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Neste tempo ingrato, em que uma doença nova fareja cada canto como um bicho esfomeado, andamos nós, não de arma em punho para nos defendermos, mas de máscara em rosto para nos resguardarmos. E a poesia é, por vezes, a máscara que colocamos para irmos descansando da outra, da que temos de usar nesta guerra estranha e invisível, como uma viseira de um elmo medieval… que suspende o beijo e não deixa que a emoção nos caia nos braços. E isto foi especialmente sentido quando alguém muito próximo partiu para sempre, ainda junho ia a meio. Por isso, quando percebi que o poeta sensível, como é o Eduardo Bettencourt Pinto, tinha colaboração na Eufeme deste mês, escrevi para a editora, solicitando-lhe que me fosse enviado um exemplar da revista pelos correios. Fui lá ontem, pela manhã, resgatá-la. E não é excessivo este termo, pois o Covid impôs regras de segurança que levam um simples levantamento de carta ou encomenda parecer-se um autêntico resgate. Começou por ter que me integrar numa fila de várias pessoas cá fora, com distanciamento de, pelos menos, dois metros entre nós, formando uma fila de dois metros vezes sete pessoas. Já dentro dos correios, mais cinco pessoas, cada uma presa a um círculo laranja marcado no chão… para garantir a distância sanitária. As máscaras escondem rostos suados e cansados de tantas cautelas com um bicho que ninguém conhece mas que se sabe a saltitar por todo o lado, pronto a dar uma dentada ao mais incauto. Segue-se a espera para a máquinas das senhas. Ali chegado, tento ler as frases em letra muito pequena que a máscara e os óculos embaciados desfocam, para assim poder clicar no botão certo que me dará a senha respectiva. Clico num dos muitos botões, acreditando ser o mais indicado. Deviam colocar um botão só para o levantamento de poemas, penso eu. A máquina, com um rangido, vomita um papelinho com um número de ordem para aceder ao guichê das encomendas. Perco-me em cogitações, enquanto aguardo na fila, atento a dois metros para a frente e dois para trás e ao círculo laranja que me cerca os pés. A mil metros aguarda a revista que me trás os poemas. O que é bom está sempre mais longe… Entretanto, as senhoras guardiãs do guichê vão chamando, com uma voz dormente, pelos números das senhas. O círculos laranja vão ficando vazios e logo cheios dos pés de novos inquilinos. Até que chega o número da senha que guardo entre os dedos melados do gel desinfectante. É como se saísse dum torpor que me embacia ainda mais os olhos. Largo a prisão laranja onde me mantivera tanto tempo, a ponto de sentir as pernas ficarem dormentes. Limpo como posso a cortina das pestanas que não deixa que as pingas de suor molhem a máscara todo-o-terreno que uso e dirijo-me ao guichê. Este está resguardado por um vidro que reflecte a minha cara. Assusto-me, pois acho a senhora que me atende terrivelmente parecida comigo. As pestanas ficam mais pesadas e deixam escapar para os olhos algumas gotas salgadas e eu deixo de ver. Estendo a mão e agarro numa revista, esperando que seja mesmo a magazine de poesia que procuro. Fujo dos CTT, dos círculos laranja, da distância sanitária, da máquina de senhas, do gel desinfectante, do guichê das encomendas e atiro-me lá para fora como um sobrevivente. Mas um calor dos diabos aguarda por mim. São 37 graus trazidos pelo vento do deserto, desse lugar árido e quente de onde, num passado distante, vieram mouros e berberes, árabes e islâmicos de máscaras no rosto e alfanges no olhar. Há camelos de fina poeira nos passeios. Num gesto de rebeldia tiro a máscara e limpo os olhos. Sinto o ardor do sal nas pestanas e frescura nas mãos. Uma Eufeme abre-se para mim e eu entro. Tomo a direcção do Sul, onde “as casas correm para o mar” e guardo a “voz que se abrigou das chuvas”. Uma dor no peito faz-me vacilar. Também em mim, como ao poeta, dói-me tanto o mar sem minha mãe.