inconstitucionalidades nos açores PEDRO GOMES

Views: 0

O ESTADO DE EXCEPÇÃO E OS AÇORES

1. Numa decisão inédita no regime constitucional democrático português, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Estado e obtida a autorização da Assembleia da República, decretou o estado de emergência, através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, com fundamento no estado de calamidade pública, em resultado da pandemia pelo coronavírus Covid-19, o qual é aplicável a todo o território nacional, vigorando por um período de quinze dias, com início às 00.00 horas do dia 19 de Março.
O estado de sítio e o estado de emergência podem ser condensados na expressão “estado de excepção” e estão sujeitos à disciplina da Lei nº 44/86, de 30 de Setembro, no ordenamento jurídico nacional e aos limites jurídicos dos artigos 4º e 15º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, respectivamente, aplicáveis na ordem jurídica portuguesa.
2. O diploma que decreta o estado de excepção contém uma norma que estabelece que “em caso algum pode ser posto em causa o princípio do Estado unitário ou a continuidade territorial do Estado”, (artigo 5º, nº 3) que, em nossa opinião, é inconstitucional por violação dos artigos 5º, nº 1 e 6º, nº 1 da CRP, se interpretada no sentido de que proíbe a adopção de medidas legislativas ou administrativas que visem impedir a circulação aérea de pessoas entre o continente, os Açores e a Madeira.
O território do Estado abrange o território do continente e os arquipélagos dos Açores e da Madeira, estes politicamente organizados como regiões autónomas. Isto é, o território do Estado português é, por definição, descontínuo no conjunto das suas três parcelas, sendo o princípio da continuidade territorial definido como um princípio de diferenciação positiva na política interna e externa do Estado no artigo 13º do Estatuto Político-Administrativo dos Açores, única norma na ordem jurídica portuguesa que densifica aquele conceito. O decreto presidencial, porque não suspende a natureza do Estado ou a sua configuração territorial (o que apenas poderia suceder por um absurdo jurídico) está sujeito a uma interpretação conforme a Constituição, o que impede, sim, o Governo da República de adoptar medidas de excepção que agravem a natureza ultraperiférica dos Açores e da Madeira, que não tenham fundamento em razões de saúde pública e de combate à pandemia.
3. O regime jurídico do estado de sítio e de emergência continua a estabelecer que a execução da declaração do estado de emergência nas regiões autónomas é assegurado pelo Representante da República, em cooperação com o governo regional (artigo 20º,nº 2) numa norma inconstitucional, por violação do artigo 230º da CRP, pois o Representante da República já não representa o Estado na Região Autónoma, não tem competências administrativas, nem dispõe de competências de superintendência dos serviços do Estado na região, desde a revisão constitucional de 2004. A função que a lei comete ao Representante da República é absolutamente incompatível com o respectivo estatuto constitucional, não se antevendo como poderá assegurar a execução das medidas adoptadas em estado de excepção, quando há uma repartição competencial entre o Governo da República e os Governos Regionais (por exemplo, quanto à saúde ou à protecção civil).
A incerteza do tempo que vivemos não pode autorizar a incerteza do direito.

(Publicado a 25 de Março de 2020, no Açoriano Oriental)