gato galamba

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Galamba
Vinha sempre a correr, quando eu parava o carro e desligava o motor. Era a sua maneira de dar as boas-vindas, ao fim da tarde. Mas, naquele dia, não apareceu.
Fiz com a boca aquele som que aprendi em pequeno ser para chamar, “besh” ou coisa parecida. Nada. Agucei a beiça e soltei o silvo ao vento em várias direcções. Debalde. Chamei-o pelo nome em todas as tonalidades e volumes. Sucesso nulo.
Apesar de ser a primeira vez em que tal acontecia, o meu cérebro ordenou-me calma. Podia ter ido dar uma volta mais larga, ou ter seguido os cios de fêmeas por cima de muros. Mas passou a noite sem o seu miau de voltei, sem o seu miau de quero comida da lata, sem o seu ronronar de corpo entrelaçado nas canelas.
Os meus amigos acusam-me, sempre me acusaram, de sofrer por antecipação. Perante algo que corre mal, penso sempre nos piores cenários, mesmo nos mais sanguinolentos. Muitas vezes acertei nas intuições. Mesmo quando falho, prefiro antever o pior e depois ter a alegria de constatar o exagero íntimo das visões apocalípticas. Forcei-me a afastar o grafismo de atropelamentos, lutas territoriais, ventres rasgados, vísceras ao sol. E esperei um dia, para quem me conhece muito tempo, muito sofrimento interior.
Dois dias depois, instalou-se nas células uma possibilidade que, depois de muito pensada, se começou a transformar numa probabilidade e, ao pôr-do-sol, numa certeza: tinham-me roubado. Ou pronto, concedendo, furtado, nem queria sequer imaginar ter havido violência. E chamei a polícia, com o anúncio “acho que me roubaram o gato”.
A PSP chegou, com os seus cuidados costumeiros. O que é isso do “acho”? Só podemos agir com certezas. Desconfia de alguém ou quer apresentar queixa contra desconhecidos? Não se trata de investigação fácil de levar a cabo, como certamente saberá. Há casos de bichanos que desaparecem e voltam a aparecer meses depois, outros que nunca mais se lhes põe a vista em cima, não é como um cão. Não vamos incomodar vizinhos ou outros seres mais afastados sem indícios claros, um dos agentes até a falar em latim, “in dubio pro reo”, pelo menos assim soava…
Quando me perguntaram o nome do felino, para anotar no livro dos autos, os seus semblantes mudaram tragicamente. E ficaram em silêncio, coisa muito rara em agentes policiais, sintoma de absoluta gravidade nos factos relatados.
“Como Galamba? Como o ministro? Mas quem se lembra de dar o nome de um ministro a um gato”? O bico da caneta recusava-se a registar no auto tal nome, soava a desrespeito por um órgão de soberania. De nada serviu explicar que tinha o gato, e com aquele nome, antes de Galamba ser Galamba, ou pelo menos secretário de Estado. De menos ajudou jurar que o nome resultava de uma devoção antiga pela Gal Costa e de uma obsessão absoluta do gato por gambas, que devorava com cabeça e tudo, quando oferecido tal raro excesso.
Os policiais retiraram-se da minha propriedade com uma rapidez que não deixava intuir o próximo passo. Mas tal passo chegou menos de duas horas depois. Bateram-me à porta quatro indivíduos enfatuados, anunciando serem do SIS e logo mostrando as credenciais.
Acontece que, para além da minha formação académica, sou doutorado em transmissões televisivas de comissões parlamentares de inquérito, pelo que reclamei. Que o SIS não tinha nada a ver com o desaparecimento do meu gato, se tivesse sido roubado era apenas uma questão penal, para a PSP, quando muito para a Judiciária, nada de secreto havia no episódio e menos questão de Estado se trataria.
Mas o SIS não quis saber. Reviraram-me a casa toda, passaram à casa dos vizinhos com a mesma sanha investigatória, apenas lançando curta explicação: que nem lhes passava pela cabeça deixar por aí à solta um ministro, mesmo sob a forma de gato, ainda por cima das infraestruturas. Sabia-se lá que segredos de Estado não guardaria no ventre, relatórios, mensagens, notas, telemóveis, whatssápes, chefes de gabinete e adjuntos.
Passados três dias, um dos agentes descobriu o estupor do bicho. Estava escondido no fundo de um armário, dentro de casa. Só que… tinha o rabo de fora.
Retomada a normalidade, sosseguei interiormente e saí de casa para ir comer um gelado à Vila de São Mateus.
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
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