gilgamesh

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Acerca deste livro maravilhoso, de que me vem à cabeça muitas vezes as tendas construídas para se sonhar, escrevi há uns tempos o texto abaixo. Sim, tendas construídas para sonhar. Uma coisa muito simples, uma tenda de pano, que os Sumérios levantavam fora de casa, punham uma manta por baixo, uma almofada, e deitavam-se a dormir, só para sonharem sonhos diferentes de quando dormimos na nossa cama habitual. Não queriam fazer do sono o quotidiano, desejavam comunicar com o transcendente. Sonhar é viver. Dormir é trabalhar. O sonho é uma forma de poesia, porventura a melhor de todas.
«Os escritores bebem em fontes como quem rouba água às nascentes. Quanto mais andamos para trás, em busca de uma origem, mais nos enredamos numa encruzilhada da qual só nos apercebemos de uma coisa: a literatura é impressionante na dimensão do seu fascínio. O fio de Ariadne é a emoção que nos conduz a lado nenhum em toda a parte. As Sagradas Escrituras descobriram-se no mesmo caminho sem fim de que é feita a senda humanidade. O «Épico de Gilgamés» (aqui no texto traduzido e comentado por Francisco Luís Parreira e publicado pela Assírio & Alvim) narra a epopeia do rei lendário de Uruk, que terá sido inicialmente escrita há perto de cinco mil anos, na Suméria, tendo passado por várias transcrições ao longo dos séculos subsequentes, até se perder nas areias do deserto por meados do primeiro milénio antes de Cristo. As tabuinhas de argila onde o texto se encontra fixado só seriam redescobertas no século XIX, incompreensíveis, e mais tarde decifradas graças ao paciente estudo de quem se ia progressivamente fascinando com o que desvendava. O resultado foi tão surpreendente que esteve próximo de causar escândalo, mas só por causa da nossa vastíssima ignorância. Não de uma ignorância incompetente ou desleixada, mas de um desconhecimento de que nunca nos livraremos, se Deus quiser. Foi assim que o sagrado se profanou, e foi assim que Homero deixou de ser pai, ao serem-nos reveladas as suas fontes. O épico de Gilgamés, porém, conduz-nos à pergunta: o que estará por trás dele? O que se perdeu nas brumas do tempo? Que hinos, que canções, que aventuras, que poemas, que histórias? A resposta não surpreende: nada com que nos dêmos por satisfeitos.
Tudo começa com o verso: «Aquele que testemunhou o abismo», e daqui se parte para o relato das aventuras do sábio e poderoso Gilagamés, senhor de uma enorme estatura, peito e ombros largos, pernas que abarcam quatro metros a cada passo. Encontra em Enkidu o companheiro, verdadeiro amigo e irmão para a sua busca da imortalidade, da glória e da fuga aos estreitos termos impostos pela fatalidade da vida. Logo na primeira tábua (a epopeia está dividida em doze tábuas) ficamos a saber que o seu nome — cujo significado será “Descendente de um herói” — foi pronunciado no dia do nascimento, indicando que estava predestinado para façanhas extraordinárias. Ora, encontrando Enkidu, Gilgamés encontra também um sentido para a vida, e decide partir com ele pelo mundo a combater o maior flagelo da Terra, Humbaba, o monstro que protege a Floresta do Cedro. Após longas jornadas arribam ao famigerado território. Gilgamés, pleno daqueles sentimentos que nos habituámos a observar nos clássicos, vacila finalmente à vista do tenebroso matagal de ciprestes, retiro do gigante e viveiro de sons medonhos. Enche-se de terror. «Meu amigo, ampara-me», pede o rei de Uruk ao companheiro. Só o incitamento de Enkidu consegue devolver-lhe a coragem. É então que um rugido horripilante anuncia a presença de Humbaba. Novamente Gilgamés hesita, derramando lágrimas de pânico, pedindo a Samas, o deus-Sol, que o ajude. Acedendo o deus, o combate inicia-se com as ameaças do guardião da floresta. «Trouxeste-me Gilgamés, ó traiçoeiro Enkidu, mas vou rachar-lhe o pescoço e as goelas, darei a sua carne aos abutres.» Engalfinhando-se numa luta de proporções titânicas, Gilgamés é auxiliado por Samas e vence o monstro. Humbaba suplica clemência, num discurso tão comovente que provoca a piedade do leitor moderno. Prostrado no chão, indefeso, o portento medonho de rosto disforme, qual Adamastor nos confins da África, roga ao seu vencedor, correndo-lhe as lágrimas perante os raios do Sol: «Poupa-me a vida, Gilgamés. Viva eu ao teu serviço aqui na Floresta do Cedro. Tudo te darei.» Enkidu exorta Gilgamés a não poupar a vida do monstro e a matá-lo imediatamente. Humbaba vira-se então para Enkidu, dizendo-lhe que a sua liberdade depende dele. Não obtendo indulgência, Humbaba enfurece-se e amaldiçoa os seus captores, pedindo aos céus que lhes concedam escassos dias de vida (faz lembrar a ira de Posídon, na Odisseia). O rei de Uruk pega então no machado e crava-lho no pescoço, matando-o. Quem não vê nesta narrativa emocionante tantos traços de Homero, que viveu numa época em que a história ainda circulava? Quem não sente na amizade de Enkidu e Gilgamés o amor que unia Aquiles e Pátroclo? O herói Aquiles, por desejo de vingança e de fama terrena, empunha as armas para matar Heitor, o maior guerreiro de Troia, flagelo dos aqueus, e recusa todos os pedidos de misericórdia do adversário; chora lágrimas abundantes pela morte de Pátroclo e dedica-lhe um funeral digno dos deuses. Mas a epopeia prossegue, até porque a beleza, a força e a coragem de Gilgamés despertam a paixão desenfreada da deusa Istar (sem dúvida a Afrodite homérica, de quem o próprio nome deriva, segundo Francisco Luís Parreira, pois terá evoluído da forma semítica ocidental Astorith [Istar]). A deusa da fertilidade e da sexualidade propõe casamento ao rei vencedor. Gilgamés, no entanto, recusa insolentemente, acusando-a de promiscuidade e do infortúnio de todos os seus amantes anteriores. Istar, enfurecida pelo desacato do mortal, comparece a chorar perante o pai, Anu, deus do Céu, e pede-lhe que castigue Gilgamés pela afronta inadmissível. Anu dá-lhe o Touro dos Céus, pondo-lhe na mão a corda que o puxa. O animal gigantesco desce à terra e comete devastações, provocando, entre outras calamidades, a morte de centenas de habitantes de Uruk. Enkidu e Gilgamés unem-se novamente para livrar o mundo de mais uma praga e conseguem matar o Touro dos Céus, cravando-lhe o punhal no cachaço, enfurecendo ainda mais a ofendida Istar. A que fonte foi beber Homero para o relato da Afrodite injuriada por Diomedes, na Ilíada, senão a este episódio? É tão evidente a analogia que até as personagens são as mesmas: Anu — Zeus; Istar — Afrodite; e um mortal cujo atrevimento chega ao ponto de enfrentar os deuses — Gilgamés/Diomedes). O povo de Uruk celebra esta esplêndida vitória festejando nas ruas da cidade, em aclamações de júbilo. «Gilgamés é o mais glorioso de entre os homens!» Tudo caminharia para um final feliz se Enkidu, nessa mesma noite, não tivesse um sonho angustiante, o prenúncio de um acontecimento tão horrendo como natural: a morte. Nesse sonho, os deuses discutem qual dos dois heróis deve abandonar o mundo dos vivos como castigo pela ousadia de terem matado o Touro dos Céus. A escolha recai sobre Enkidu, que acorda em lágrimas a lamentar a fatalidade do destino. «Ó meu querido irmão, terei de me sentar entre os mortos e nunca mais contemplar o meu irmão querido com os meus próprios olhos!» O desespero é tão avassalador que perde o domínio de si e amaldiçoa tudo e todos, até finalmente se aquietar, entristecido, e se arrepende das palavras desenfreadas. Adoece, padece de uma agonia de doze dias, prostrado no leito, e morre. As suas últimas palavras foram de desgosto por não morrer como um bravo, no meio da batalha, mas deitado numa cama, murmurando ao companheiro: «Eu não caio em combate, eu não engrandeço o meu nome.» Gilgamés fica inconsolável, caindo em pranto, pedindo ao mundo inteiro que chore por Enkidu. O seu amor por ele roça a homossexualidade: «Cobriu o rosto do amigo, como a uma esposa.» As lamentações fazem lembrar as de Adriano por Antínoo quando o imperador romano soube da morte do jovem e lhe dedicou um enterro digno de um estadista e um culto divino para a posteridade: «Os príncipes da terra virão beijar-te os pés. Farei com que o povo de Uruk te chore e lastime, por ti, entre a formosa gente farei alastrar a dor.» Deu-lhe um funeral que nos remete para as honras fúnebres de Pátroclo, prestadas por Aquiles, e depois abandonou a comunidade dos homens, vagueando pelos ermos e pelos descampados na mais profunda desolação de alma, sufocado não só pela melancolia mas também pela terrível angústia existencial que a certeza da morte acarreta. «Morrerei: não ficarei eu, então, igual a Enkidu?» Decide por isso ir em busca da vida eterna procurando Uta-napisti, um homem a quem os deuses concederam a imortalidade. É notória a semelhança com a fatalidade homérica, a luta inglória contra o destino: qualquer um de nós pode pegar em armas e cometer e veleidade de enfrentar a morte, mas sabe que vai perder. É uma espécie de suicídio ritual, quando se almejava precisamente o contrário. O resultado só pode ser um: o desespero. Nele se enreda Gilgamés na sua busca por Uta-napisti, o único imortal nascido humano, a derradeira tentativa de vir a fruir da vida eterna. Porém, todos os que encontra pelo caminho lhe dizem: «A vida que procuras, não a encontrarás.» Finalmente chega até Uta-napisti, contando-lhe a sua desdita, para obter como resposta: «A ti mesmo te gastas com trabalhos incessantes, apressando o fim dos teus dias.» Gilgamés pede ao menos que conte como lhe foi possível a ele, Uta-napisti, aceder à assembleia dos imortais. Segue-se um relato que impressiona por nos soar a algo de incrivelmente familiar. Uta-napisti não é outro senão o Noé judaico-cristão que relata ao seu interlocutor a história do Dilúvio. Quando a humanidade se tornou um incómodo para os deuses, estes decidiram destruí-la. No entanto, o deus Ea revela a intenção divina a Uta-napisti, rei de Surupak, e diz-lhe para construir uma arca de madeira que flutue nas águas alterosas da grande inundação. Fornece-lhe as medidas para a obra e ordena-lhe: «Faz embarcar a semente de tudo o que é vivo.» Após a conclusão dos trabalhos, aproximou-se uma nuvem negra que desencadeia os vendavais arrasadores e o Dilúvio. Chove até a água cobrir a totalidade da terra. Vindo a acalmia, Uta-napisti lança sucessivamente uma pomba, uma andorinha e um corvo para ver se há lugar onde aportar. Só à terceira tentativa obtém resposta positiva: as águas baixavam, e assim se pôde repovoar o mundo.
O épico de Gilgamés esteve enterrado no deserto, completamente ignorado, durante dois mil e quinhentos anos. Nesse intervalo de tempo nasceram, cresceram, expandiram-se, reformaram-se, adulteraram-se, corromperam-se e povoaram-se de bem-aventurados várias religiões, uma era, um viveiro de impérios, uma incubadora de revoluções, uma sucessão de mortes e renascimentos, um desfile de ideais e de filosofias, enquanto as areias calmamente os viam passar. O dom da imortalidade, que muitos procuraram sem sucesso, atingiu-o o sonho. E basta dormir numa cama diferente da habitual.»
Pode ser uma imagem de texto que diz "ÉPICO DE GILGAMEŠ tradução, introdução notas de FRANCISCO Luís PARREIRA ASSÍRIO & ALVIM"
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José Moreira da Silva

Não li esse livro, mas abriste-me o apetite. Numa parte do teu texto lembrei-me de Herman Hesse e do seu Siddhartha…
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