HOMENAGEM A FERNANDO AIRES PELA SUA FILHA MARIA JOÃO RUIVO

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May be an image of coast and ocean
HOMENAGEM A FERNANDO AIRES PELA SUA FILHA MARIA JOÃO RUIVO
Ao meu Pai, Fernando Aires,
neste dia 18 de fevereiro de 2021
A Casa dos Açores em Lisboa quis celebrar este teu dia e pediu-me colaboração.
Hoje farias 93 anos. E aqui estou eu, para te dar algumas notícias destas bandas. Subitamente, lembro-me da canção do Chico Buarque e digo-te que “Uns dias chove, noutros dias bate o sol/Mas o que eu quero é te dizer que a coisa aqui tá preta”. Mal sabes tu que há um ano que vivemos em situação de pandemia. Um infernal vírus que batizaram com o nome de Covid 19 virou o planeta do avesso e está a causar uma enorme crise sanitária, económica e social pelo mundo fora.
Tenho pensado muitas vezes em ti por causa disso. Imaginas dias e dias de confinamento? Tu, que apreciavas tanto as tuas deambulações pela cidade. Há ainda o uso obrigatório de máscaras, sessões públicas canceladas e o mais de que não te vou falar agora. Da maneira que eras preocupado com a saúde, se cá estivesses, estarias numa angústia enorme.
Já muito se passou durante estes 10 anos da tua ausência. Partiste cedo demais, de uma forma discreta e sem querer aborrecer ninguém. Mas deixaste uma saudade danada. Se te fosse relatar todos estes anos, era um nunca mais acabar. Mas há coisas que precisas de saber. Por exemplo que os teus netos estão todos a trilhar o seu percurso. Sei que isso te orgulharia muito. Também te nasceram mais três bisnetos. A família cresce, tentando repor as perdas, mas estas são irreparáveis. Mesmo assim, a vida vai cumprindo os seus ciclos, como sempre.
Quando penso em ti, com aquela saudade enorme, apazigua-me pensar que amaste tanto a vida. Assim, consigo ver-te em cada coisa, numa espécie de panteísmo só meu. Consigo ver-te nos livros que folheio, na música que oiço e nos melros que cantam lá fora. Também estás presente em cada tormenta da Ilha e em cada brisa morna que surge como um prenúncio de Verão. Nos gerânios do teu jardim, nos pinheiros mansos da Galera, em cada nascer do Sol por detrás do ilhéu e em cada voo do Dom Fuas, o teu milhafre…, em tudo te vejo. E no cheiro das glicínias por manhãs de Páscoa, ou das tangerinas em dezembro. Dezembro dos teus presépios. Em tudo te vejo, te sinto e te ouço. Tu tinhas uma forma muito especial de apreciar as coisas como se visses o mundo pela primeira vez. Conseguias aquele “pasmo essencial”, de criança, que Alberto Caeiro desvenda na sua poesia. Por isso amavas tanto o mundo e a simplicidade das coisas. E também por isso te revoltavas tão facilmente contra a impiedosa passagem do tempo e te angustiavas tantas vezes pela vida que ias deixando para trás e te fugia como areia entre as mãos. Ainda era tão cedo! Mas ainda bem, Pai, que amaste tanto a vida, porque assim posso amar-te em cada coisa.
Hoje recordo algo que já escrevi algures, a celebrar este mesmo dia. A manhã nascera de ar límpido e céu imaculado. A Serra de Água de Pau surgiu, em tons de violeta vidrado, e uma nuvem, a única sobre a montanha, recordava-me o quanto é fugaz o bom tempo nestas ilhas. E lembrei-me de ti, Pai. Não tanto por ser o teu aniversário, mas pela manhã que nascia assim, límpida e transparente. Dei um pulo à Praia pequena do Pópulo. Liguei a Antena Dois e, nem de propósito, os acordes inconfundíveis de Beethoven – a abertura de Fidelio, creio eu – encheram aquele lugar de ti. Achei que era perfeito para te celebrar. Muito do que amavas estava ali – o mar, a montanha que se ergue sobre a Caloura, e Beethoven, o teu deus da música, a encher a nossa ilha-berço de uma melodia indizível.
E ali, junto à praia, lembrei-me de uma manhã de dezembro, há tantos anos que nem sei! Tinha ido ali contigo tomar o último banho do ano. Era um daqueles dias puros, de um fresco vidrado, que despertam toda a nossa energia. O mar de inverno, transformado num festival de espuma. Eu e tu saltando na água como duas crianças, num ritual todo feito de vida. A alegria que então senti naquele momento mágico em que éramos só eu e tu! E a espuma a envolver-nos e a euforia de ser dezembro e de estarmos ali os dois, mergulhados nas ondas. A sensação de desafio, por sermos os únicos na praia a enfrentar aquele mar de inverno com o seu brilho de prata. Tu ainda tão jovem a gozar o melhor da vida, naquela manhã de dezembro, há tantos anos que nem sei! E eu contigo, naquele momento que foi só nosso!
E cá estou eu a resvalar para as memórias, quando o meu objetivo inicial era dar-te notícias. Acontecem sempre coisas boas, claro, já te dei até conta de algumas, mas esta pandemia ocupa quase todo o tempo de antena pelo mundo fora. De resto, não há grandes novidades. É a Guerra na Síria, a fome em África, a corrupção fora e dentro de Portugal, as cíclicas campanhas eleitorais, a violência doméstica, as lavagens de dinheiro, a apologia da mediocridade e tudo aquilo que tu já sabes. Ah! E voltando ao Chico Buarque, a novidade é que “Aqui na terra ‘tão jogando futebol.” Irias irritar-te, como sempre, com as intermináveis horas de conversa sobre este assunto nos vários canais televisivos. Mas vá lá que, neste momento, vêm em segundo lugar, logo a seguir à Covid 19.
E a verdade é que estou para aqui nesta tagarelice quando, no fundo, o que estou a sentir é a falta danada que me fazes.
Bem hajas pelo Pai que foste e pelas lições que nos deixaste.
Um beijo grande
Maria João Ruivo
18 de fevereiro de 2021
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Maria Meneses

48 m
Relembrando Fernando Aires
RECORDANDO FERNANDO AIRES
Fernando Aires de Medeiros Sousa nasceu a 18 de Fevereiro de 1928 em Ponta Delgada, cidade onde faleceu a 9 de Novembro de 2010.
Concluído o Liceu em Ponta Delgada entre 1940 e 1947, onde completou o Curso Complementar de Letras, prosseguiu estudos em Coimbra. Frequentou o curso de Germânicas e licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras daquela Universidade. Na cidade do Porto realizou o estágio de pedagogia, tendo-se qualificado como docente do ensino secundário.
No regresso a Ponta Delgada foi professor do quadro do Liceu Antero de Quental e docente na Escola do Magistério Primário da sua cidade, onde orientou estágios pedagógicos durante vários anos. Foi ainda assistente convidado da Universidade dos Açores desde a sua fundação até 1994.
Além de ligado ao ensino, Fernando Aires teve também um percurso académico e profissional no domínio da investigação e da produção literária. Foi colaborador assíduo da imprensa local e regional, bem como de revistas como a Atlântica e Nova Renascença.
Pertenceu ao grupo que nos anos 40 fundou o Círculo Literário Antero de Quental (1946), com a ideia de promover a revolução dos costumes literários e, assim, difundiram o movimento modernista na ilha de S. Miguel. Entre os seus pares encontram-se Eduíno de Jesus, Jacinto Soares de Albergaria, Fernando de Lima, Eduardo Vasconcelos Moniz, tendo-se associado outros condiscípulos mais tarde.
Maria João Ruivo refere-se na “Nótula Biobibliográfica” de Diário à ligação do seu Pai a estas tertúlias literárias e jornalísticas de meados do século e precisa que os primeiros escritos do grupo começaram a circular na página literária do Diário dos Açores, coordenada por Oliveira San-Bento e na do Correio dos Açores, coordenada por Ruy Galvão de Carvalho e Diogo Ivens, e depois no semanário A Ilha, dirigido por José Barbosa. Refere ainda que Fernando Aires publicou nesses jornais alguns artigos e pequenos contos, assim como os primeiros parágrafos de um “diário íntimo”.
Entre 1978 e 1989 integrou a Direcção do Instituto Cultural de Ponta Delgada. E está representado na Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, onde colaborava desde 1993.
Tendo sido professor, jornalista e cronista, Fernando Aires distinguiu-se como escritor e intelectual. É da sua autoria a obra Era Uma Vez o Tempo – Diário (1982-2010) que reúne os seus diários escritos entre Dezembro de 1982 e Maio de 2010 com coordenação de Maria João Ruivo, Leonor Almeida e Onésimo Teotónio Almeida, prefácio de Eugénio Lisboa e posfácio de José Leon Machado.
São igualmente da sua autoria os seguintes trabalhos: a novela A Ilha de Nunca Mais, 2000; os contos: Histórias do Entardecer, 1988, “Prémio Nunes da Rosa 1988” e Memórias da Cidade Cercada (1995); e diversos ensaios, tais como José do Canto – Subsídios para a História Micaelense (1820-1898) (Universidade dos Açores, Ponta Delgada, 1982); Faria e Maia e Antero (Angra do Heroísmo, 1961); Afonso Chaves (separata da revista “Açoriana”, Ponta Delgada, 1982); Alice Moderno – A Mulher e a Obra (separata da revista “Insulana”, Vol.XLI, 1985), Delinquência e Emigração em S. Miguel na 1.ª metade do séc. XIX (separata da revista Insulana, Ponta Delgada, 1988).
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