano Joseph Ki-Zerbo, conjuntamente com as duas primeiras fontes da história africana (documentos escritos e arqueologia), “a tradição oral aparece como repositório e o vetor do capital de criações socioculturais acumuladas pelos povos ditos sem escrita: um verdadeiro museu vivo. A história falada constitui um fio de Ariadne muito frágil para reconstituir os corredores obscuros do labirinto do tempo. Seus guardiões são os velhos de cabelos brancos, voz cansada e memória um pouco obscura” (Ki-Zerbo – História geral de África I […], 2010, p. 38).
A oralidade é, assim, uma fonte imprescindível pelo que transporta de experiências, de conhecimentos, não só para os historiadores mas também para os escritores. Ela pode ser um veio enriquecedor da Literatura escrita e da História. E acontece, por vezes, chegar o escritor primeiro do que o historiador a esse “veio”, a essa fonte primordial, e, através desta, ao facto histórico. E vários estudiosos da área da História e da Etnologia têm feito referência, através dos anos, à importância da oralidade nas sociedades africanas, em geral, e na angolana, em particular. Da tradição oral bebem os investigadores da História e embebedam-se os criadores de Literatura.
Espreito pela clarabóia da oralidade, debruço-me à sua janela e inspiro-me para a escrita. O poema que se segue, intitulado “As Janelas das Raízes” é uma homenagem minha à memória que nos permite ter consciência do que somos e de onde viemos:
Eu sei que as paredes grossas / da casa onde nascemos / se começaram a construir / no tempo de outras gerações. / E ambos descobrimos isso / quando gatinhávamos / pelas primeiras letras / dos livros mais antigos / que lhe serviam de alicerces. // Ainda os vemos de páginas abertas / no chão húmido da memória, / como se fossem as janelas / das raízes que nos suportam. ”.
E afinal, os “os livros mais antigos” neste poema são os alicerces que se prendem à terra através dos caboucos, que é como se chamam os rasgões feitos no solo onde a casa/memória tem as raízes. Em quimbundo também se chamam cabocos (kabokos) os “homem-memória”, os guardiões da palavra e das tradições, afinal, também eles “as janelas das raízes que nos suportam”.
E é com esse testemunho, com essas memórias, que o escritor muitas vezes recria situações que existiram em tempos idos, podendo até – se engenho e arte não lhe faltar – torná-las vivas e verosímeis. Não sei se este é um caso desses, mas permitam-me que vos revele uma passagem de “O planalto do salalé” (2012, p. 205-206), que recria alguns acontecimentos, como a chegada dos primeiros europeus ao Cuanhama: Magyar, o húngaro do Bié; Brochado, o português de Moçâmedes. Reinava no Cuanhama Haimbili (1811-1858), num tempo perturbado e perturbador, em que a ruptura de uma tradição antiga e fundacional, a da circuncisão dos hambas, leva ao incêndio e abandono do lugar sagrado da Ombala Grande da Ondjiva.
Quem é Haimbili? Quem são Magyar e Brochado? Quem é Ozoro? Pois, são figuras da vida e da História do séc. XIX angolanos. Se de Ladislau Magyar, morador do Bié, e de Bernardino Brochado, morador de Moçâmedes, a História dá conta; já de Ozoro, filha do Soba do Bié e mulher de Magyar, sabemos mais através do belíssimo poema de Ana Paula Tavares (O lago da lua, […], 1999, p. 55), assim como de Naulé, a jovem sobrinha de Mutâmu do Cuanhama, diz-nos mais o romance:
“Os pais […] foram informados da missão sagrada de Naulé e da honra que lhes caberia por fazerem parte do plano de Haimbili: o de salvar o seu povo de um tempo em que seriam governados por sobas não circuncidados, e, por isso mesmo, desprovidos da protecção dos antepassados. As consequências seriam devastadoras… as chimpacas de defesa do Cuanhama ficariam abertas ao voo do salalé e ao avanço do manhéu. [O Planalto do Salalé] .
Afinal, o que vemos desta janela semiaberta da História? Uma missão sagrada de que é encarregada uma virgem, uma vestal (foi assim com todos os povos nos tempos antigos). Mas o seu nome não é importante. Importante é o facto de que, desta vez, não ter sido uma escrava a ser indicada para a missão de guardar o espírito do grande soba, do último a ser circuncidado e por isso a ter o direito de reinar a partir da Ombala Grande da Ondjiva. A missão era de um grau muito superior: preservar a nação, salvar um povo que estava quase a perder a protecção dos antepassados… e se tal acontecesse as chimpacas ruiriam sob o ataque do salalé e o avanço do manhéu. O salalé, a formiga-branca que edifica morros de barro como fortalezas e corrói os paus dos cercados e das chipacas; o manhéu, a formiga negra com cheiro a cadáver, que faz fraquejar as etangas com o odor antecipado da morte. Tudo metáforas, imagens de um tempo que começa a redesenhar-se, dos hambas que deixam de ser circuncidados e da Ombala Grande que é incendiada e abandonada… enquanto os exércitos do Mwene-Putu começam a estar perigosamente perto…




