As vistas de Inês de Medeiros
1.
Inês de Medeiros, presidente da Câmara de Almada, disse numa reunião autárquica o que o país já sabe:
“Almada tem este privilégio de ter bairros sociais em espaços absolutamente maravilhosos, com uma vista invejável. Qualquer bairro social da margem norte tem inveja. Eu própria amanhã ia viver para o Bairro Amarelo”.
2.
Comecei por achar que era uma brincadeira.
Percebi depois que não era uma brincadeira, Inês de Medeiros afirmara-o mesmo.
Pensei depois que a frase fora descontextualizada ou um excesso do que ela tem de sobra, uma arrogância desarmante, uma superioridade estética que a faz olhar de cima para as pessoas como se fossemos um décor – o que durante muitos anos achei piada pois Inês, apesar de toda a petulância, era diferente e eu gosto da diferença com a mesma intensidade que abomino a homogeneidade.
Passei à frente sem dar importância. Só que, ontem à noite, num jornal da SIC Notícias, Inês Medeiros aceitou responder a perguntas com o claro objetivo de aligeirar o ruído mediático.
Foi pior a emenda que o soneto.
A forma como ela disse (mais do que aquilo que disse), o modo como aligeirou, a maneira como destratou as opiniões contrárias, como sorriu incrédula (numa pose de Bette Davis) para as perguntas do jornalista, tirou-me do sério.
Inês de Medeiros não faz ideia do que é viver num bairro social.
Não faz ideia do que são os problemas concretos das pessoas – faz acreditar que as pessoas, mais os seus problemas, são atores secundários nas suas peças, figurantes na sua encenação. Comove-se certamente, como se comove com um filme de Godard ou um romance de um autor suficientemente elitista, comove-se com eles como se não fossem pessoas, mas apenas ideias desenhadas por um argumentista.
“Almada tem este privilégio de ter bairros sociais em espaços absolutamente maravilhosos, com uma vista invejável”
Chegam a casa às dez da noite, massacrados pela vida de trabalho, pela falta de dinheiro, pela falta de saneamento, pelos bichos dentro das casas, por uma vida violenta e desesperançada, mas não têm que se queixar porque as vistas são maravilhosas.
Que otários os que se queixam!
Podiam perfeitamente aproveitar o cenário majestoso do Tejo e beber um gin ou dançar agarradinhos ou ler um livro do Houellebecq ou ouvir o Chico ou o Brel ou discutir sobre o destino do mundo ou fazer planos para domar o mundo…
Por que raio não o fazem se têm aquela vista soberba?
Que desperdício.
4.
“Qualquer bairro social da margem norte tem inveja. Eu própria amanhã ia viver para o Bairro Amarelo”.
Claro que sim, senhora presidente, claro que sim.
O Bairro Amarelo dá mesmo consigo.
Até poderia ter roupas a condizer, quem sabe desenhadas por um estilista de bom gosto, e levar a marmita para a rua onde, com os vizinhos, sempre depois das dez da noite, iria aprender que aquela malta, cansada e desesperada, não quer saber de vistas, mas apenas de uma presidente que saiba e reconheça que ali, naquele lugar de sonho, existe gente que vive num pesadelo permanente, num combate pela sobrevivência, na espera de uma oportunidade.
Gente que, a partir deste momento, sabe que a presidente se mudaria para o seu lugar. É claro que o faria depois de eles partirem mais a sua incapacidade de apreciarem a vida que têm.