imperdível: o ranking da discórdia

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O RANKING DA DISCÓRDIA
Quase diariamente faco um exercício de debate sobre a realidade portuguesa com um amigo confundido de direita. As trocas de áudio são tão longas que praticamente trocamos podcasts. Metade do tempo fico a rir com a disparidade de opiniões mas, na verdade, gosto de ouvir pensamentos nos antípodas dos meus.
Ontem discutíamos, entre outros, o ranking das escolas. Entretanto já li vários textos e opiniões sobre o tema e fico com a sensacão que se escolhem lados sem ir ao fundo da questão.
A minha experiência em instituicões de ensino privado é zero. Passei os 8 anos seguintes à primária nas escolas respectivamente classificadas nos lugares 476, 240 e 498 do afamado ranking. Portanto, pertenco à fatia maioritária da populacão que aprendeu consoante a sorte ou azar de apanhar um bom professor e uma turma com poucos indíos.
Parte da indignacão vai para a aldrabice do ranking em si. A média é mais alta em sítios onde os alunos são escolhidos a dedo e as entradas (ou permanências) condicionadas. Já no ensino público não há escolha e como tal, as médias finais retratam mais fielmente a sociedade. Ora, isso é verdade.
Depois há também a constatacão mais ou menos óbvia que há escolas públicas muito boas, algumas médias e outras, muito más. Se cavarmos mais um bocadinho vamos perceber em que zonas estão as piores e, com algum grau de certeza, percebemos que a zona ou bairro, a existência ou não de problemas sociais, as condicões de habitabilidade e o extrato social dos progenitores vão condicionar o desempenho das escolas. Sei que existem excepcões mas acho que este retrato será mais ou menos de senso comum.
É contudo na parte em que se afirma que o ensino no privado é mau que eu comeco a ficar baralhado. Entendamo-nos. Eu sou um acérrimo defensor da escola pública, completamente contra a proposta da “escolha individual” que a IL preconiza com base no modelo sueco (que não tem escolha alguma – poderei falar sobre isso noutro texto) e acho que o investimento público deve ser canalizado para a educacão. Sempre e em primeiro lugar.
Quando ouco António Costa dizer que parte do dinheiro da bazuca vai para mais estradas no interior, fico com os cabelos em pé. Sem creches e com os professores pagos com esmolas, continuam a meter dinheiro em estradas? É criminoso.
Mas dito isto, querer ignorar o óbvio é que me parece um exercício de meter a cabeca na areia. É claro que os colégios privados fornecem ensino de qualidade. Pago a peso de ouro, apenas para as elites, inacessível para alunos com outro tipo de necessidade e por aí fora. Estamos de acordo. Mas para quem lá está…claro que têm muito melhores condicões de aprendizagem do que a maioria cá fora.
Parte do problema não chega do ranking mas sim da degradacão da escola pública ao longo dos anos. O que eu gostaria, em tese, é que colégios privados não existissem e a escola pública universal oferecesse oportunidades de aprendizagem como aquelas que uma pequena elite tem a pagar.
Um sítio onde os instrumentos musicais não se resumissem a uma flauta, o complexo desportivo fosse mais do que 100 metros de cimento e as actividades extra-curriculares não fossem apenas a eterna visita ao aquário Vasco da Gama.
Abri ao calhas a página de um desses colégios de betinhos. Escolhi o Moderno. Vi um menu de almoco com 4 ou 5 opcões onde figurava raia com acorda de coentros. Escola de música e actividades extra-curriculares que iam do ballet ao british council, do judo ao ténis, do futebol à ginástica. Salas todas bonitas, edificios em cimento e janelas lavadas. Eu não sei como foram as vossas aulas mas as minhas de educacão física no 498 ou no 240, consisitiam em jogar futebol num pedaco de cimento com balizas feitas com pedras ou futebol humano, o melhor desporto de sempre para quando nem uma bola de qualquer coisa a escola tem. Nas aulas de inglês nunca ouvi um professor a fazer um diálogo, quanto mais British Council. Refeitório com raia frita bom, teríamos primeiro que ter um refeitório. Aulas que por vezes eram dadas em barracões imundos e gelados no inverno, passando a imundos e estufas no verão. E, na falta de educacão sexual, tínhamos o professor de electrotecnia que, enquanto nos explicava como ligar uma caixa de derivacão, contava sobre o último filme pornográfico que tinha visto e onde, cito, “uma preta tinha aviado 5”. De notar que ele nos contava isto para que um grupo de 4 ou 5 alunos, entre os quais uma rapariga de origem angolana, o ouvisse bem. Portanto, ali pelos 13 anos, ainda não sabia que raio tinha feito o Van Gogh com a orelha, que muro era aquele em Berlim ou como se chamava a frigideira que no céu se formava com estrelas mas, em compensacão, sabia o que uma preta com 3 buracos e 2 mãos conseguia fazer. “Street smart”, dizem-me. Não nego a aprendizagem “extra-curricular” que aprendi na escola mas, enfim, aos 13 anos acho que teria preferido judo.
Sei que existem escolas públicas excepcionais. Não frequentei nenhuma delas mas os nomes são mais ou menos conhecidos. Pessoalmente preferia que, em vez de denegrirmos os colégios privados, pensássemos como é que a escola pública se poderia aproximar daquele nível de ensino. Ou por outras palavras, como é que poderíamos fazer para que cada escola de bairro fosse de qualidade aceitável, para que os nossos pais não andassem com esquemas de moradas ou a contar trocos, na procura de algo melhor?
Eu não acho que o problema maior esteja no parque escolar ou nos equipamentos. Pelo menos nos dias de hoje. Acho que passa muito pelo reconhecimento (ou falta dele) que atribuímos aos nossos professores. Acho que passa pelo facilitismo das avaliacões (para as estatísticas da UE) e também pela falta de temas fora dos programas convencionais. Lembro-me sempre da vergonha que senti ao pegar numa baga, num arbusto aqui perto de casa, e ouvir o meu filho a dizer que aquela não era boa para se comer mas a vermelha do lado já podia ser. Ele que ao fim de 6 anos na escola já aprendeu a fazer fogueiras, cabanas de madeira, orientacão com mapas, 3 linguas, diferencas entre cristãos, muculmanos e judeus, experiencias com N instrumentos musicais, pratica de desportos que vao do hoquei no gelo ao golfe, do judo à esgrima, do futebol ao ténis. Sabe muito menos de matemática do que eu sabia na idade dele, é um facto, mas percebe muito melhor o mundo.
Ora, não existindo um modelo perfeito, julgo ser um tiro no pé ignorar a decadência do ensino público e condenar a oportunidade de negócio das escolas privadas. O que nós, defensores da escola pública devemos fazer, é garantir que a qualidade da escola universal deixa os colégios sem negócio.
Como é que isso se faz num país pobre, com enorme abandono escolar, com professores pagos miseravelmente e sujeitos a carreiras de instabilidade, é que me parece um debate mais alongado.
O que o ranking nos diz, em primeiro lugar, é que o sítio onde nascemos nos dá (ou tira) uma vantagem na corrida a uma posicão na vida.
E sim, já sei que há 500 000 exemplos contrários. Mas em média, se pensarmos em todos os alunos destes colégios e os restantes das escolas públicas (as boas, as más e as miseráveis), não me parece difícil perceber quem tem as melhores condicões de aprendizagem.
Sendo a educacão pública o pilar de qualquer país que ser quer civilizado e de primeiro mundo, a defesa da carreira docente parece-me o primeiro passo para se chegar a algum lado neste debate.
Cada um de nós terá as suas histórias da escola pública. Eu guardo com saudade os bons professores que tive e já me esqueci da maioria, de tão irrelevantes que foram. Se me perguntassem há 30 anos se preferia ter aulas no colégio moderno ou passar os intervalos entre aqueles barracões da imagem, eu teria dito sem hesitar, mesmo com o perigo de ferir a vista nos sapatos de vela, colégio Moderno. E só para jogar futebol num campo com balizas, até calcava uns redley sem ser obrigado.
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