humor, JOSÉ MARTINS GARCIA POR TELMO NUNES

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Trouxe aqui e há umas semanas, uma crónica acerca do humor açoriano, onde dava conta da minha perplexidade ao perceber a justa inclusão de José Martins Garcia nesse rol de escritores votados para a escrita humorística. (Veio a propósito do seu texto “Pátria”).
Deixo-vos agora um poema dele, mas não um qualquer, este é de um raro brilhantismo, e que ilustra bem o seu outro lado, aquele que representa uma autêntica “amargura ácida”, um “monumento de pessimismo, cinismo e sarcasmo de um poeta depressivo.”
E como podemos ser tanto dentro de nós próprios.
“Versos de pé-de-galo
José Martins Garcia
estou farto de coisas sérias. quem me dera no tempo em que
gostava de expelir umas quantas lérias. umas vezes rimadas. outras
só sorridas. outras choradas mas sem lágrima visível.
quem me dera apoitado num café lisboeta que lá ao menos havia
montes de gente visível de quem um homem escarnecer. quem me
dera até enclausurado na ilha verdadeira — boa piada! — que me
coube em sorte porque aí a minha morte seria pretexto para o sino
dobrar inequivocamente.
ah como é enorme a terra americana! vasta oeste e soberana!
recheada de imigrantes cuja pele por dentro ou por fora vai branqueando conforme as posses de cada pele. ou então por efeito de
sucessivos invernos gelados. como estou cansado! como estou
velho! cinzento velho triste desgarrado gasto!
farto de coisas sérias. farto de coisas tristes. e no entanto triste e
sério como um cadáver esquecido num matagal anónimo.
se ao menos eu pudesse rir! rir mesmo. por fora e por dentro. morto ou vivo. rir mesmo torturado por lágrimas biológicas. efectivas.
salgadas. quentes.
se ao menos eu pudesse chorar! chorar de riso o que ainda seria o
mais saudável.
mas não. estou farto de coisas risíveis. estou farto dos outros. estou
fartíssimo de mim.
só posso exclamar merda. não há um grão de originalidade nessa
estúpida exclamação. pior. não me faz rir nem chorar: não aquenta
nem arrefenta. é vocábulo simultaneamente erudito e popular.
isto está ficando insuportável. deveras. estou farto deveras de todas
as veras. e redigo que estou farto a sério e do sério e farto do farto
e farto da letra e farto da página. e estaria farto da felicidade se
soubesse o que é. e estaria farto de deus se alguma vez o tivesse encontrado. e do diabo idem que não me nenhuma confiança merece.
e a técnica cheira mal. os imigrantes são piolhos do caos. a arte é
uma grandessíssima mistificação. a fraternidade rolha o nariz nos
tugúrios. as mulheres oprimem. os homens querem é esfaquear-se. a
juventude é néscia. a maturidade um fruto bichoso. a velhice uma
diarreia nevoenta. a morte a noite. o nascimento um arbítrio. a eternidade um logro.
ainda se eu tivesse uma mesa de pé-de-galo para conviver com
alguém diferente dos asnos palrantes do meu tempo!
bem vistas as coisas os espíritos comparecentes só me causariam
engulhos se calhar maiores que os meus parentes presentes. Camões
viria com seu único olho fosforescente puxar-me os pavilhões irrecuperáveis por eu não saber rimar nem oitavar nem sonetear nem
decassilabar. já nem falarei do Sá de Miranda o insuportável “na”
de Camilo Pessanha. Pessanha por sua peça é um chato tão tipo
que teve a lata de acabar um soneto com «pedacinhos de ossos».
motivo de sobra para que lhe houvessem dignamente sovado os
dele. Antero o de Quental ou o do quintal da santidade ateia
emudece no fio sanguíneo que da boca lhe escorre. jardim ilha e
fábula incontrolada pelo morto verde asfixiado. na boca não lhe
resta sequer um escarro por sempre lhe ter faltado o vívido cuspo
do humor. Fernando Pessoa desdenhosamente mal refeito da última
bebedeira civilizadamente engravatado no suicídio gentil dir-me-ia:
«Pra escrever sobre a chateza da existência bastava eu… que ao
menos tinha génio! Vai à merda, zé ninguém!». claro que proferida
por Pessoa a palavra merda torna-se genial. então porra.
e dos mortos que eu conheci vivos quem me daria dois dedos de
linguaragem? Vitorino Nemésio? Jorge de Sena?
ah Nemésio Nemésio meu professor de literaturas enormes como
o que me falta saber da vida e da morte! ilhéu de alma e olhos e
palavra e angústia. cada vez mais deprimido já nem o meu sentir
navega nem contigo! sou um novelo sem cor onde nada existe que
desfiar. e Jorge de Sena inflexível só comentaria: «Sempre disse
que é uma desgraça ter-se nascido em português».”
José Martins Garcia, “Temporal”. Providence, Rhode Island: “Gávea-Brown”,1986.
Fotografia: Walter Tapia
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