FRANCISCO MADURO-DIAS · O RACISMO NA PRIMEIRA PESSOA

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O RACISMO NA PRIMEIRA PESSOA

Esta é uma história pessoal, que me aconteceu há uns vinte anos, no Sul do Brasil. Fui convidado para uma sequência de palestras, em diversas instituições de Santa Catarina, sobre Património Cultural, museus e Comunicação Cultural, e acabei por percorrer todo o litoral do estado, com encontros, palestras e conversas com alunos das universidades ou grupos culturais locais.
Uma noite, a conversa foi organizada no Museu do Sambaqui, que, para os menos informados, quer dizer o mesmo que concheiro, ou seja, monte de conchas, que pode ter dezenas de metros de comprimento e cinco ou mais de altura, com milhões e milhões de conchas, e onde, às vezes, eram também sepultados mortos dos que por ali andavam.
Resultam de as pessoas desses grupos decidirem juntar, em monte, numa lixeira, as conchas e restos dos animais marinhos que comiam. Como não eram completamente nómadas, em vez de os espalharem por aqui e ali, iam arrumando tudo num monte. Trata-se de estruturas que, no caso dos Concheiros de Muge, em Portugal, têm cerca de 8 000 anos.
No fim da minha conversa, uma antropóloga perguntou como é que eu interpretava o uso, pelo colonialista português, dos sambaquis locais para obtenção de cal para argamassa, nos séculos XVII e XVIII. Portugueses “invasores” e “destruidores” de testemunhos de populações indígenas autóctones, já desaparecidas.
Comecei por anotar que as populações humanas vão e vêm, e que os indígenas americanos são, na realidade, oriundos da Ásia do Nordeste, tendo chegado ao continente americano há cerca de 20 000 anos e que, até ao momento em que aqueles montes de lixo começaram a ser vistos como algo de importante, eram óptimas fontes de cal para fazer argamassa, segundo a tradição construtiva que os portugueses traziam consigo. A partir daí, passaram a ser locais de investigação e património protegido.
Mas concentrei a minha ideia no que chamei integração de culturas e memórias, dizendo que me parecia culturalmente muito mais relevante interpretar os acontecimentos e factos como nós fazemos desde a escola primária: Iberos, celtas, celtiberos, fenícios, gregos, cartagineses, romanos (e gente de todo o império, durante quase mil anos), vândalos, alanos, suevos, visigodos, árabes, berberes, normandos, etc., etc., e concluí dizendo que, com naturalidade e orgulho, nos assumíamos, em Portugal, como resultado de todas essas heranças, vocabulário, modos de fazer e ser. O Brasil também poderia seguir a mesma linha integradora, tendo em conta o riquíssimo acervo e variedade de gente que tem, mas não me competia comentar mais do que isso, pois era convidado e visitante.
Ficou por aí a conversa.
No dia seguinte apareceu um artigo no jornal da cidade e começava com uma descrição de mim: “Alto, de cabelos claros, olhos azuis e pele branca, não corresponde ao aspecto habitual que se tem de um português”. Depois resumia a palestra e os momentos de debate mais interessantes. Fiquei vidrado.
A verdadeira integração cultural e a aceitação do passado e de todas as suas memórias, não é tarefa fácil!

Publicado no DI e no Açoriano Oriental de sábado passado