Floresta portuguesa, o exemplo dos Açores – Observador

Source: Floresta portuguesa, o exemplo dos Açores – Observador

Gonçalo Castel’Branco

Floresta portuguesa, o exemplo dos Açores

No mesmo momento que no Continente, na serra de Monchique, se deixou arder 27000 hectares, certos leitores lembrar-se-ão que nos Açores o risco de incêndio é praticamente inexistente.

Sou um apaixonado pelos Açores, tendo a sorte de conhecer quase todas as ilhas (exceto Graciosa) desde os meus 13 anos. A 19 de julho de 2018, tive a oportunidade de estar na Direção de Serviços Florestais dos Açores, na Rua do Contador em Ponta Delgada, para uma conversa com o seu diretor, engenheiro florestal Vasco Medeiros. Escrevo sobre esta autonomia portuguesa onde mantiveram intactos os Serviços Florestais e os Guardas Florestais.

Os Serviços Florestais nos Açores têm gozado de uma estabilidade organizacional oposta ao caos do Continente onde, de 1974 até 2017, tivemos 8 diferentes instituições florestais. Uma média de sobrevivência de 5,5 anos por instituição.

Nos Açores existe uma Secretaria Regional da Agricultura e Florestas (semelhante ao Ministério da Agricultura no continente) que define a política florestal e um serviço operativo florestal, a Direção Regional dos Recursos Florestais (DRRF), a quem também compete apoiar o Secretário Regional na definição da política florestal. A DRRF é semelhante às antigas direções florestais no continente que foram sobrevivendo até ao ano de 1996. A diretora é a engenheira florestal Anabela Isidoro, que está neste cargo desde 2010, situação que também contrasta com a instabilidade dos cargos no Continente. Aparte outros detalhes, a DRRF é dividida em 9 serviços florestais operativos, sendo que cada ilha tem um serviço florestal, exceto a ilha de São Miguel que está dividida em 2 serviços, o Serviço Florestal do Nordeste e o Serviço Florestal de Ponta Delgada. Por último, a DRRF tem a seu cargo a Direção de Serviços Florestais dos Açores.

A Direção de Serviços Florestais dos Açores tem 3 divisões não operativas, a saber: Divisão de Apoio ao Sector Florestal (faz fomento, extensão rural, fundos comunitários, etc.); Divisão de Ordenamento e Sistemas de Informação (faz o inventário florestal regional, a cartografia das áreas florestadas, etc.); Divisão para Gestão do Uso-múltiplo (trabalha com a caça, pesca em águas interiores, parques de recreio e pastagens baldias).

Na totalidade, a DRRF possui cerca de 400 funcionários, dos quais 77% são funcionários no campo, i.e. há exatamente 254 Assistentes Operacionais e 53 Guardas Florestais (neste momento encontra-se concurso aberto para mais 14 Guardas Florestais). Os restantes funcionários são engenheiros florestais, administrativos, entre outros. Por comparação, no ICNF, no Continente, os funcionários no campo contam-se em 37%, somados os Assistentes Operacionais, os Vigilantes da Natureza, e, como todos sabemos, zero Guardas Florestais.

Os Guardas Florestais nos Açores tem uma formação em legislação e na área técnica florestal que é oferecida pelos Serviços Florestais em instalações próprias, com a duração de 1 ano. Mais especificamente 6 meses de formação teórica e 6 meses de formação prática. Quando o aspirante a Guarda Florestal é aceite para a formação este passa ao nível de Guarda Florestal Estagiário. Ao cumprir a formação passa ao nível de Guarda Florestal e têm um salário base de cerca de 700 euros. A carreira continua. Se passar mais tarde no exame após novo curso de formação de 2 semanas, este passa a Mestre Florestal. A carreira continua. Se passar mais tarde por uma nova prova de teste de conhecimentos passa ao posto máximo na carreira de Mestre Florestal Principal que tem um salário base de cerca de 1200 euros.

O Regime Florestal manteve-se como o principal instrumento de gestão pública de áreas comunitárias, os baldios. São 29786 ha de áreas comunitárias (baldios) que estão submetidas ao Regime Florestal Parcial com gestão florestal muito ativa da parte dos Serviços Florestais (silvicultura, cortes, replantação, manutenção de caminhos, etc.) e de gestão, ao também ao serviço das comunidades locais das pastagens baldias.

“A partir de 1976 a floresta pública nos Açores passa a ser responsabilidade do Governo Regional. Da evolução histórica anterior a essa data decorrem entretanto algumas lições de utilidade para o futuro. Desde logo, sobre a importância social dos baldios que foram, a partir do início da colonização, áreas de utilidade pública o que, na altura, representava serem logradouro comum para os gados e locais de recolha de lenhas pelos povos. Por outro lado, o reconhecimento do caráter finito dos recursos florestais (…) fez com que os poderes públicos tentassem primeiro limitar a sua destruição, promulgando legislação, e depois encorajassem ações de arborização, que só viriam a ter enquadramento com o Regime Florestal (…). Evoluíram também as exigências sociais, que passam de primitiva recolha de lenha e do logradouro comum para os gados, para outras como a do recreio de natureza em sociedades cada vez mais urbanas, e que cada vez mais sentem a necessidade de uma contínua participação pública nas decisões que à floresta pública interessam.” E ainda, “a Lei do Povoamento Florestal – Lei nº 1971, de (…) 1938 que previa a elaboração de planos gerais de arborização para os terrenos baldios do Arquipélago dos Açores, tinha como princípio geral o aproveitamento dos baldios (…). Este aproveitamento, poder-se-ia orientar num sentido de florestação ou no de formação e melhoramento de pastagens. Ora, a economia açoriana assentava e assenta, principalmente, na pecuária, sendo demonstrada a vocação das terras altas açorianas para o apascentamento. Tornou-se evidente que a orientação a seguir deveria ser a de afetar a pastagem a maior área possível dos terrenos baldios. Passados alguns anos [1980], foi criado o Regime Jurídico do Arrendamento Rural dos Baldios na Região Autónoma dos Açores (…) (fonte: site da DRRF).

No Continente a enorme tensão de interesses políticos, a precipitação e a irresponsabilidade levaram à extinção dos Serviços Florestais em 1996. Nos Açores manteve-se a base organizacional e operativa dos Serviços Florestais do anterior regime, com a precaução e com a moderação que a floresta precisava. É caso para dizer que na floresta portuguesa temos um país, mas duas civilizações.

O mérito dos açorianos foi maior. Tendo em conta que dependiam administrativamente e tecnicamente da antiga Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícola do Continente, uma vez separados, os Serviços Florestais dos Açores tiveram de se contar a si próprios. Julgo que é notória a evolução técnica até aos dias de hoje. Fiquei deveras impressionado com o trabalho em sistemas de informação geográfica, e com os inventários florestais realizados para os concursos públicos de venda de madeira, com transectos lineares em campo e contagem de número de copas com drones, etc.

Segundo o Inventário Florestal Regional de 2007, os Açores têm 48503,3 hectares de área florestal. A criptoméria, que é a principal espécie de produção lenhosa, com os seus 12239,7 hectares representa 26% da floresta açoreana, dos quais 4500 hectares estão em áreas de Regime Florestal.

Aspecto de uma produção florestal de criptomérias, em São Miguel, Açores a 18 de julho de 2018 (@Gonçalo Castel’Branco)

Uma grande parte das áreas comunitárias (baldios) de gestão florestal pública pelos Serviços Florestais são certificadas pelo FSC (Forest Stewardship Council) contra zero hectares de áreas de gestão pública pelo ICNF no Continente. O processo começado em 2014 tem como objetivo a certificação da totalidade das florestas geridas pelos Serviços Florestais. A certificação da gestão florestal responsável com conservação dos recursos permite que a totalidade da madeira de criptoméria, das áreas de gestão pública, esteja atualmente a ser colocada no mercado internacional. Além das vantagens de controlo ambiental, possibilitou uma maior valorização económica da madeira certificada, e conseguiu-se, em consequência da exportação, parar a concorrência pública no mercado interno já abastecido pela madeira de criptoméria das florestas privadas, contribuindo assim o sector público para a dinamização do sector privado. A dinamização do sector privado também se faz pelo exemplo, e nas ilhas o exemplo é dado pelos Serviços Florestais.

Os Serviços Florestais têm postos aquícolas nas Flores e em São Miguel (Furnas) no qual são produzidas cerca de 25 mil trutas arco-íris por ano, todos os anos ininterruptamente, para serem distribuídas nos ribeiros, para o gozo dos pescadores desportivos portugueses e estrangeiros. Têm um Centro de Divulgação Cinegética, um espaço de lazer e aprendizagem, quer para o público em geral, quer para a comunidade de caçadores. Têm mais de duas dezenas de Reservas Florestais de Recreio, bem cuidadas pelos Serviços Florestais e muito visitadas pelo público, etc.

No mesmo momento que no Continente, na serra de Monchique, se deixou arder 27000 hectares, certos leitores lembrar-se-ão que nos Açores o risco de incêndio é praticamente inexistente. É verdade. Não será essa mais uma boa razão para que no Continente houvesse mais e não menos funcionários no campo? No Continente uns novos Serviços Florestais deveriam ter o seu próprio corpo de sapadores florestais para defenderem as florestas de gestão pública, tal como vem defendido no relatório da CTI (Comissão Técnica Independente), e tal como é solicitado no ponto 10 da Petição Refundar os Serviços Florestais e Aquícolas em Portugal Continental. Não se trata de nada de extraordinário, antes pelo contrário é a regra. Serviços florestais tão importantes como o Norte Americano US Forest Service tem 10000 sapadores florestais altamente treinados (“wildland firefighters”). Não se assuste caro leitor com o número de funcionários públicos, o US Forest Service gere 78 milhões de hectares de Matas Nacionais públicas, os nossos governantes apenas nos dispuseram até hoje 0,055 milhões de hectares de Matas Nacionais públicas no Continente. No momento em que só se fala que as áreas florestais privadas de pequena propriedade estão abandonadas, sem pessoas, sem gestão, a acumular mato e só à espera do próximo incêndio para voltarem a arder… Não seria agora o momento certo para que o Estado iniciasse a compra, sempre adiada, dessas milhares de minúsculas parcelas de terra, as juntasse todas, designando-as Matas Nacionais, e as entregasse a uns novos Serviços Florestais para o bem comum da sociedade?

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