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FRENTE E VERSO
«O padre mal lhe ouvirá as últimas palavras, apressará o passo para casa, chicotear-se-á até lhe não sobejarem forças.»
In: «Frente e Verso Contos Acerca do Mal»
«Frente e Verso» é a mais recente obra da professora e autora Paula de Sousa Lima. Lançada na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada e devidamente apresentada pela professora Leonor Sampaio da Silva, assume-se como um livro profundamente inquietante.
Falamos de uma obra, formalmente, híbrida, composta por uma primeira parte redigida em prosa, distinguindo-se o conto como género de eleição – «Contos Acerca do Mal» –, e uma segunda, onde a autora se mostra mais lírica e opta por se exprimir em voz poética, muito original e, sobretudo, algo surpreendente – «Poemas Acerca da Mágoa». Uma e outra chegam-nos numa linguagem muito apurada, distinta, elegante; o léxico utilizado é devidamente pensado, percebendo-se cada frase ou verso burilados com especial cuidado. Aliás, uma das características que perpassa a obra da autora é esta riqueza lexical que gosta de imprimir aos textos, procurando sempre a divícia vocabular, fugindo dessa forma ao convencional e fastidioso, mesmo que, para tal, se valha do vetusto português sorvido aos canónicos, com especial enfoque nos textos do Padre António Vieira, a quem bastas vezes se refere como exemplo.
Centrando-nos em exclusivo no texto em prosa – «Contos Acerca do Mal» -, podemos afirmar que neste não se vislumbrará contento nem deleite, antes uma reflexão sobre a condição humana do Ser, mas não aquela convencional, que poderá caracterizar a maior parte das pessoas; o texto ergue-se em torno da mais vil condição do Homem. Paula de Sousa Lima recupera aquilo que de pior pode povoar e emergir do coração de um Homem e, tal como antes o fez em «O Outro Lado do Mundo» ou em «Os Velhos», revisita o íntimo das pessoas más, das piores, daquelas movidas pelos mais perniciosos intentos, dando-nos conta de que, reunidas as condições favoráveis, a maldade não encontra limites na imaginação humana.
Como antes escrevemos, “a cada trecho, a autora […] consegue que o leitor sorva cada vez mais esse outro lado da vida. […] Por via de um relato veiculado por um narrador omnisciente, vemo-nos impelidos a, interiormente, mapear as diferentes dimensões da vida que coexistem no mesmo espaço físico. A obra assume-se como um claro convite à análise a esta dicotomia entre o lado benigno e aceitável da vida, e esse outro escuso que, por conveniência, procuramos sempre ocultar nos recônditos do esquecimento […]”.
A autora foi capaz de, uma vez mais e através de mais um autêntico ato de coragem, escrever um texto profundamente inovador que vem, de todas as formas, lançar à montra da vida aquilo que também dela faz parte e que tanto se faz para ocultar. Paula de Sousa Lima esmiúça aqui temáticas quase proibitivas com a mestria analítica que há muito lhe reconhecemos. Com efeito, são notórias a constância e a consistência temáticas de eleição, e que a autora tem apresentado nos seus últimos trabalhos.
“Os olhos dela engrandecem, o corpo treme-lhe, a mão faz um gesto rápido, não poderia ela explicar, sequer entender, como a mão assim se moveu, e a faca da cozinha crava-se na garganta dele. Cai a jorrar sangue, o punhal descai-lhe da mão.” (p.49)
Por se tratarem de contos, as categorias da narrativa vão necessariamente variando, podendo, todavia, registar-se uma convergência no que ao narrador concerne e sobre o qual já escrevemos. Da mesma forma, também o tempo converge e, conquanto haja textos onde não é possível descortinar explícitas noções temporais, podemos inferir que, na sua grande maioria, estes ocorrem ao longo do último quartel do século XX, concretamente nos anos que antecederam e naqueles que sucederam à Revolução dos Cravos, no período de transição da Ditadura para o sistema Democrático. Ao longo do texto, mesmo que, por vezes, subliminarmente, aponta-se criticamente a sociedade patriarcal, a força detida pela Igreja, em concreto aquela representada na figura dos párocos, sobre aquelas famílias sem grande instrução (a grande maioria), destacando-se, também, a impunidade (não é excessiva a palavra) em que viviam muitos homens de então, sejam os de batina ou mesmo os de colarinho branco.
“E, no quarto, longe dos ouvidos moucos da criada, ele começou por lhe sorver o odor, esse perfume fresco e ligeiramente adocicado que só uma menina tem, e depois acariciou-lhe os braços, pernas e pescoço, como a medo, levemente, explicando-lhe ao ouvido que tudo o que ali se passava era coisa muito privada, só deles e do Senhor […]”
(p. 57)
Como antes se disse, não foi a primeira vez que a autora açoriana, nascida em Lisboa, lançou o alerta para a exploração dos mais fracos e desvalidos, por gente perversa, cruel e sem escrúpulos, o que reforça bem a sua constante e acérrima defesa dos Valores morais e humanos preconizados por uma sociedade que se quer equitativa, benigna e que a todos acolha de forma justa e equilibrada.
«Frente e Verso» não é uma obra de leitura fácil, cada um dos contos vale per se, embora muitos deles encontrem sequência no conto seguinte; são textos que ferem, magoam, que esmurram as nossas crenças e deitam por terra muito do otimismo que reservamos para a humanidade. Esta será uma leitura demorada por momentos de reflexão, de análise e questionamento.
Servindo-se de um realismo muito intenso e fazendo valer o virtuosismo da sua escrita, não se furtou a autora aos detalhes mais sórdidos e mais pecaminosos ao longo de toda a narrativa, motivo mais do que suficiente para que muitos dos leitores terminem a sua leitura com demasiada agitação presa no estômago.
Com este «Frente e Verso», Paula de Sousa Lima reforça a sua posição cimeira entre os melhores ficcionistas açorianos contemporâneos, o que nos deveria levar a repensar estratégias consertadas de apoio aos autores e/ou às editoras açorianos para, de uma vez, terminarmos com esta injustiça que tem sido a de privar os leitores continentais do que de melhor se escreve no país. É certo que, ainda recentemente, houve o investimento na “Feira do Livro de Lisboa”, que, por sinal, foi um sucesso, mas parece-nos pontual, demasiado pouco para o talento e virtuosismo com que se escreve no arquipélago.
À autora, os meus parabéns pelo excecional livro que escreveu. Confesso que, dada a qualidade dos contos assim como a dos poemas que o constituem, nada me espantaria – e talvez até fosse mais apropriado –, vê-los em dois volumes distintos, cada um válido por si só!
Paula De Sousa Lima, «Frente e Verso», Letras Lavadas, março, 2024
(Diário dos Açores, 12 de julho, 2024)
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