in memoriam LUÍS CRISTÓVÃO DE AGUIAR 5-10-2021

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Crónica 420 MORREU LUÍS CRISTÓVÃO DE AGUIAR 5-10-2021

5.10.2021 Acaba de falecer Luís Cristóvão de Aguiar, um dos grandes nomes da literatura. Era natural do Pico da Pedra, onde nasceu em 1940, tendo a partir de 1999 adotado S Miguel Arcanjo no Pico como segunda casa.. Da sua vasta obra, destaca-se a Trilogia Raiz Comovida, tendo por ela recebido o importante Prémio Ricardo Malheiros, dos muitos que recebeu ao longo dos anos.

Em 2001 foi agraciado pelo Presidente da República com o grau de comendador da Ordem Infante Dom Henrique.

A literatura ficou mais pobre! O Pico da Pedra perdeu um dos seus ilustres filhos.

Deixa 3 filhos, José Manuel Aguiar, Artur Aguiar e Luís Aguiar.

Que descanse em paz.

 

Gostava de aqui recordar momentos inolvidáveis que com ele passei nos colóquios da lusofonia em 2009 na Lagoa e em Bragança e na sua casa do Pico. Recordo o que então escrevi:

12.8.2011 Parado no aeroporto da Horta, não sou o Passageiro em trânsito do Cristóvão de Aguiar, nem transporto o Fogo Oculto do Vasco Pereira da Costa, antes deixo que os ponteiros do relógio caiam lentamente, minuto após minuto, por entre o linguajar dos que, comigo, esperam um avião. Como sempre acontece, quando excursiono nestas ilhas atlânticas, nunca tenho vontade de partir: impérvio, permaneço sentado, quase imóvel, no pátio de observação do aeroporto da Horta. Estou de frente para o Pico que me pisca o olho, sorrateiro, por entre as nuvens, escondendo-se, amiúde, dos meus olhos perscrutadores. Ao contrário do Cristóvão não carrego comigo a ilha e a que transporto não é outra. Não trago a reboque este arquipélago, mas deixar a ilha é sempre uma partida sem regresso marcado, como quem faz um luto indesejado ao correr dos dias. Não levo comigo a dor nem a lágrima furtiva, apenas acalento o desejo do regresso numa noite de luar como o de ontem.

 

05.09.2009

Há dias escrevia-me ele (Cristóvão de Aguiar) a dizer:

Obrigado pelas tuas palavras de amizade. E também pelas fotografias que mandaste em devido tempo e nem sequer respondi, do que me penitencio. Quanto à Rosário [Girão dos Santos], tenho a dizer-te que é uma crítica de primeira-água. Sabe o que faz, e é muito segura no que escreve. Por vezes não chego à sua altura e não entendo certo vocabulário da hermenêutica, mas a culpa é toda minha, que sempre fui relapso à teoria literária e linguística.”

Muito inferiorizado me julgo, como sofria já com o meu mentor político, também ele ligado aos Açores (Melo Antunes) e outro mentor intelectual (também já falecido) o Zé Augusto Seabra. Se agora encontro neste amigo novo um escritor que se crê maldito porque outros o fizeram assim, um ser acossado por tudo e por todos, mas sobretudo por si mesmo, por outro lado, não me revejo nele ao entrar nesta fase adiantada da minha vida com um otimismo que me não é inato. Até hoje nem lhe respondi, pois, não sei como, nem hermenêutica nem exegese me tocam, que são ramos do conhecimento para além da minha compreensão, que estudos de Humanidades não tive, nem meus pais me deixaram e, se sou como sou, a meu pai o devo, tal como Cristóvão o é devido ao seu pai. Plantamos árvores, publicamos poesia e tivemos filhos em buscas incessantes pelo Santo Graal e desconfio que ambos sabemos que não existe, a não ser na busca incessante com que criamos, uma mera raison d’être nas nossas mentes conturbadas.

 

Cristóvão de Aguiar fez uma comparação lisonjeira, quando lhe disse que não mentia ao escrever pois o que saía da minha pena era genuinamente sentido. Afirmou que outro transmontano e escritor, de seu nome Miguel Torga, lhe dissera alhures que nunca mentia ao escrever poesia. Seria pela origem transmontana comum, mais do que qualquer outra coisa, que Torga não sou nem nunca fui a não ser na expressão de sentimentos reprimidos.

Sei que ele anda ocupado e acompanhado, mas encontrei um exemplar do modelo base que pretendo (em tamanho maior) para os nossos Cadernos de Estudos Açorianos…aliás foi a “Maré Cheia” que deu a ideia de fazer os Cadernos com a minha visão de forasteiro. Estão eles bem entregues para que deles construa, pedra a pedra, Cristóvão de Aguiar um pequeno novo Vértice, a revista vanguardista da qual foi saneado injustamente em meados da década de 1980. Ao fim de dois meses de silêncio pus a minha pena de croniqueiro a funcionar e enviei-lhe a cópia desse escrito (Crónica 67) na qual exprimo com a verve de jornalista que nunca deixei de ser, o que a escrita dele (que lentamente descubro) me proporciona. Para ele, a escrita nunca será catarse pois é fruto de amores incompreendidos entre si e a ilha…enquanto para mim a escrita e os colóquios da lusofonia são a catarse constante da minha guerra colonial sem mortos nem feridos, e tampouco tiros.

Dei comigo a sorrir, facto inusitado e deveras inopinado. Encontro tanto sofrimento na escrita do Cristóvão que me apetece cruzar este Mar Oceano e ir ter com ele ao Pico consolar as suas velhas penas. Durante quarenta e cinco anos sofri calado, ou nem tanto, escrevi para a gaveta dores e amores, raivas e ódios, cruzadas

 

Caro Amigo Chrys,

Após a longa conversa telefónica havida entre nós esta manhã, vim agora deparar com o teu texto de abertura aos Colóquios de Bragança. Como escrevi em epígrafe, é de mais! De mais, não porque considere lisonja o que escreveste sobre mim (seria uma ofensa que te fazia), mas porque tenho sido tão fustigado, aqui, na minha terra, que estava longe de pensar que ainda fosse possível a alguém dos arrabaldes de uma amizade recente, mas de uma forte empatia (um Australiano nos Açores), fazer uma análise tão séria e sábia sobre obra minha. Embora, e sem desprimor para quem a elaborou, a considere muito para além das minhas capacidades de escritor. Como o padre no Ofertório, digo-te: Senhor, non sum dignus!

De há uns tempos para cá, porém, tudo se tem passado como se uma varinha-de-condão estivesse a tocar-me no destino. E esses tempos para cá, é bom concretizá-lo, têm um ponto de partida: os Colóquios realizados na Lagoa em março – abril do corrente. Lá encontrei, contra todas as minhas expetativas, uma plêiade de personalidades que fizeram olhar-me ao espelho da minha humildade, ao mesmo tempo que me infundiram confiança e à-vontade, boa disposição e alegria, despreconceito e saúde intelectual…

Soltei-me dentro da minha caverna; ao princípio, dei alguns saltos a medo, mas procurei conter-me e ir subindo devagar em direção à luz que me ofuscava. Ainda ando encandeado pela sua intensidade e pela rapidez com que tudo aconteceu, mas, pouco a pouco, espero desenvencilhar-me dos muitos cadilhos que ainda me amarram a um cais de onde nunca embarquei e nem sequer me lembro se em cima dele fui ficando permanecido. Há dias, foi a Maria do Rosário com a sua acutilante e profunda análise ao meu tão mal-amado Passageiro em Trânsito, que me calou bem fundo, e me deu um sentimento de desforço de que há muito andava carecido. Agora és tu. Será este o ano da minha morte? Já não sei o que dizer mais. As palavras fogem-se como coelhos bravos a atravessar em correria a estrada do mato.

Um forte abraço do Cristóvão

 

09.09.2009

Isto das ilhas tem muito que se lhe diga, algumas estão de costas voltadas para o mar, como em S. Miguel, enquanto outras há que não vivem sem ele, como no Pico. Sei que é uma questão de tempo até começarem a zurzir nos forasteiros que ousam opinar sobre este arquipélago. Quando se perora sobre as nove filhas de Zeus urge não melindrar os interesses estabelecidos. As visões críticas ou não conformadas aos cânones podem acarretar sérios riscos para a saúde mental dos seus autores. Vozes críticas ou arredadas dos estereótipos não abundam nem são benquistas.

As elites dominantes e os poderes caciqueiros logo se insurgem. A ingratidão, vergonha e falta de patriotismo são epítetos comummente usados para denegrir os que ousam. Citam-se páginas relevantes da heroica gesta açoriana, com destaque para as guerras liberais e inúmeras desventuras de emigrantes que triunfaram. Surgem editorais e recensões violentas nos jornais locais. Os caixeiros-viajantes da cultura logo se arrogam o direito de defender a açorianidade ofendida. Tais declarações de repúdio raras vezes saem dos quatro cantos do arquipélago que falar dos Açores ainda não se tornara moda na grande capital do Império. Foi isto que, por mais de uma vez, aconteceu ao amigo, o mal-amado escritor Cristóvão de Aguiar. Apodaram-no de tudo e mais alguma coisa, pois convém sempre ser mais papista que o papa. Em meios pequenos é consabida a tendência para apoucar aqueles que das leis do esquecimento se desembaraçaram, como diria o vate, enquanto o imperador e séquito distribuem viagens e mordomias. Terras pequenas, invejas grandes, a reprodução do mote popular “a minha festa é maior que a tua”.

 

Fomos almoçar ao Clube Naval de S. Roque com um bom serviço de “buffet” ao preço de 7.00€ e café incluído. O Cristóvão de Aguiar proclamou-se guia e levou-nos às Lajes à “Semana dos Baleeiros” sempre após a “Semana do Mar” na Horta. Tive de mudar a anterior opinião sobre as Lajes logo que visitamos o que resta das muralhas do forte (ora reconstruídas e aproveitadas como espaço turístico) e o Centro de Artes e Ciências do Mar (na antiga fábrica da baleia SIBIL, equipamento industrial que se dedicou à transformação dos grandes cetáceos em óleos e farinhas). Havia lá uma moderna livraria, a única digna desse nome nas ilhas do triângulo. Nela encontramos inúmeros livros para acrescentar à coleção de autores açorianos.

Em amena cavaqueira dizia o Cristóvão que tinha conseguido algo que eu almejava, ver alguém a ler um livro seu num jardim de Coimbra. A surpresa foi ver o meu último livro “CHRÓNICAÇORES”, incluído na “literatura açoriana” e foi, então, que a jovem funcionária, Cláudia de sua graça, declarou que tinha adquirido o livro e estava a lê-lo em casa. Autografei outra cópia, com o ego exultante por estar ao lado dum célebre autor e ser eu a autografar a pretensiosa trilogia. Claro que após este incidente, as Lajes do Pico pareceram mais bonitas, soalheiras e convidativas do que em visitas anteriores.

Sentamo-nos numa esplanada na marginal a dessedentarmo-nos enquanto se punha a conversa em dia, antes de subirmos ao Alto da Rocha do Canto da Baía para visitar a “Cabana do Pai Tomás”.

Satisfiz a curiosidade de visitar a casa de Dias de Melo. Nas viagens anteriores ainda não conhecia o autor. Ali, espartanamente vivera, numa casa pequena e humilde, ora telhada de novo mas com o desconforto da minúscula casa de banho exterior no piso térreo. Em cima, o autor dormia, comia e escrevia. Do pátio exterior avistava-se a imensa mancha de Mar Oceano ponteada pelo pequeno farol da Calheta de Nesquim que serviria de inspiração a tantos dos seus livros.

Em linguagem cinematográfica chama-se a isto um “fast-forward” em que se rebobina a imagem e se passa adiante. Após 4 dias e cinco noites de convívio intenso e aprendizagem ilimitada na ilha do Pico, estava já em posição de aceitar que Cristóvão tinha razão ao afirmar sobre a literatura açoriana…

Depois de ler quase todas as obras de Dias de Melo, salvavam-se as baleias, outro livro mais intimista como “À Boquinha da Noite (2001) e pouco mais. Li e detestei “O Menino deixou de ser menino” (1995) e “Pena dela, saudades de mim” (1994) dum neorrealismo primário e básico que nada tem a ver com os livros mais antigos sobre os baleeiros.

Daniel de Sá tem como uma das melhores obras, a novela “O Pastor das Casas Mortas” e “Ilha grande fechada” (1992). Excluía a obra religiosa por razões óbvias, não a podia apreciar. Ressalvava bons textos que surgiram em guias de turismo como “Santa Maria Ilha-Mãe”, “S. Miguel, a ilha esculpida” e outro sobre a Terceira.

Entretanto, já lera outros poetas e escritores açorianos espantosos de quem poucos falavam. Martins Garcia era um deles…O problema é que sem querer metera-me (e aos Colóquios) numa toca de lobos de interesse esconsos e panelinhas em que pontificam menos valias. Ora bem, a minha autocrítica ao fim de 4 dias perante o Cristóvão, escritor maldito e malquisto nas hostes açorianas, era a seguinte: embandeirara eu em arco, louvando exageradamente, adjetivando em excesso e elevando aos píncaros alguns sem separar o trigo do joio. Gostava do Cristóvão, do Daniel e do Onésimo. De todos era amigo, mas existiam outros para desvendar.

De dezenas já lidas e folheadas a maioria não tinha a tal qualidade de que Cristóvão tanto falava. Sendo um forasteiro deixara-me iludir pela açorianidade, pela beleza narrativa das ilhas e costumes ancestrais. Embalara-me no canto das sereias. “O Pastor das Casas Mortas” fora já traduzido por mim para inglês. Dias de Melo até para japonês fora traduzido. Cristóvão ainda não. Nem outros escritores e poetas que o mereciam. Um crime de lesa literatura. Iria concentrar os esforços dos colóquios para os editar e traduzi-los. Teria de ler os restantes para apreciar a sua universalidade, além da matriz açoriana que a todos permeia. Sei que incorrera numa possível falácia de tomar a nuvem por Juno e louvaminhado em excesso os autores que os colóquios divulgaram. Teríamos de ser mais parcos nos encómios. Dias de Melo e Daniel de Sá já têm uma editora a traduzi-los e divulgá-los, falta fazer o mesmo para Cristóvão de Aguiar, um escritor universal com uma vastíssima obra. Em Bragança no 8º Colóquio iria iniciar a campanha para o traduzir (Bulgária, Roménia, Polónia, Eslovénia). Iria tentar a editora Almedina, no Brasil, para apresentar “Tabuada do Tempo” e de “Torga Lavrador das Letras” do Cristóvão de Aguiar. Se pudesse concentrar esforços talvez conseguisse algo até abril 2010.

No segundo dia da estadia, abusando da paciência do Cristóvão que as conhecia e não queria visitar de novo (ficou no ar condicionado na sala da receção), descemos às catacumbas do vulcão do Pico. Conhecida pela altura e beleza do Pico que lhe deu nome e das paisagens que se desfrutam do alto das suas vertentes, a Ilha tem na Gruta das Torres o verdadeiro contraponto das alturas e um atrativo não menos pitoresco.

O restante tempo, dias, tardes e noites picoenses foram ocupados com leituras, discussões e uma enorme aprendizagem. Surgiam em catadupa nomes e obras dos últimos quarenta anos sobre os Açores. Os autores eram açorianos, descendentes, emigrados e outros. Muito descobri naqueles dias com essa enciclopédia devoradora de conhecimentos e de livros que é Cristóvão de Aguiar, convidado especial do Colóquio da Lusofonia.

Ao chegar a casa e parando no café Refúgio, em pleno centro de São Miguel Arcanjo, ofereceram-me graciosamente o café por ser o último que ali tomava. Andados uns passos rumo à casa do escritor deparei com uma camioneta de passageiros estacionada aguardando o começo da semana para voltar a trabalhar. Acorreu-me a ideia peregrina de como seria uma aventura “pedir emprestada” a carripana, começar a percorrer as aldeias (ditas freguesias nas ilhas) e gravar as histórias que os passageiros fossem contando. A viagem não teria destino. Duraria tanto quanto as histórias dos passageiros. Não seriam cobrados bilhetes. Pararia em todos os locais, podendo deter-se para que fossem contadas as histórias e lendas do local onde paravam. Que livro maravilhoso não daria esse compêndio de histórias apanhadas ao acaso daqueles que tomassem o autocarro dos sonhos.

Para o comum dos mortais a vida prosseguiria o seu rumo, mas os Açores são uma réplica miniatural da corte lisboeta. As elites não perdoam aos que não comungam da verdade única com força de dogma. Cristóvão escreve com uma pluma incómoda. Reservou-se um papel de narrador que pensa, fala e escreve sem recorrer aos lugares comuns que tanto gáudio causam na população. Não reivindica verdades absolutas ou duradouras, limita-se a descrever o que sente e vê. Criaram-lhe a fama de irascível (quantas vezes com justas e fundadas razões?).

Eu recebi “avisos amigos” para os perigos quando o convidara a estar na Lagoa em março de 2009 para o 4º encontro açoriano da lusofonia. Congratulo-me que, relutantemente, Cristóvão tenha acedido. Ao longo de cinco meses trocamos correios eletrónicos e telefonemas criando uma amizade saudavelmente aberta e crítica. Estava eu carecido de aprender mais com este enigmático personagem que tantos cuidados incutia aos defensores da paz podre açoriana. Como acumulei milhas no cartão de viandante frequente aceitei a sua hospitalidade para uns curtos quatro ou cinco dias no Pico que Cristóvão assumiu como segunda pátria. Nove dias após partir de São Miguel Arcanjo na ilha mágica de regresso à ilha de São Miguel Arcanjo ainda reverberavam os encantos daquela. Assim me despeço da ilha prometendo voltar um dia, gostava de alugar casa por um mês inteiro e visitar as ilhas ainda desconhecidas pelo navegador sem barco (Graciosa, Flores, Corvo). Há qualquer coisa de mágico, íman secreto, que atrai e me faz querer viver ali. Talvez a vontade de ouvir as histórias dos passageiros da camioneta sem rumo. Terei de consultar um especialista para me tratar da eterna infidelidade, cada nova ilha é um novo amor, paixão ardente, desejo irreprimido.

Parafraseando Cristóvão de Aguiar (In Cristóvão de Aguiar (in Nova Relação de Bordo, diário ou nem tanto ou talvez muito mais, Publicações D. Quixote, 2004) direi da Língua de todos nós:

Amo-a sem o empecilho da palavra.

O Amor aprende-se, cultiva-se, rega-se.

Necessá­ria uma predisposição íntima onde se alastre essa Ferida Amá­vel, como tão eloquentemente escreveu, em título de livro, o Poeta Egito Gon­çalves. Os poetas têm sempre razão!”

 

DIÁLOGOS INACABADOS COM O CRISTÓVÃO

 

Escrever é fácil: comece com uma maiúscula e termine com um ponto final. No meio, coloque ideias.

(Pablo Neruda)

 

Isto de literaturas açorianas tem muito que se lhe diga e não pretendo entrar em discursividades nem dissecar os ódios e amores transientes que unem e separam os autores, pois isso daria material para vários volumes, mas recordo trocas de impressões nestes últimos meses, com o mercurial Cristóvão de Aguiar:

From: Cristóvão Aguiar Sent: Tuesday, August 10, 2010 10:46 AM

To: Chrys Chrystello Subject: Re: atualizado o caderno nº 4

Continuamos com a mesma pecha, a chamada açorianite aguda,… Afinal, continua tudo na mesma, tal qual a música da Relva: o mesmo e mais forte. Elogia-me a mim, para que te elogie a ti. Oh compadre, aqui na freguesia há só duas pessoas inteligentes. Um sou eu, agora diga a compadre quem será a outra… Já o Álamo e o João Afonso escreveram em 1981 no jornal União, de Angra, que O meu Mundo não é deste Reino, de João de Melo, era superior ao Mau tempo no Canal e o Velho Testamento. Francamente… Assim, não passamos de paroquianos convencidos de que somos os melhores do mundo. Chamei um dia a este complexo de superioridade “A Insular Bazófia”. Haja juizinho… Onde se lê: melhor que o Velho Testamento, deve ler-se: melhor que o Apocalipse de São João. Vide: Relação de Bordo I, pp. 297 (10 de junho de 1983) a 301


No dia 10 de agosto de 2010 01:47, <daniel.de.sa> escreveu:

Chrys
Bem poderias ter escolhido ao acaso, que o Vasco deixa pouco ou nada para restolhar. É tudo trigo limpo e bem ceifado. Gostei, no entanto, de um modo especial que não tenhas esquecido “O Gibicas” (um dos meus contos preferidos em toda a literatura portuguesa) nem “O Matateu”, o poema com que “converti” alguém que dizia não gostar de poesia. Mas falta ali a “Queen Nancy”, um dos poemas mais emocionantes que se podem ler em Português, e a Helena pôs (não sei se se valeu do meu trabalhinho ou se ela mesma o fez também) na sua Antologia.

Abraços. Daniel


From: Cristóvão Aguiar Sent: Wednesday, September 08, 2010 11:03 AM

To: Chrys Chrystello Subject: OBRIGADO!

Caro Chrys:

Mas eu já não faço anos… Ainda para cúmulo setenta ou zero sete, que é mais agradável e me dá a possibilidade de entrar para a escola em outubro para fazer uma revisão geral da vida que me foi dado. Muito grato, gratíssimo, pela tua lembrança. O septuagenário chama-se Luís, o Cristóvão não cuida desses pormenores do tempo que passa, só daquele que amolece os miolos quando a humidade aperta o garrote. Um grande abraça extensivo a todos vós do Cristóvão


From: Cristóvão Sent: Friday, September 24, 2010 2:34 PM

To: Chrys Subject: AÇORIANICES

Meu Caro:

De facto, é tal a pobreza, que vou pôr pólvora no lume, se estiveres de acordo, com dois artigos publicados no Expresso das Nove, o último dos quais hoje, que me foram pedidos pelo Diretor Jorge Brum. Ambos, como poderás verificar são de temática “açoriana”. Abraço Cristóvão


Desafios dos Açores para o século XXI, Cristóvão de Aguiar

“A atitude radical do ilhéu é chegar à porta de casa e interrogar o mar”. Vitorino Nemésio, in Corsário das Ilhas. “Como nada sei sobre o assunto proposto, vou fazer uma composição sobre a prima­vera”. Aluno liceal numa prova escrita de Língua Portuguesa. Muito gosto eu de desafios! Quem me tira um tira-me o mar e tudo! Não sei se o Arqui­pélago gosta deles. É natural que sim. Pelo menos, as canti­gas ao desa­fio têm sido timbre de quali­dade da cul­tura popular das Ilhas todas. A Ter­ceira e São Miguel levam-lhes as lam­pas. O velho Virgínio da Bretanha; o Pereira, da antiga Lomba de Santa Bárbara, da Ribeira Grande; a Turlu e o José da Lata, da Terceira, foram dos melhores culto­res do despi­que entoado no terreiro das cantigas ou nas cantigas de terreiro. Devo ter dei­xado dezenas e dezenas na sombra… A omissão é filha legí­tima da minha ignorân­cia. Para ela, peço uma indulgência plená­ria…

Sai o primeiro cantador, o Virgínio, e entoa:

“Entre merda foste nas­cido /

E na merda foste gerado /

Muita merda tens comido /

E dela toda tens gos­tado…”

E o Pereira, da Lomba de Santa Bárbara:

“Ainda me chamas galo, /

Desses que andam pela rua /

Já me viste a cavalo /

Nalguma galinha tua?”

Da Turlu, que, in illo tem­pore, ouvi despicar, boquiaberto, tamanho o aguçamento de lín­gua e o seu poder cria­tivo, estas duas cantigas:

“A felicidade vagueia, /

Fumo que passa veloz, /

Está sempre na nossa ideia /

E tão distante de nós…” e

“A minha língua é comprida, /

O que diz não te convém…/

E a tua está torcida /

Por isso não fala bem…”

A seguir, entra José da Lata e canta:

“Deitei uma velha em choco, /

Dentro de um cesto de palha, /

Lá na Canada das Vinhas. //

Descascou-me vinte ratas, /

Cinquenta e duas patas /

E trinta e cinco doninhas. //

Tinha pombas e coe­lhos, /

Melros pretos e tentilhões, /

Uma porca com cabritos /

E uma cabra com lei­tões.”

Quando há tempos recebi este desafio, por via eletrónica, para ser resolvido por escrito, em três mil carateres, sem espaços – logo me ocorreu Frei João Sem Cuida­dos… O seu Rei era invejoso e não podia ver nenhum dos seus Súbditos sem arrelias e apoquentações. Cha­mou um dia Frei João ao Palácio e fez-lhe três perguntas embaraçosas para serem respon­di­das num dado prazo. O frade saiu do Palácio real acabrunhado e cabisbaixo. Se respon­desse errado, o Rei mandava-o matar… Por acaso, o moleiro do reino encon­trou Frei João muito triste. Vivo e fino como azougue, logo se prontifi­cou, depois de saber as perguntas, a apresen­tar-se ao Rei vestido com o hábito de Frei João. Respon­deu às três perguntas como era dado, de tal sorte que Sua Majestade ficou toda contente e mandou o moleiro na paz do Senhor! Com que se entretinham os Reis de algum tempo!

Ora, este humilde escriba acocorado não tem moleiro para quem apelar! Nem molei­ros existem já – os últimos que conheci iam da freguesia para a Ribeira Grande moer a moenda nos moinhos de água da ribeira, já não sei se a do Paraíso se a do Inferno… Três vezes por semana, com cães velhos e doentes amarrados ao eixo da carroça para serem lançados à Tarpeia ribeiragrandense…

Caso os hou­vesse ainda, qual deles seria capaz de responder direito a um século pejadi­nho de desa­fios? É muito desafio numa só molhada de brócolos! Mas há um enorme desafio já proposto às Ilhas do Grupo Central, lan­çado não há grande tempo pelo eterno candidato à liderança do PSD, Casta­nheira Barros. Andou em digressão turístico-eleitoral por aquelas Ilhas sem culpa da criativi­dade do social-democrata relapso. Prometeu mandar construir túneis entre o Pico e São Jorge e entre a Madalena e a Horta. O ovo do Colombo, que resolve­ria a insula­ridade de uma assentada. Em estando a obra feita e inaugurada, sem­pre que um ilhéu radical che­gar à porta de casa para interrogar o mar, ficará menente e sem pé dentro de si: em vez de indagar o monstro de água, para ir à pesca ou contem­plar a Ilha em frente para lhe sondar os ventos e as nuvens, meter-se-á logo a caminho da emigração, a cavalo no automóvel ou na camioneta da car­reira… Um Metro de Superfí­cie, como o que está sendo construído em Coim­bra, fica­ria muito mais em conta, podendo estender-se às Flores-Corvo, à Gra­ciosa-São Jorge-Terceira, que também são filhos e filhas do mesmo magma… Quanto a São Miguel-Santa Maria…. Aqui, sim, um túnel tipo Canal da Mancha, mas em formato maior, que os micaelenses são assopradi­nhos e aman­tes fidelíssimos da monumentali­dade…Já excedi o número de carateres. Que o Eduardo Brum se não afromente, me per­doe a incontinência, e aceite os parabéns deste ilhéu desilhado, que muita lenha apanhou nas páginas do ora aniversariante

Expresso das Nove…. Pois alevá! Coimbra, 30 de janeiro de 2010 (EXPRESSO DAS NOVE, fevereiro de 2010)


A desunião faz a força, CRISTÓVÃO DE AGUIAR, Escritor

A descontinuidade geográfica das nove Ilhas dos Açores, que só formam um Arquipélago nos compêndios liceais (agora secundários ou secundarizados) de Geografia Física (a Humana não conta nem poderia contar, visto serem muito sortidas as gentes que as povoaram, deixando fortes marcas de origem, ainda bem visíveis, sobretudo no vocabulário) – talvez seja uma das razões de uma congregação mais fictícia do que real.

Cada Ilha, quer queiramos quer não, constitui um mundo à parte, daí a quase impotência de se erigir um reino, com estandarte, bandeira, hino condicente e outras quinquilharias realengas, e sobretudo encontrar um monarca que incarnasse os valores e aspirações do povo das nove ilhas atlânticas. Um rei não seria muito difícil de conseguir (elegê-lo, não: há tanto sangue real escorrendo nas veias de micaelenses e terceirenses – um desperdício para tantos hospitais carentes – que, espontaneamente, surgiriam meia dúzia, ou mais, de candidatos à sucessão do último Rei de Bragança…).

Depressa, porém, erguer-se-ia um grande alevante no peito robusto e aleitado da nobreza local, e não duvido de que as Ilhas acabariam por alombar com uma monarquia dual, com obediências diferentes, como na maçonaria, que as tem, e várias, o que acarretaria grande dispêndio para o erário público… Não gosto da palavra unidade, conotada com uniformidade e com quartel, o que, para o caso, não conviria muito, embora não raro um ilhéu viva confinado a um desses cativeiros, que uma Ilha, como todos nós sabemos, é ao mesmo tempo uma prisão e uma livre extensão de horizontes que estimula a viagem e a aventura. Ou a emigração por causas outras, que agora não vêm a talho de podão.

Preferia uma república a uma monarquia. Além de se estar celebrando o centenário da República Portuguesa, as das Ilhas seriam uma grande achega para os festejos populares… E, como o Presidente da República, no dia da sua eleição costuma proclamar, do alto da sacada de um Hotel: “Serei o Presidente de todos os Portugueses, quer vós tivésseis ou não metido na racha da urna o boletim de voto a meu favor ou desfavor…”, ter-se-ia, então, nas Ilhas, um homem só e sólido ao leme das nove barcaças…

Mas, a República, nas Ilhas, daria azo a graves problemas. Teria de haver várias repúblicas independentes, tirante a do Corvo, que ficaria agregada à das Flores, a de Santa Maria à de São Miguel, a da Graciosa e o Ilhéu das Cabras à Ilha Terceira: caso contrário, os distúrbios sociais seriam inevitáveis… Mesmo assim, muita cautela com os Corvinos, Marienses e Cabréus…

Por outro lado, e há sempre um pozinho positivo em todas as controvérsias, deixava-se o sangue azul a coalhar, para alguma necessidade imprevista, num boião, onde in illo tempore se conservavam os chouriços e os torresmos em banha de porco legítima… Creio firme e finalmente que só a SATA continuará sendo a grande esperança da pátria açoriana, como escreveu o poeta Pedro da Silveira, que Deus tenha, uma vez que, no seu monopólio quase milenar, consegue construir uma resistente ponte de união entre ilhas… A única e ténue ideia de Arquipélago pode ser averiguada in loco, e em parte, no Grupo Central, daí ter o ex-candidato a líder do PSD prometido, se fosse eleito, a construção de pontes para a outra margem… O Ovo de Colombo, que ninguém se dispôs a estrelar… EXPRESSO DAS NOVE, 24 de setembro de 2010


From: Cristóvão Aguiar Sent: Wednesday, November 10, 2010 3:59 PM

To: Chrys Subject: Re: Fernando Aires Diarista

Caro Chrys:

Pode utilizar os meus textos. Só no fim deves por: in Nova Relação de Bordo, Publicações D. Quixote, Lisboa. Desejo as melhoras da Lena. Abraço do Cristóvão


From: Cristóvão

Sent: Wednesday, February 02, 2011 7:51 PM

Subject: CARTA A FERNANDO AIRES

Eis uma carta que enviei ao Fernando Aires, aquando da publicação do livro de correspondência entre Eduíno de Jesus e Armando Côrtes-Rodrigues, e que mereceu da parte do Vamberto o galardão de livro do ano, da Livraria Solmar:

São Miguel Arcanjo, Ilha do Pico, 23 de março de 2003

Meu Caro Fernando Aires:

Como se pode verificar pelo cabeçalho, encontro-me no meu paraíso privado. Ainda não morri, mas… Aqui cheguei há mais de dez dias, parto a 31 do corrente, e pouco ou nada tenho saído. Não por causa do tempo (até tem feito dias primaveris), mas especialmente por ser tão aconchegada a minha casa, tão aquecida de livros e de paisagem, que pecado seria deixá-la assim tão sozinha e ao abandono de si mesma.

Tenho andado a ler e a escrever, sobretudo a ler, pela segunda vez (li o prefácio para aí três), a Correspondência entre Armando Côrtes-Rodrigues e Eduíno de Jesus, organizada e prefaciada por ti e que fizeste o favor de me enviar para Coimbra ainda não há grande tempo. Agradeço-te do coração a oferta bem como o autógrafo em que envolveste também a Margarida, o que bastante a sensibilizou, e que me pediu para te agradecer a lembrança. Já havia tido oportunidade de ler o livro antes de mo enviares. O José Manuel Mota de Sousa emprestara-mo e um pouco mais tarde recebia eu um exemplar que pedira à Conceição Garcia para que me mandasse da Ilha. Logo na primeira leitura verifiquei que todo o livro estava inçado de gralhas e de uma chusma de erros ortográficos (quase não há página em que não surjam), que não só o desfeiam como abona muito pouco acerca dos dois correspondentes, ambos professores exigentes de Língua Portuguesa e bons cultores da escrita, e de ti também, que és formado em Letras e igualmente escritor. Logo transmiti a minha impressão ao nosso amigo comum que me confirmou o desastre depois de ler o livro.

Como o exemplar me não pertencia, coibi-me de apontar, nas margens, a lápis ou a esferográfica, as incorreções. Mas, e logo que recebi o teu exemplar, pensei em trazê-lo comigo para a Ilha do Pico. Mal cá cheguei, tratei de pôr mãos a uma segunda leitura, desta feita de lápis na mão, que não seria delicado nem curial da minha parte escrever-te a dizer apenas que recebera o livro, o ia ler com muito interesse, te agradecia a lembrança e a dedicatória; enfim, essas coisas que muitos usam escreverem para não parecerem mal-educados, nem literária nem socialmente incorretos. Sabes bem que não tenho, e espero nunca vir a ter, feitio para tais duplicidades e dissimulações. Ora, em literatura, a hipocrisia e o porreirismo têm sempre um preço muito elevado, embora, momentaneamente, possam servir de escudo a quem se não queira incomodar ou ficar mal visto ou ainda recear ser impiedosamente segregado do grémio dos eleitos não sei bem de quê, nem porquê. Concluí a leitura ontem à tarde. Melhor, quedei-me na página 313, que um leitor engatilhado de atenção não é feito de ferro. E o resultado está à vista: nove páginas A4 de gralhas e erros ortográficos (não só os registei no exemplar como os passei para um papel à parte, indicando a página), que tas poderei fornecer, se assim o achares conveniente, caso venha a fazer-se uma segunda edição, mais limpa e asseada, da Correspondência entre estes dois sobressaídos poetas açorianos.

Não posso acreditar, por exemplo, que Armando Côrtes-Rodri­gues tenha escrito sugeitou, sivilizado, ageitada, remechendo, etc.,. (págs. 84, 85, 97, 198, respetivamente); nem que Eduíno de Jesus tenha grafado presado, con­certeza, adusir, etc. (págs. 262, 287, 295, respetivamente). Se assim tivesse acontecido, tanto em um como no outro, decerto aporias [SIC] à frente de cada incorreção, o que, na verdade, aconteceu apenas oito vezes e numa delas, na pág. 282, nem sequer com razão, porque existe a palavra espécimen ou espécime. Caso contrário, os [SIC] seriam na ordem das centenas, incluindo a acentuação, sobretudo nos verbos, e a pontuação caótica. Só não poderia vir o [SIC] no texto que tu próprio escreveste. Mas aqui vão alguns exemplos: albúns, Ensaista, chamou de (a que se chamou de (!) Círculo…), Síntaxe, cordealidade, por (verbo pôr), raíz, encadiar, etc. (págs. 15,16,18, 24, 26, 51, 56, respetivamente). E é pena! Será que nenhum dos teus amigos deu por tal? Nem o Onésimo a quem mostraste a primeira versão do prefácio, onde também se encontram muitos deslizes ortográficos? Ou tudo isso foi devido, como escreveste nos Agradecimentos, “à competência (sublinhado meu) profissional do Emanuel Cordeiro, funcionário da EGA, que passou a computador a volumosa Cor­respondência que agora, pela primeira vez, se torna pública?” Como as palavras se podem prostituir, se escritas sem alma! Sobre o prefácio teria muito a dizer. Ao contrário do que escreveu Tomás Borba Vieira, o prólogo está, em minha modesta opinião, muito aquém da garra do escritor dos primeiros quatro diários. Além da sua longuidão escusada, penso que te perdeste em antecipar o que as cartas dizem, beliscando assim muito do seu interesse e alguma da sua surpresa. Mas, não me vou alongar sobre este assunto… Não quero quebrar o encanto em que te encantaram os do costume. O melhor que fazes será seguir-lhes os conselhos, que tais amigos só estão bem bajulando, o que faz tão bem ao ego e tão mal ao trabalho artístico em geral e à escrita em particular. Vou concluir, pedindo-te que não interpretes mal as minhas palavras, nem as consideres esquinadas ou pouco amigas. Gostava que as interpretasses como sinal de amizade e de estima. Lembra-te de que ser-me-ia muito mais fácil dizer que escreveste uma obra-prima, ou, para citar o artigo de fundo do Suplemento Açoriano de Artes e Letras: “… Armando Côrtes-Rodrigues e Eduíno de Jesus / Correspondência é seguramente o livro mais importante destes últimos anos para a cultura açoriana.”

Seria necessária tanta incontinência? Um abraço do Cristóvão


From: Cristóvão Sent: Friday, April 01, 2011 1:58 AM

To: Chrys Subject: Boa Madrugada

Caro Chrys:

Não sei nem me interessa saber o que irão dizer os pensadores e escritores da douta literatura açoriana ao lerem o teu segundo volume da ChrónicAçores A falares tão insistentemente de mim e da minha escrita, hão de cogitar (desconfio que não usam fazê-lo) que és um vendido e andas a tirar das profundas um dos malditos tasmanos que estava já com a sua limpeza étnica concluída. Põe-te em guarda, companheiro, que te podem encomendar uma excomunhão ao Senhor Santo Cristo, que, segundo a tradição micaelense (o Sá deve sabê-lo) é terrivelmente vingativo… Não te agradeço as apreciações que fazes da minha obra; do meu caráter, temperamento e feitio, sim, com as quais concordo, porque gostaria de ser ainda mais que assim. Quanto às apreciações que teces sobre a minha obra (presunção e água benta…), embora me sinta lisonjeado, que não sou feito de pau, nem ando de pau feito, não sou nem serei talvez capaz de ficar de mente (des)obnubilada ao lê-las em letra de forma. Não quero contrair tentações, prefiro o lugar que há anos me reservaram, e ao qual me habituei tão bem, a ficar sendo citado por bocas que não sei que águas beberam ou que instrumentos tocaram… E não te agradeço, não por má educação, que conscientemente não pratico. Mas pela razão óbvia de que o agradecimento se não enquadra em nenhum género literário, só no subgénero da etiqueta, que já se não usa, a não ser na literatura obituária. De qualquer forma, envio-te um abraço. Cristóvão de Aguiar


From: CHRYS C Sent: Friday, April 08, 2011 10:21 AM

To: Cristóvão Subject: catarse

Como prometi acabei agora de ler o livro com tristeza múltipla, por ele ter chegado a este fim que não o é, por entender melhor aquilo que antevira na minha interpretação de ti como pessoa, por sentir o livro mais que uma catarse como um exorcismo…tive a felicidade de ter a tal conversa com o meu pai uns anos antes de ele morrer e já fiz há muito o mesmo com a minha mãe ora com 88… Tento desesperadamente não repetir muitos dos erros do meu pai com o meu mais novo que tu conheces…mas somos a herança genética dos nossos e de nosso só sobra aquilo que nos distingue deles e que construímos com muito sangue, suor e lágrimas como diria o Churchill. Como deixei lavrado no meu ChrónicAçores 2 sobre ti…Ora bem tudo isto foi escrito anos antes deste teu livro e sinto ter-te retratado bem…a nossa amizade é bem recente, mas mais profunda do que se poderia adivinhar…quiçá eu te entenda melhor do que cada um de nós sabe. Por favor dá isto a conhecer ao teu irmão por quem acabei nutrindo uma enorme admiração…Aquele abraço do tamanho deste Grande Mar Oceano. Chrys quase a partir para Macau


From: Cristóvão Sent: Friday, April 08, 2011 10:33 AM

To: Chrys Subject: Catarse, Exorcismo

Gostei muito da tua crítica e concordo contigo no que respeita ao exorcismo. O livro está sendo um êxito, pelo menos é o que me tem transmitido o editor, o Adelino de Castro, ex-sócio do inefável Madruga. Vou neste momento a caminho de Lisboa: amanhã parto para o Pico. Vou primeiro aos implantes, depois aos lançamentos, 30 no Faial, 6 de maio em Angra, 13 e 14 no Pico, 20 na Ribeira Grande, onde espero ver-te. Um abraço do Cristóvão


From: CHRYS Sent: Saturday, May 21, 2011 6:47 PM

To: Cristóvão Subject: Cristóvão de Aguiar é dragão

Gostei muito de estar contigo ontem. Foi uma alegria ver-te ali no covil do lobo em pleno concelho da Ribeira Grande com tanta gente a assistir. As tuas palavras foram emocionantes por falares de um tema que raramente se ouve naquilo que considero o maior desaforo a toda a minha geração e tua…de quem nos exigiu 3 anos de vida em troca de nada a não ser a destruição física, mental e a morte. Obrigado por te lembrares sempre de alertar as mentes esquecidas. Do livro nada digo, já to disse em ocasião anterior à ida para Macau quando o acabei de ler. Um excelente modelo de realidades, que INFELIZMENTE ainda vão sendo realidade em zonas rurais da Lomba da Maia. Uma revisita aos tempos que te moldaram, com um pai cheio de amor e não só… Também o meu, cheio de amor e sem saber como, me obrigava a ser mais do que eu podia e sem violência física, mas verbal me condicionou a vida até aos 45 embora tenha morrido quando eu tinha 42. Cada um de nós a seu modo lidou com a situação, superando-a ou não, mas obviamente marcados pelos anos de formação. Ainda hoje com o João tento desesperadamente (mas nem sempre com sucesso) evitar repetir muitos desses erros, mas sei que alguns repito. Deixo-lhe como herança alguns escritos e uma nacionalidade australiana para ele desbaratar como quiser. Tu deixas muito mais e eu, que me sinto fraternalmente ligado a ti, jamais esquecerei as excelsas noites de aprendizagem na tua casa em São Miguel Arcanjo de São Roque do Pico. Deste-me mais do que muitas pessoas em toda a minha vida e espero ter a oportunidade de um dia aprender ainda mais e absorver por osmose um pouco da tua enciclopédica sabedoria. Sinto-me irrequieto e lamento não ter menos dez anos para fazer as malas e mudar outra vez…. sei bem que há momentos na vida de cada um que guardaremos e sei que o de ontem podes bem conservá-lo pelos múltiplos significados, ali tão perto do Pico da Pedra que não quebraste nem te quebrou antes te deu força para subires a outros Picos.

Aquele abraço, Chrys

DA INGRATIDÃO E DA LITERATURA, CRISTÓVÃO DE AGUIAR UMA CRÓNICA AMARGA. UMA VERGONHA – CRÓNICA 149 – PONTA DELGADA 16/6/2015

 

Em 15/6/2015 na apresentação, pela diretora da Biblioteca Municipal de Ponta Delgada e pelo Dr Carlos Riley da Universidade dos Açores, dos dois primeiros volumes das obras completas de Cristóvão de Aguiar (50 anos de vida literária) éramos 10 na assistência e 2 eram do governo…há um mês houve uma sessão de homenagem (18 de abril na Casa Museu Guerra Junqueiro, Porto), em colaboração com a Casa dos Açores e com o Dept.º de Letras da Universidade do Minho onde lançaste a Obra Completa, composta por 13 volumes, a cargo das Edições Afrontamento, do Porto, que ganharam o concurso lançado pelo Governo Regional dos Açores.

Sei que tu, Cristóvão, um dos dois insignes autores do Pico da Pedra, tens fama de ser um autor difícil. Claro que és, pois poucos dominam a língua portuguesa como tu, poucos burilam a palavra até à exaustão e perfeição como insistes em fazer. Sei que a maioria das pessoas – embora possa cantarolar a popular Naufrágio imortalizada por Duarte e Ciríaco – desconhece que a clássica letra dessa canção universal é bem tua. Cristóvão “é um autor difícil e o seu mau feitio é conhecido. Claro que sim, frontal e crítico, não entrou, nem quis, em cliques, claques ou pseudo-tertúlias de intelectuais açorianos.” Radicado em Coimbra desde os anos de 1960, antes de ser incorporado no exército colonial português para ir para a Guiné e de terminar os estudos em Filologia Germânica, Cristóvão mudou-se para o Pico onde passa metade do ano. Em vez de voltar ao torrão natal de Pico da Pedra, S Miguel foi em 1996 para S. Miguel Arcanjo [Pico], onde é carinhosamente tratado pelos seus novos conterrâneos.

Mas depois de 15/6/2015, estarei para sempre chocado e desiludido com Ponta Delgada. Como se compreende que a oportunidade de terçar palavras com um dos mais importantes escritores do século XX ficasse desaproveitada sem assistência nem interesse das pessoas da ilha? Como se entende que um dos mais ricos e prolíficos autores da verdadeira identidade dos Açores ficasse a celebrar os seus 50 anos de vida literária para uma plateia com uma mão cheia de presenças?

Claro está que depois, na tua morte, serás aclamado e a TV e rádio estarão lá para falar de ti, o autor que – como ficou demonstrado – não é benquisto na sua terra. Pequenez de mentes. Insensibilidade, incultura. País pequeno de mentes pequenas, arquipélago ingrato a quem tanto fez para dar a conhecer a identidade açoriana e não o postal ilustrado que se vende aos turistas sobre hortênsias e lagoas…Não fiquei surpreendido, mas fiquei esclarecido sobre o valor que este país dá a um dos mais representativos ícones literários…fosse um cantor pimba ou qualquer personalidade famosa pelos pés de barro de fama fácil e o anfiteatro seria pequeno. Não sendo escritor, sou como tu, Cristóvão, em muita coisa, mas ontem ao despedir-me rapidamente de ti, estava emocionado pela amizade que nos une e envergonhado dos concidadãos desta ilha que aceitei como nova pátria. Queria pedir-te desculpa em nome dos 68 748 habitantes de Ponta Delgada e dos restantes 137 699 cidadãos da ilha (Censo 2011). Queria dizer-te que não é verdade, que há quem te leia e ama os teus escritos, mas não estavam lá para to demonstrar. Queria dizer-te que escreves melhor que muitos adulados, lisonjeados, sabujados, louvaminhados, engraxados, incensados, engomados, apajeados[1], bajoujados, escribas de Portugal e do arquipélago, mas só gerações futuras saberão reconhecer o teu valor. Queria dizer-te que mereces muitos dos prémios que são anualmente distribuídos embora deles não precises. Queria dizer-te que nos Colóquios da Lusofonia somos poucos, mas muitos te apreciam e entendem, mas não estavam lá ontem para to demonstrarem. Queria dizer-te que o teu invejável percurso nestas cinco décadas de escrita não tem paralelo, mas lá estaria eu a adjetivar-te e tu não gostas disso. Não faz mal, sem menosprezo dos restantes, há quem possa afirmar que és um dos mais notáveis escritores em português da segunda metade do século XX e que soubeste transmitir (mesmo negando a açorianidade) a verdadeira alma micaelense e quiçá açoriana.

Bem hajas meu amigo pelos livros que nos deste e de que agora compilaram em Obras Completas estes dois volumes. A tua alma mater (Universidade de Coimbra) explica que

“[Cristóvão de Aguiar] …tem-se revelado um escritor de mérito, a avaliar pelos prémios recebidos: Ricardo Malheiros da Academia das Ciências de Lisboa, pela “Raiz Comovida”; Grande Prémio da Literatura Biográfica APE, pela “Relação de Bordo” e o Prémio Nacional Miguel Torga, pelo livro “Trasfega”.”

Para que não restem dúvidas foste ilustre membro da “República de Estudantes de Coimbra” em cuja página se lê:

A Real República Corsários das Ilhas fundada em 1960 por iniciativa de estudantes provenientes do arquipélago dos Açores. Nos seus 41 anos de viagens a «nau corsária» já albergou marinhagem que se mostrou distinta. A título de exemplo, cite-se o nome de Carlos Candal; eurodeputado socialista era, em 1962, durante a grave crise que assolou a universidade, presidente da Associação Académica de Coimbra. Ainda, durante a crise académica de 1972, destaca-se Carlos Fraião; este antigo corsário foi membro do Comité Central do Partido Comunista Português. Também Germano de Sousa, Bastonário da Ordem dos Médicos e Cristóvão de Aguiar, escritor, viveram nesta República. Por falar neste escritor, o zé manuel deixou um comentário na anterior versão desta página que reescreve um passo do Relação de Bordo (1964-1988), livro do referido Cristóvão de Aguiar, em que lança um olhar sobre as suas experiências nesta casa quando por cá passou nos anos 60:

Coimbra, 1 de janeiro de 1964 – Na Real República Corsários das Ilhas, a cuja tri­pu­la­ção venho pertencendo desde 1961 (em outubro ascendi a 2º telegrafista), a pas­sagem de ano foi, para mim, pavorosamente triste! De resto, nunca fui de grandes ex­pansões nessas horas que a tradição instituiu como marcos de viragem não se sabe bem de quê. Alheio ao natu­ral estarda­lhaço dos meus camaradas co-repúblicos, bem comidos e muito mais bem bebidos, encafuei-me no meu cantinho a ru­minar. É que 1964 vai ser o ano em que vou dizer adeus à vida de estudante (para sempre? e ela agora que me estava cor­rendo tão bem: no terceiro ano sem ne­nhuma cadeira atrasada, mas é sempre as­sim). Isto por­que já no pró­ximo dia vinte e sete do corrente, numa se­gunda-feira logo de manhã, vou iniciar em Mafra o Curso de Oficiais Mili­cianos, com destino mar­cado para a guerra colo­nial. Consta da guia de marcha que recebi há dias, não esse des­tino, mas outro que vai de certeza de­sem­bocar naquele. Por isso, logo ao bater da primeira ba­dalada da meia-noite no reló­gio da torre da Universi­dade, senti que me es­tava afun­dando em terreno pouco firme e lodoso. Cheguei da Ilha em finais de setembro com uma mala na mão e sem dinheiro com que mandar cantar um cego, quanto mais para con­tinuar os estu­dos. Havia justamente perdido a bolsa da Junta Geral do Distrito Autó­nomo de Ponta Delgada, novecentos es­cudos mensais, mas que me davam, resvés, para me ir sustentando em Coimbra. E perdi-a, não porque chum­basse, mas por não ter atin­gido a nota final de catorze valores, classificação exi­gida a partir do segundo ano até o final do curso para a manu­tenção da referida bolsa.

Po­dia ter pe­dido di­nheiro emprestado, a juro de dez por cento, como é cos­tume lá na minha fre­guesia, mas meu Pai zan­gou-se comigo de­vido a um namoro reatado que ele não que­ria, derriço que, uma semana após a minha chegada a Coimbra, se des­manchou na se­cura de meia dú­zia de linhas de uma carta, que me acompanha, na car­teira, do­brada em quatro, as dobras delidas e enferrujadas… Por tal motivo, ne­gou-se a ser mi­nha fiança. Perdi a ca­beça e pedi que me antecipassem a incorporação! Veja-se o para­doxo: em tempo de guerra ser meio volun­tário, eu que, se ti­vesse co­ragem e juízo, devia, mas era desertar daqui para fora. Na Ilha não queria ficar. Mi­nha tia Lurdes e o Ti José da Costa de­ram-me coragem e o dinheiro para a pas­sa­gem de barco e ainda mais algum para me ir tenteando. Cheguei à Re­pública e logo pus os meus companhei­ros ao par da mi­nha situa­ção. Houve reunião de casa à noite e ficou de­cidido, por unanimidade, que eu fi­caria lá na mesma com todas as prer­rogativas de um Corsário e só pagaria as minhas des­pe­sas, que seriam aponta­das pelo Comissá­rio de Bordo da Nau Corsária, quando recebesse os pri­meiros ordenados de aspi­rante. Eram apenas quatro meses que ficaria a de­ver, de outubro a janeiro, que or­çariam em cerca de três contos de réis. De­pois, quando viesse de Mafra passar os fins de semana, andaria à le­bre, como se diz em lin­guagem acadé­mica. Suspirei de alívio e co­movi-me com ta­ma­nho com­panhei­rismo de que poucos como os ilhéus, fora das Ilhas, são capazes. Por não conseguir perceber bem os motivos que levam um gajo a querer meter-se na guerra… terei que reconhecer que às vezes só se dá pelo erro depois de se ter dado o passo inexorável da tomada de decisão e consequente prisão às amarras que daí decorrem… nos tempos atuais, em boa consciência, eu, o corsário que escreve estas linhas, teria que manifestar, a um colega que se me aparecesse com o mesmo dilema existencial que fosse pedir telha e comida ao Exército para o qual fosse servir… Mas, excetuando este detalhe que se prende com a valoração do mundo e com a justeza, ou não das coisas, o texto retrata aquilo que os Corsários têm melhor sabido fazer, não deixar um irmão na mó de baixo. Termino citando os versos de Camões apostos numa das paredes da sala de refeições da Casa:

“Mais vale experimentá-lo que julgá-lo, mas julgue-o quem não puder experimentá-lo”

Dito isto à laia de introdução tenho uma declaração de interesse pessoal a fazer:

Sou amigo incondicional do Cristóvão de Aguiar, meu mentor na casa do Pico onde me recebeu, a mim e à minha mulher, como se de amigos de longa data se tratasse, nós que éramos de amizade recente surgida em colóquios da lusofonia. Durante os primeiros tempos cavaqueei longamente com o Cristóvão. Ambos, éramos e permanecemos, exaltados e revoltados contra a injustiça, quimera ensinada em verdes anos. Com ele aprendi e compreendi a canga que os cachaços insulares carreavam, muitas vezes, sem o saberem.

Numa fase seguinte, entre muitos escritores locais que fui lendo, voltei-me para a obra deste autor. Uma prosa que se cola como uma sanguessuga e sorve o sangue impedindo a irrigação cerebral. Fica-se refém da escrita, que não sendo fácil, enleia e se insinua na tentativa de forçar o leitor a buscar a compreensão do que lhe está subjacente. Embrenhei-me nos escritores que fui desbravando. Ao longo dos anos falei e escutei a maior parte deles (entretanto, já nos deixaram Fernando Aires, Daniel de Sá, Dias de Melo). O dilema da pequenez das ilhas para um autor se afirmar sem ser reconhecido fora delas, a atração pelo mercado continental mais vasto como forma de afirmação e alforria literária criando um misto de desligamento e aportuguesamento dos autores que se mudaram de armas e bagagens para fora das ilhas, a inveja e ciúme dos que não conseguiram atingir esse patamar de reconhecimento continental, a emancipação de outros que venceram nos EUA e Canadá e a tarefa ingente dos que permanecendo conseguiram alcandorar-se a um reconhecimento externo.

O que muitos deles não acreditavam era que por serem autores açorianos podiam aspirar a serem universais, não apenas insulares, não apenas portugueses, se entrassem em mercados mais vastos da Europa e do mundo. Poderiam chegar bem mais longe e libertar-se da prisão invisível que é a pequenez das 9 ilhas. Para isso, teríamos de mondar mercados novos e virgens, como a selva amazónica antes dos novos bandeirantes. Se não chegassem às novas gerações, poderiam alcançar descendentes, e expatriados que aprendem hoje o orgulho da nação açoriana, na cultura, tradição e outros valores primordiais que tão arredados das escolas andam. Mas os colóquios queriam levá-los a mercados e leitores insuspeitos, incluindo a antiga Cortina de Ferro onde há gosto e apetência por escritores lusófonos. Para isso, idealizamos a série de Antologias, uma bilingue para captação do mercado norte-americano e canadiano, outra maior, em dois volumes, uma coletânea de textos dramáticos para o ensino secundário e uma antologia no feminino dado que as autoras são sistematicamente esquecidas na comunidade conservadora e machista como é a sociedade açoriana.

Todas estas obras são didáticas para serem estudadas nas escolas e se propagar este vírus altamente contagioso da escrita açoriana para leitores neófitos. Depois, deparámos com um fenómeno típico das sociedades insulares e bairristas, a existência de “capelinhas”, cliques e claques, em torno das quais gravitavam alguns. Nem todos de qualidade despicienda, mas dependendo dessas cliques para artigos de jornal ou recensão crítica. Na década de 1990, lentamente, os escritores açorianos foram encontrando o seu espaço, não havendo míngua de quantidade. Na maioria, sem projeção para além das ilhas, com exceções contemporâneas. Falta destrinçar, entre as centenas de autores, os que realmente merecem ser incluídos em coletâneas e os que se serviram do rótulo da açorianidade para terem visibilidade que, de outro modo, não teriam.

A solução que adotámos foi a de ignorar quem era quem, e sermos nós e os autores dos nossos projetos, a avaliar a qualidade dos autores, com a ajuda dos que já conhecíamos e em quem já confiávamos. Daí as escolhas primeiras das antologias que posteriormente serão alargadas à medida que os formos descobrindo, sob o enorme guarda-chuva da Açorianidade que a todos alberga. Nem sempre é fácil, pois ao lado de autores como Fernando Aires, Cristóvão de Aguiar e Eduíno de Jesus surgem autores que podemos designar como a Maria das Capelas, o António da Lomba e o José de Rabo de Peixe. Importantes até poderão ser de um ponto de vista de cultura popular, regional ou local, mas não deveriam nunca estar sob um rótulo de literatura. No 9º colóquio da lusofonia (ou 4º Encontro Açoriano da Lusofonia, abril 2009), Cristóvão de Aguiar rejeitou (mais uma vez) o rótulo de literatura açoriana, por considerar que faz parte da produção literária lusófona.

«O título (literatura açoriana) é equívoco, porque pode parecer que é uma literatura separada da literatura portuguesa», afirmou à agência Lusa o escritor.

Noutro qualquer dia escrevia eu que mal se vislumbra a costa da Bretanha em frente à janela do meu castelo aqui nesta falsa na Lomba da Maia onde habito. O grande Mar Oceano confunde-se com o azuláceo ou acinzentado céu, depende da cor das lentes com que se acorda. Está um tempo caramonico, como dizem em Terras de Miranda, sem necessidade de escarrabunhar os pés por estarem carraspudos. Sinto a falta do sol que me anima e vitaliza nesta humidade entorpecente que amolece corações e fenece almas. Assim desabafava mutuamente na guerrilha verbal contra a falta da função clorofilina que cerceia as musas e embota mentes.

E era então que me contrapunha Cristóvão de Aguiar “O tempo está mesmo abafado. Abafa o corpo e sobretudo a mente. Nunca mais há tempo decente”. Otimista acredito que melhores dias virão. Concentro-me numa conceção positiva rumo à realização dos objetivos que pensa terminar durante o curto passeio terreno que lhe deram a oportunidade de usufruir. Os problemas, por maiores que sejam, são meras contrariedades. Umas maiores que outras. Assim repito para crer no que digo. O tempo as curará retirando-lhes o relevo e importância ou resolvendo-as. Os momentos incomuns de felicidade e alegria devem ser fruídos em plenitude. Comemorados, celebrados, prolongados e recordados. Para isso sirvo-me da escrita. Para reviver momentos bons. Como são normalmente raros convém que perdurem, cinzelados nas pedras da lembrança. Criam trejeitos, esgares de sorrisos nas comissuras dos lábios.

Estas são as imagens que guardo deste autor que tanto aprecio e que ontem foi totalmente ignorado pelos habitantes da ilha e em especial de Ponta Delgada. Está provado que Cristóvão de Aguiar não dá votos a ganhar. Ainda bem. E termino com esta palavras que lhe dediquei em 2013

  1. Ao Cristóvão, Pico, 9 ago 2011/13 out 2013

descobriram no pico

maroiços milenares

piramidais construções

galerias ocultas

sem múmias nem tesouros

sem origem nem fim conhecido

falaram de fenícios, cartagineses

gente da pré-história

 

mas a verdadeira pirâmide

reside mais a norte

em s miguel arcanjo

numa atulhada falsa

com vista para s. roque

é a universal biblioteca

da nova alexandria

 

é lá que todas as noites

os livros se põem a dançar

debatem e trocam impressões

dão conselhos e admoestações

referem prodigiosas citações

partilham bailhos e saber

da universidade da açorianidade

 

[1] a·pa·je·ar – verbo transitivo, 1. Acompanhar (como pajem).2. Lisonjear, adular.”Apajeados”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013,