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A Figura Cultural de Macau.
Há poucos dias, numa entrevista ao jornal Ponto Final, o arquitecto Carlos Marreiros, sugeria que Camilo Pessanha [que está com inteiro merecimento no panteão da literatura portuguesa] bem poderia ser o rosto português da figura cultural de Macau.
É uma opinião muito respeitável, mas estou completamente em desacordo.
No meu entendimento, o rosto português da figura cultural de Macau é Manuel da Silva Mendes [1867-1931].
Quando aportou a Macau em 1901, já era o autor de uma obra seminal, Socialismo Libertário ou Anarquismo, publicada em 1896 [e reeditada em 2006].
Manuel da Silva Mendes é uma figura ímpar: pelo ethos emergente da sua omnipresença cultural e cívica, pela sua obra filosófica , estética e sinológica, pela sua requintada faceta de coleccionador de obras de arte, ou ainda como professor e reitor do Liceu, vereador do Leal Senado ou como advogado.
Recordo que, em parceria com Rogério Beltrão Coelho, apresentei a sua obra [quase] completa, justamente intitulada, Manuel da Silva Mendes: Memória e Pensamento, em três volumes, com cerca de 1800 páginas.
Ficaram de fora os textos jurídicos, que não estavam, [e continuam a não estar], acessíveis.
Não falando da casa apalaçada, de tai pan, que mandou erigir na colina da Guia.
O seu nome também está na toponímia local.
É uma personalidade que se impõe por si própria e está no centro de uma constelação axiológica que liga os valores luso-chineses e sino-portugueses e que a encartada lusitana docta ignorantia manifesta dificuldade em ler para compreender.
Sobre Manuel da Silva Mendes escreveram ensaios magníficos, personalidades tão diversas como, por exemplo, Graciete Batalha, António Conceição Júnior, Amadeu Gonçalves, Ana Cristina Alves, António Graça de Abreu, Carlos Botão Alves, Erasto Cruz, não esquecendo o valioso trabalho pioneiro de Luís Gonzaga Gomes.
Recordo estas palavras sábias de Henrique de Senna Fernandes, proferidas numa conferência em 1983:
“Manuel da Silva Mendes, observador arguto, crítico contundente, reverente apaixonado de arte chinesa, cultor e poeta do taoísmo.
Um perfil de homem público e de letras, injusta e inteiramente desconhecido pelos portugueses de Portugal, mas que está no coração e na admiração dos macaenses, muito mais, e a grande distância, do que Wenceslau de Morais ou Camilo Pessanha”.
É evidente que não há personagens perfeitas ou imaculadas e sob todas elas pairam sombras e claridade.
Um ícone da cultura local, Monsenhor Manuel Teixeira nutria uma vincada antipatia por Camilo Pessanha e por Manuel da Silva Mendes e sobre eles escreveu páginas corrosivas, nada isentas e com um espírito que pouco ficou a dever à caridade cristã.
Macau foi sempre uma urbe particularmente reactiva aos portugueses reinóis e metropolitanos.
Pessanha e Silva Mendes, figuras tocadas pelo génio, queixavam-se amargamente dessa especificidade, mas como Confúcio disse, nos ‘Analectos’,
“não vos preocupeis por ninguém vos conhecer; cuidai, antes, de merecer serdes conhecido”.
Repousam ambos no campo santo do Cemitério de S. Miguel Arcanjo.
No meu ponto de vista, Manuel da Silva Mendes representa o expoente máximo da intelligentzia portuguesa expatriada, um misto de sensibilidade e de entendimento, de espiritualidade e de racionalismo e também de amor a essa entidade mítica que é Macau, onde tantas personalidades de excepção tiveram a sorte de viver ao longo dos séculos.
Só tenho a agradecer ao arquitecto Carlos Marreiros a oportunidade de modestamente reflectir em voz alta sobre a figura cultural portuguesa de Macau.
ANTÓNIO ARESTA
(Ex-docente em Macau. Colaborador regular do JTM, desde há décadas).
Jornal Tribuna de Macau, 17 de Maio de 2022.

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- Vicente MonteiroQuem sou eu para discordar!?!?!? Contudo, gostaria mais que se explorasse o que os unia (Camilo Pessanha e Silva Mendes) do que os afastava. A meu ver, cada um, à sua medida e dimensão, representaram na época em Macau o que de melhor havia na intelectualidade portuguesa. Portanto, para quê colocar a questão de confronto entre ambos? Bem sei que, sendo contemporâneos em Macau, se digladiaram, mas apenas no campo da polémica intelectual, porque, segundo creio, eram ambos republicanos e adeptos de uma sociedade liberta (ou libertária), quer dizer, sem limites à liberdade de pensamento. Ambos foram advogados e professores, mas, segundo julgo saber, só Camilo foi também juiz, exactamente porque na época, faltando o juiz titular, o cargo era exercido pelo Conservador do Registo Predial, cargo que Camilo exerceu, mas, que eu saiba, não Silva Mendes.
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- 10 h