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CRISTO PINTADO EM LISBOA HÁ 500 ANOS
TORNOU-SE UM ÍCONE REAL DA DISTANTE ETIÓPIA
Como um Cristo pintado em Lisboa há 500 anos se tornou um ícone real da Etiópia. Na embaixada enviada ao reino de Preste João em 1520 seguia um Ecce Homo coroado de espinhos. Ícone de imperadores, a pintura foi saqueada pelos ingleses. Está em Portugal desde 1950.
Luís Miguel Queirós
28 de Setembro de 2023, Público
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Detalhe da pintura Kwer’ata Re’seu, o Cristo etíope MARTIN BAILEY/CORTESIA THE ART NEWSPAPER
Esta é a improvável história de uma pintura a óleo de um Cristo sofredor, provavelmente da oficina de Jorge Afonso, pintor régio de D. Manuel I, que foi oferecida em 1520 ao imperador etíope Lebna Dengel, e que veio a tornar-se um ícone real em terras de Preste João – um tesouro que era levado para as batalhas e guardado nas próprias tendas dos monarcas, mas também um venerado (e muito copiado) objecto de culto, até hoje omnipresente na pintura religiosa do país. E como se a história deste Cristo etíope – relembrada nesta segunda-feira pelo jornalista e historiador de arte britânico Martin Bailey, no The Art Newspaper – não fosse já suficientemente insólita, estranhas circunstâncias ditaram o regresso da pintura a Portugal, onde vem passando mais ou menos despercebida há mais de 70 anos.
Saqueado durante a batalha de Magdala, em 1868, este Ecce Homo, a que os etíopes chamam Kwer’ata Re’seu, foi parar às mãos de Richard Holmes, um agente enviado à Etiópia pelo Museu Britânico para comprar manuscritos e antiguidades aos militares que regressavam com o saque da expedição. Holmes entregou aos seus empregadores do museu um extenso conjunto de peças, mas conservou secretamente a pintura do Cristo com a coroa de espinhos, vinda directamente da tenda do imperador Teodoro II, que se suicidou na ocasião.
Neste contexto em que se discute a questão das restituições, mas também no quadro das relações diplomáticas entre os dois países, parece-me que faria sentido o Estado adquirir a obra para a oferecer à Etiópia”
Joaquim Caetano, director do Museu Nacional de Arte Antiga
Uma versão provavelmente algo fantasiosa sustenta que Holmes retirou ele próprio o quadro da tenda, onde o cadáver do monarca ainda não arrefecera, mas parece mais plausível que o tenha comprado às tropas do general Napier, e eventualmente com verbas do Museu Britânico.
Magdala não fora a primeira ocasião em que o ícone real dos imperadores etíopes caíra em mãos inimigas. Em 1738 fora levado pelos muçulmanos do sultanato de Senar, no Sudão, após uma desastrosa campanha militar empreendida pelo imperador etíope Iyasu, que teve de promover uma colecta especial de impostos para custear o seu elevado resgate. O explorador escocês James Bruce contará mais tarde que “toda a Gondar”, então a capital do império, “ficou embriagada de alegria” com o regresso do Kwer’ata Re’seu.
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Pintura a óleo de um Cristo sofredor, provavelmente da oficina de Jorge Afonso, pintor régio de D. Manuel I, que foi oferecida em 1520 ao imperador etíope Lebna Dengel MARTIN BAILEY/CORTESIA THE ART NEWSPAPER
Em 1868, todavia, não houve pedido de resgate, e a Etiópia não recuperou, até hoje, um dos objectos mais venerados do seu património histórico, político e religioso. Em 1872, o imperador etíope João IV, que apoiara os ingleses na expedição contra o seu antecessor, pediu a devolução da pintura, bem como do Kebra Nagast (A Glória dos Reis), o livro que narra a origem mítica da dinastia salomónica dos imperadores etíopes, que se teria iniciado com um filho de Salomão e da rainha de Sabá. Um exemplar do livro foi-lhe rapidamente restituído, mas a pintura nunca apareceu.
Holmes manteve o silêncio sobre a obra durante mais de 30 anos, até que em 1905 surgiu na prestigiada revista de arte britânica Burlington Magazine um artigo sobre o Cristo abissínio, que ele próprio terá escrito sob anonimato.
Salazar rejeita proposta
Após a sua morte, a obra foi leiloada em 1917 na Christie’s, que a atribuiu à escola de Bruges e a descreveu como tendo sido “encontrada em 1868 na casa do rei Teodoro em Magdala”. Um comprador londrino, Martin Reid, levou-a para casa por 420 libras, e um seu herdeiro voltou a recorrer à mesma leiloeira para a vender em 1950, sem que tivesse alcançado o preço de reserva. A pintura acabaria, depois, por ser comprada a título particular, em Londres, pelo historiador de arte português Luís Reis Santos, director do Museu Machado de Castro nas décadas de 50 e 60. Este ainda sugeriu a Salazar que mandasse adquirir a obra para a oferecer ao imperador etíope Hailé Selassié durante a sua visita de Estado a Portugal, em 1959, mas a proposta não foi aceite. Reis Santos viria a morrer num desastre de viação, em 1967.
Luís Reis Santos conhecia bem a história da pintura, uma vez que publicara já em 1939, na revista Ocidente, um artigo sobre o Kwer’ata Re’seu, defendendo que era da autoria de Lázaro de Andrade, um pintor que integrara a embaixada liderada por D. Rodrigo de Lima à Etiópia. Uma versão inglesa do mesmo artigo saiu depois na Burlington Magazine, em 1941, com o título On a Picture From Abyssinia.
No entanto, em 1950, a história já estava esquecida e, em Portugal, só se voltou a ouvir falar do quadro em 1998, quando Martin Bailey conseguiu seguir-lhe o rasto até Coimbra, onde a herdeira de Reis Santos o mantinha há muito num cofre bancário, ainda envolto num exemplar da edição de 20 de Abril de 1950 do jornal London Evening News.
Foi na sequência do seu artigo que o Estado português, após ter tentado comprar a pintura — projecto que se terá frustrado devido ao elevado preço então exigido —, decidiu avançar para a classificação, impedindo a exportação da obra sem autorização expressa do ministro da Cultura.
A portaria é assinada pelo então secretário de Estado do ministro da Cultura Augusto Santos Silva, José Manuel Conde Rodrigues, que atribui a propriedade do bem a Isabel Pereira Fernandes Reis Santos, e o descreve como uma “pintura quinhentista (ca. 1520) sobre madeira de carvalho, possivelmente luso-flamenga, representando Cristo coroado e nimbado, de mãos abertas e olhos semiabertos”. O diploma não faz nenhuma referência ao percurso etíope da obra.
A busca de Preste João
Passada esta efémera notoriedade pública na viragem do milénio, o caso do Cristo etíope voltou a sair dos radares durante mais duas décadas, até ao persistente Martin Bailey ter voltado agora à carga com um novo artigo no Art Newspaper, desta vez ilustrado com uma fotografia a cores inédita do Kwer’ata Re’seu.
Há poucos anos, no entanto, o cenário da compra poderá ter voltado discretamente a colocar-se, já que o director do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), Joaquim Caetano, se lembra de lhe terem pedido um parecer a respeito da obra, ao que crê ainda durante a passagem de Bernardo Alabaça pela Direcção-Geral do Património Cultural, onde este só esteve cerca de um ano e meio, de Fevereiro de 2020 a Junho de 2021. Caetano não conseguiu agora encontrar a resposta que enviou, mas sublinha que a sua posição tem sido sempre a mesma: “Neste contexto em que se discute a questão das restituições, mas também no quadro das relações diplomáticas entre os dois países, parece-me que faria sentido o Estado adquirir a obra para a oferecer à Etiópia.”
[1950] A pintura não alcançou o preço de reserva e foi depois vendida particularmente, em Londres, ao historiador de arte português Luís Reis Santos
Argumenta que se trata de “uma pintura pequena” (33 x 25cm), e de “um modelo várias vezes repetido, quer por Jorge Afonso, quer pelo seu genro Gregório Lopes, que lhe sucedeu como pintor régio”. E se lhe reconhece “qualidade”, entende que “não muda grande coisa na história da pintura portuguesa”.
Acresce que este Cristo terá sido pintado com o intuito expresso de ser oferecido ao novo aliado cristão dos portugueses na África Oriental, já que, adianta ainda o director do MNAA, ele consta de uma lista de objectos a enviar para a Etiópia que se conserva na Torre do Tombo.
O antropólogo Manuel João Ramos, que a maioria dos portugueses conhecerá melhor pela luta que há muito vem travando contra a sinistralidade rodoviária – é o fundador e presidente da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados, ACA-M —, tem a mesma opinião que Caetano, com o qual, aliás, trabalhou num malogrado projecto de exposição que traria a Portugal um importante conjunto de arte sagrada etíope, e que teria no Kwer’ata Re’seu uma peça central.
É um quadro que vai para a Etiópia na primeira embaixada europeia formal dos tempos modernos a um país africano e que ali se torna um ícone real”
Manuel João Ramos, antropólogo
“É um quadro que vai para a Etiópia na primeira embaixada europeia formal dos tempos modernos a um país africano e que ali se torna um ícone real”, sublinha o antropólogo, lembrando que os próprios Descobrimentos “nasceram da ideia de contacto com o Preste João”.
Visões inconciliáveis
No entanto, se é difícil sobrestimar o simbolismo histórico e político desta pintura — ainda que materialmente semelhante a muitas outras tábuas renascentistas ao gosto flamengo que abordam o tópico do Cristo sofredor —, Manuel João Ramos alerta para o facto de o culto da obra original, e uma certa ideologia da conservação que lhe está associada, não ser necessariamente tão consensual na Etiópia como na Europa.
No seu livro Histórias Etíopes (Tinta-da-China, 2010), o investigador defende que os responsáveis pela política cultural e os sacerdotes e fiéis da Igreja Ortodoxa mantêm perspectivas “inconciliáveis” no que respeita à arte sacra. “Para que um ícone mantenha viva a sua força evocativa, dizem os padres, deve ser repintado quando as cores esmorecem; mas a pática de repintar imagens do século XVII com tinta de esmalte brilhante horroriza, vá-se lá saber porquê, os patrimonialistas.” Ou seja, acrescenta, “quanto mais a cópia for actualizada, mais a presença divina estará assegurada”, mas, “para o Ministério da Cultura, obediente aluno da UNESCO, cada repintura atenta contra o interesse nacional que constitui o fluxo proveniente do turismo cultural”.
Embora seja uma boa tábua do século XVI, a sua excepcionalidade justifica-se mais pela história que lhe está associada”
Raquel Henriques da Silva, historiadora de arte e museóloga
A devolução do Kwer’ata Re’seu seria provavelmente acolhida como um grande acontecimento político e cultural na Etiópia, e uma evidente mais-valia para o turismo, mas isso não implica que os fiéis reconheçam no ícone uma autenticidade superior às suas muitas cópias contemporâneas, já que na tradição ortodoxa, explica o antropólogo, o único retrato original de Cristo, do qual provêm todos os outros, é o que S. Lucas teria pintado a partir do seu modelo vivo.
A historiadora de arte e museóloga Raquel Henriques da Silva, que esteve envolvida na iniciativa de classificação da pintura quando dirigia o então Instituto Português de Museus, também defende que o Estado deve adquirir a pintura, quer por lhe parecer o mais correcto quando classifica uma obra que o proprietário quer vender (desde que o preço seja razoável), quer pelo “raríssimo pedigree histórico” do Kwer’ata Re’seu. “Embora seja uma boa tábua do século XVI, a sua excepcionalidade justifica-se mais pela história que lhe está associada”, ajuíza. “Dava uma exposição fantástica.”
Manuel João Ramos, que chegou a tentar organizar essa exposição, acha que também daria “um livro ou um filme”. E talvez se possa acrescentar um álbum de banda desenhada ao estilo do criador de Corto Maltese, Hugo Pratt, autor de As Etiópicas.
O PÚBLICO tentou, sem êxito, contactar a actual proprietária do quadro, e procurou também saber junto do Ministério da Cultura, igualmente sem respostas até ao momento, se uma eventual compra da pintura está a ser ponderada.
Manuel João Ramos nota que a entrega da pintura à Etiópia teria ainda a vantagem de poder ser feita sem as tensões que o debate em torno da restituição de património costuma gerar. “A discussão destas coisas em Portugal envolve sempre emoções que têm que ver com o período colonial, mas não houve colonização portuguesa na Etiópia”, um país que nunca foi, aliás, colonizado por nenhuma potência europeia, se exceptuarmos a sua efémera ocupação pela Itália fascista de Mussolini.
Se o Kwer’ata Re’seu está hoje fora da Etiópia, a responsabilidade parece ser exclusivamente britânica. Portugal não o roubou, ofereceu-o. Talvez possa voltar a fazê-lo.
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Carlos Fino
Apesar de algumas repetições, penso que o tema é suficientemente importante para justificar a publicação deste texto do Público. Conto sempre com a compreensão de quem lê e que saibam distinguir o trigo do joio.
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