Views: 0
«LIVRO DE VOZES E SOMBRAS»
*** Ou quando a Ficção fica muito aquém da Realidade ***
(O prometido é devido)
No final do mês de Agosto último concluí a leitura do último romance – Livro de Vozes e Sombras – da autoria de João de Melo, um escritor natural dos Açores (ilha de S. Miguel) de reconhecida notoriedade.
Confesso que há muito tempo não lia este tipo de Literatura (romances).
Todavia, e reafirmando o que escrevi em post anterior, o tema principal desta obra literária – a FLA e o fenómeno independentista açoriano da década de 70′ do século passado – suscitou-me de imediato o meu interesse e curiosidade.
O tema em questão é-me familiar e quis confrontar os factos históricos com aqueles que foram alegadamente ficcionados no referido romance. Digo «alegadamente», pois alguns desses factos e/ou peripécias foram extraídos directamente dalguns acontecimentos verificados à época, alguns bem picarescos.
Não é, nem nunca foi meu propósito analisar o livro sobre o ponto de vista estético e/ou literário. Não tenho competência para tal. Essa análise, ou já foi feita, ou está a ser feita por oficiais do respectivo ofício.
De facto o romance está muito bem escrito e confirma o inegável talento do seu autor. Dividido em seis «sequências» e um «capítulo final», as respectivas narrativas despertam a curiosidade crescente do leitor (em especial daqueles que não estão familiarizados com o tema açoriano…).
Posto isto – e tendo em consideração a advertência do autor quanto ao carácter ficcional deste romance – limitar-me-ei a fazer um juízo crítico sobre o enredo e sobre as respectivas personagens.
Toda a envolvência do romance circunscreve-se a um tempo histórico muito definido e muito especial – o 25 de Abril e o PREC que dele resultou – remetendo-nos para um período de incertezas, enganos, ilusões, desilusões, conflitos colectivos e pessoais.
O fim da guerra colonial, a descolonização «exemplar», a revolução e o poder nas ruas, o processo doloroso da democratização e libertação da sociedade, as reivindicações laborais, as lutas intestinas e paradoxais entre as diversas facções políticas, as constantes contradições do poder político-militar instituído, etc,, tudo isto provocou um autêntico terramoto que abalou todas as estruturas da sociedade portuguesa de então, quer na Metrópole, quer nas então ilhas adjacentes, sem esquecer todos os demais territórios ultramarinos.
O arquipélago dos Açores, apesar do ostensivo isolamento e abandono a que estava sujeito, não ficou à margem deste processo revolucionário e não demorou muito para que as respectivas repercussões políticas, sociais e económicas fizessem sentir-se.
É neste clima efervescente que o autor constrói um novelo de narrativas, as quais, na maioria das ocasiões, são interpretadas na primeira pessoa pelas principais personagens do livro, muitas destas criadas à imagem e semelhança de pessoas bem reais à época.
Ora, uma das consequências directas do golpe militar do 25 de Abril e da revolução popular que lhe seguiu, foi a recuperação da liberdade e a tomada de consciência política sobre o presente o futuro das ilhas açorianas.
Se na Metrópole e nas colónias africanas as mudanças eram efectivas e sucessivas, não havia razão nenhuma para que os Açores e os açorianos ficassem à janela a ver a banda passar….
É neste contexto que os vários sectores da sociedade açoriana se organizam para fazerem face às novas realidades, às novas oportunidades e mesmo às novas ameaças que estavam a desembarcar diariamente nas nossas ilhas.
A forma como estava a ser dirigida a nova situação política – vulgo PREC – encaminhava o país (então pluri-continental) para o caos e para uma temida guerra civil.
Todo este cenário causava os maiores receios junto da maioria da população açoriana. Se em Portugal aka Continente tudo era possível, desde manif’s diárias, reivindicações de todo o tipo, saneamentos selvagens, ocupações de empresas e propriedades, etc, não havia razão nenhuma para que nos Açores ficassem a marcar passo….
Sucede que todas estas ondas de choque revolucionárias chegam aos Açores e apanham uma sociedade secularmente abandonada pelo poder central de Lisboa (Reino, República, Estado Novo) e desconfiada de tudo o que vem de lá, que por norma eram sempre tributos, ordens de mobilização militar e capatazes portugueses para mandar nos ilhéus.
Habituados a lidar com os castiços vendedores de banha-da-cobra que aportavam ( e ainda aportam!
) a estas ilhas, muitos açorianos puseram-se em estado de alerta com vista a defenderem a sua terra, a sua família, os seus haveres, os seus valores, a sua identidade cultural e especialmente dar voz à sua ânsia de liberdade e de libertação.

Ora, muitas dessas circunstâncias foram ignoradas ou omitidas no desenrolar das respectivas narrativas «ficcionadas», e, ao invés, surgem como «libertadores» a tropa de Lisboa e os seus sequazes nomeados pelo poder político-militar, sem esquecer a imensa minoria de seus simpatizantes que por cá agitavam as águas.
Embora o autor insista em classificar a sua obra literária de pura ficção, a verdade é que o « Livro de Vozes e Sombras» é um romance manifestamente ideológico e que tenta dar aos mais incautos (desconhecedores dos factos históricos) uma certa «lição moral», ou seja, uma luta entre o bem e o mal, onde os «trabalhadores», os «sindicalistas» e os «revolucionários profissionais» eram os bons e os independentistas (grande parte deles também trabalhadores, pequenos proprietários, comerciantes, estudantes, ex-militares do Ultramar, funcionários públicos, emigrantes, etc.) eram os malvados que queriam implantar aqui um protectorado sob a bandeira dos EUA….
Mas o que mais me chocou foi a obsessão do autor – obviamente escudado no narrador ou nas personagens – de apelidar/estigmatizar a FLA – e os seus membros, por inerência… – de fascistas e terroristas.
Isso, para além de constituir um insulto a todos aqueles que participaram nessa luta (actualmente representados pelos seus filhos e netos), constitui também um erro de histórico de palmatória.
A verdade é que a História veio dar razão àqueles que estiveram no lado da barricada independentista.
A Autonomia – embora em versão minimalista – , a libertação de Portugal duma nova ditadura de sinal contrário e a queda do Muro
de Berlim, revelaram bem onde é que estavam os «bons» e onde estavam os «maus».
Mas para os «maus» daquela época nunca houve o verdadeiro reconhecimento, recompensa ou mesmo um pedido formal de desculpas, quer pelo Estado Português, quer pela própria Região Autónoma dos Açores (não confundir com os Açores…), bem pelo contrário, pois foi esta -a RAA – que condecorou o tal senhor general responsável pelas infames prisões e pela expulsão de muitos cidadãos sem culpa formada.
@ Ryc

Like
Comment
Share