Filhos de uma nação ausente MALACA

No bairro português de Malaca, o Kampung Portugis, manifesta-se ainda, numa comunidade de descendentes dos navegadores portugueses, um raro vínculo a uma nação cujo solo nunca pisaram. Na língua, n…

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Filhos de uma nação ausente

No bairro português de Malaca, o Kampung Portugis, manifesta-se ainda, numa comunidade de descendentes dos navegadores portugueses, um raro vínculo a uma nação cujo solo nunca pisaram. Na língua, nas festividades, na devoção cristã, perpetua-se uma cultura cruzada de influências que clama por um maior reconhecimento de Portugal. Lugar longínquo e venerado, que os condenou, sentem, ao esquecimento.

Reportagem de Sílvia Gonçalves (texto) e Eduardo Martins (fotografia), em Malaca

O som omnipresente dos corvos atravessa o silêncio de um bairro ainda adormecido, nas primeiras horas da manhã de Sexta-feira Santa. Nas casas alinhadas do Kampung Portugis, que pontuam a extensa Rua D’Albuquerque, as portas entreabertas, a chamar a brisa que sopra sob o sol inclemente. No átrio de cada casa um altar, atulhado de figuras da cristandade, flores, velas que ardem. Sobre cada porta, a imagem protectora de São Miguel Arcanjo, anjo-guerreiro a enxotar do lar a iniquidade. O Sagrado Coração de Jesus, a Senhora de Fátima, galeria de santidade em reduto cristão, encravado numa nação muçulmana. Desemboca a longa artéria no mar, pequena praia que se estende sobre o Estreito de Malaca, ponto outrora estratégico para a expansão portuguesa nas Índias Orientais. No lugar onde há quinhentos anos aportaram navegadores lusos, escravos, homens de comércio, sobram mais de um milhar de descendentes. Gente que carrega na cultura, no nome, na língua miscigenada, uma convicção funda de pertença, a um Portugal nunca avistado.

Ao centro de um emaranhado de ruas, que levam como nome Teixeira, Sequeira, Aranjo ou Eredia, o parque onde a escultura imensa de um Cristo Redentor assinala a área onde pulsa a vida social da comunidade portuguesa. No alto do arco branco, a inscrição “Portuguese Square”, e a passagem a uma praça repleta de restaurantes, “De Mello’s”, “Restoran de Lisbon”. E o palco, protegido do estio e da intempérie por uma estrutura em zinco, com um fundo tingido nos dois tons que percorrem todo o espaço: verde e vermelho.

“NÓS FALAMOS COMO NAQUELES TEMPOS”

Na manhã de um dia que o calendário cristão devota ao recolhimento, só Augustine de Mello avança sobre a praça. Habituado a fazer-se ao mar sempre que o tempo se mostra de feição, o pescador, de 47 anos, dedica parte do tempo a revelar o acervo acumulado ao longo de décadas no pequeno Portuguese Heritage Museum, um museu que todos os dias acolhe estudantes de universidades da Malásia, que aqui chegam à procura de elementos de uma cultura indissociável da matriz de Malaca.

“Se falares devagar, eu percebo”, atira Augustine, falante de kristang, o crioulo de base portuguesa que incorpora elementos da língua malaia (o bahasa) usado pelos portugueses de Malaca, com ressonâncias de um português antigo e sonoridade que remete para a pronúncia do Norte de Portugal. “Nós falamos como naqueles tempos”. E daqueles tempos, aqueles em que navegadores e colonos se fixaram na terra, casados com mulheres malaias, foi-se estruturando uma língua transmitida por via oral, sem registo escrito, sem ensinamento de escola, que se apropriava da palavra do mesmo modo que o mundo diante dos olhos se revelava. “Não dizemos avião, como vocês, mas barco a voar”, exemplifica Augustine, que há apenas um ano, cedo demais, perdeu a ‘mulé [mulher]’, Lisa de Costa, para a doença. “Fila é rapariga, filo é rapaz, abô é avô, belo é velho”, prossegue, numa lição infinita que ilustra o modo como as duas línguas se aproximam.

“É quase o mesmo, só não percebemos uma ou outra palavra, não temos escola. Nunca nos ensinaram na escola. Nunca fui a Portugal, não tenho dinheiro, sou pescador, mas conheço os portugueses que vêm aqui”, conta. E é sobretudo com os portugueses que aqui chegam, que se acumulam as peças que preenchem como um ovo um museu sem espaço para crescer. Fotografias, loiças puídas, mobiliário, trajes folclóricos minhotos, lenços dos namorados, bandeiras, muitas bandeiras de Portugal. Aponta para imagens antigas, dos primórdios do bairro português, com as casas ainda em madeira e telhados de colmo. Mostra o retrato do padre Álvaro Martins Coroado, fundador, na década de trinta do século XX, a par com o reverendo Pierre François, deste ‘Portuguese Settlement’ ou Kampung Portugis, em resposta aos apelos de uma comunidade portuguesa euro-asiática, renegada pelos holandeses, que em 1641 puseram fim ao domínio português, que tivera início em 1511, com a tomada de Malaca por Afonso de Albuquerque. Depois dos holandeses, chegaram os britânicos, que apoiaram o estabelecimento de um bairro para uso exclusivo da comunidade.

Augustine lamenta a impossibilidade de ver crescer um bairro onde só os descendentes de portugueses podem adquirir casa – garantia concedida pelo Governo malaio – mas onde a delimitação da terra impede a expansão. “Só temos 110 casas, não podemos construir mais, não temos mais terreno. O Governo não nos ouve, não teremos mais terreno”. Diz Augustine que vivem aqui “cerca de 1500 pessoas”, número que cresce, garante, “para cerca de 2000 no Natal”, altura em que regressam a casa os que trabalham fora de Malaca e na diáspora.

A fé que atravessa a comunidade, cravada em cada morada, estende-se à convicção dos homens, revela-se no discurso. Augustine aponta para a carcaça de um caranguejo, emoldurada, onde se vislumbra um crucifixo. Conta, em tom solene, sempre entre o inglês e o kristang, que “São Francisco Xavier deixou cair uma cruz ao mar. E quando os pescadores pescaram este caranguejo, ele vinha marcado com uma cruz”.

Permanece nas festividades, a marca mais evidente de uma cultura portuguesa que subsiste por aqui. Os três grupos locais de danças e cantares populares vivem o seu apogeu no Entrudo, na noite de S. João, que aqui se celebra a 23 de Junho, na noite de S. Pedro, santo padroeiro dos pescadores, assinalado a 29 de Junho. Muito venerado numa comunidade que já foi piscatória e onde hoje restam, conta Augustine, cerca de 70 pescadores.

“TEMOS QUE NOS ASSEGURAR QUE VAMOS VIVER AQUI PARA SEMPRE”

Ao final da manhã, chega Richard Hendricks. Apresenta-se como ‘headman’ do Kampung Portugis, líder da comunidade, nomeado pelo Governo da Malásia, com o qual lhe cabe estabelecer a ponte. Também ele filho do bairro, carrega no apelido a ascendência holandesa paterna. O sangue português chegou-lhe por via materna, de uma mãe chamada Janete Pinto, de uma avó Mary Rosário. “Os holandeses não tinham uma cultura forte, mas os portugueses sim, muito vibrante”, começa por assinalar, no ritmo apressado de quem se desdobra entre afazeres e tem de acudir a todas as solicitações dos residentes.

Richard, como outros dirão depois dele, rejeita o termo kristang para designar a língua que aprendeu de menino. “Não chamamos ao dialecto kristang, mas português de Malaca. O nosso calão é da ilha da Madeira, trocamos o ‘v’ pelo ‘b’”, explica, numa alusão ao português usado pelos primeiros navegadores portugueses a pisar este solo, que seriam oriundos, na sua maioria, da Madeira e da região do Minho.

Líder do bairro, Richard, de 45 anos, diz estar “responsável pela segurança e desenvolvimento da comunidade”. E assinala o maior desafio que enfrenta: “Precisamos de sobreviver numa comunidade muçulmana. O nosso desafio é mostrar-lhes que também somos malaios e que podemos contribuir para o desenvolvimento do país com a nossa cultura. Temos que nos assegurar que vamos viver aqui para sempre. Se o Governo vir que somos oposição, pode tirar-nos daqui. Temos que seguir a via da política, quer goste quer não. Somos uma minoria, somos 800 votantes, somos um pequeno ponto que pode crescer”.

Richard assumiu há dois anos a função de ‘headman’. Até então, era assistente de Peter Gomes, o ainda regedor do bairro, cunhado de Augustine. “O Governo só me reconhece a mim, eu é que sou o regedor para eles. Mas eu incluo sempre o Peter, para não haver divisão”. Traz vestido o uniforme azul do Governo, marca distintiva da posição que ocupa no colectivo. “Quando tens responsabilidades, mudas, tornas-te uma pessoa melhor”, salienta. E no exercício de responsabilidade, a que deita mãos no quotidiano, diz envolver as novas gerações, para perpetuar o legado que carrega: “As tradições evoluem, deixo que os jovens atraiam mais gente. Mas há que manter os aspectos religiosos. Deixo que os jovens se envolvam, delego neles, eles fazem angariação de fundos. Nas celebrações de S. Pedro [que se estendem ao longo de uma semana], são eles que organizam um dos dias. No S. Pedro temos um apoio do Governo de cinco mil ringgit [cerca de 10.500 patacas], não é suficiente, temos sempre que arranjar mais”.

Richard refere ainda a acção da Associação Cultural Coração em Malaca (Korsang di Melaka) e da sua fundadora, a portuguesa Luísa Timóteo. “Professora de inglês, esteve em Timor, quis fazer algo por Malaca. Há cinco anos tornámos a associação mais forte. Temos o apoio da AMI, criámos uma clínica para a comunidade, temos programas de saúde, rastreio de diabetes, uma enfermeira, programas culturais”, descreve.

Richard recorda a passagem pelo Kampung Portugis de figuras como Fernando Nobre, António Guterres, Catarina Vaz Pinto. Presenças que não apagam a sensação de esquecimento por parte da nação de que se sente pertença. “O Governo português teria a obrigação de nos ajudar. Ajudam um dos nossos grupos culturais mas deviam ajudar toda a comunidade”. Deixa como exemplo o contributo que uma figura planetária poderia dar para o reconhecimento do colectivo. “Temos uma equipa de futebol, se nos pudessem ajudar, se o Cristiano Ronaldo viesse cá. Nós não estamos à procura de dinheiro mas de força. A nossa força reside em todos os portugueses que estão no mundo. Se formos reconhecidos no mundo, o Governo da Malásia vai reconhecer-nos. E o Governo de Portugal pode ajudar-nos”.

“EU SEI QUE SOU PORTUGUÊS, NINGUÉM PODE DIZER-ME O CONTRÁRIO”

Uma das figuras mais acarinhadas do bairro, o músico Manuel José Bosco Lazaroo, agora com 77 anos e conhecido por ‘Papa Joe’, aproxima-se entretanto do museu. “Agora vivo a dez minutos de carro daqui, mas vivi aqui a minha vida toda. O meu pai nasceu no ‘settlement’, o meu avô foi o primeiro regedor do bairro, chamava-se Felix Danker, de ascendência holandesa. Eu tinha dois avôs, um português e um holandês, o meu pai era português, Jorge Bosco Lazaroo”.

Na ‘Portuguese Square’ subsiste ainda o “Papa Joe’s Restaurant & Pub”, que Manuel Lazaroo geriu durante anos. “Já vendi o restaurante, tenho água nos pulmões, já não posso trabalhar. Era músico, escrevia as minhas próprias canções. Trabalhei com o Governo da Malásia, o Turismo da Malásia enviou-me a todo o país, para cantar canções em português de Malaca. Cantei na televisão de Macau, na televisão de Portugal”.

E é a viagem a Portugal, a única que cumpriu até hoje, que desfia como coisa irrepetível: “Fui convidado, há oito anos. Fui convidado a ir a Lisboa, cantei numa casa de fado em Coimbra. Cantei em Paião, fui a Freixo de Espada à Cinta. Visitei todos esses lugares, foi-me dada a oportunidade de ir lá, senti-me muito feliz”.

Uma jornada que veio cumprir um desígnio soprado na infância. “Quando nasci, tinha uns dois ou três meses, estava no colo de um padre, de Freixo de Espada à Cinta, estavam lá a minha mãe e o meu pai. E o padre disse que, quando eu crescesse, me levaria a Portugal. E eu fui a Portugal, convidado pela Associação Coração em Malaca. Tive a sorte de cantar numa casa de fado, em Coimbra. Cantei fado, Samaritana, Coimbra Rio Mondego. O fado é tristeza, mas eu gosto. Mais ninguém na Malásia sabe cantar fado, eu sei, sei cantar vários fados”.

Fluente em kristang, também Manuel Lazaroo rejeita, contudo, a designação colada ao dialecto. “Há pessoas que não são portuguesas ou de ascendência portuguesa, estão a deturpar a língua. Kristang significa cristão. As pessoas dizem ‘eu falo kristang’, como podem falar cristão?”. O músico descreve assim o português de Malaca, a que vai regressando entre as frases em inglês. “Os portugueses governaram Malaca durante 130 anos, aqui em Malaca não tinha escola, não tem livro, por isso o português em Malaca fala português antigo, que não tem gramática”.

Era no diálogo com os sacerdotes católicos, figuras recorrentes no Kampung Portugis, que o português se ia entranhando. “Eu converso com padre, padre de Freixo de Espada à Cinta, padre João Guterres, padre de Suza, padre Lancelote Rodrigues, que era daqui, padre Manuel Sendim, tudo amigo, tudo fala português. Eu conheci todos os padres, as pessoas diziam ‘Joe, you’ll be safe, you’ll never die’, porque todos os meus amigos são padres. Estou abençoado [risos]”.

Interrompe-se a palavra perante o toque do telemóvel, onde soa o Hino de Portugal. Questionado sobre o que significa para ele “A Portuguesa”, não responde, mas canta: “Heróis do mar, nobre povo, nação valente e imortal…”. Segue até ao fim, emocionado, uma letra que conhece bem, com um português irrepreensível. Repete-se a pergunta, sobre o significado de uma melodia que traz entranhada desde criança. Inundam-se os olhos de lágrimas. “Eu sou português, eu sei que sou português, ninguém pode dizer-me o contrário. Eu falo português, todas as pessoas que vêm aqui sabem que sou português”. E como é ser português neste lugar do mundo, tão distante de Portugal? “Eu digo que estou a salvo, porque sou português”.

“OS PORTUGUESES VIERAM E DEIXARAM-NOS PARA TRÁS”

Pelas 18 horas, centenas de crentes alinham-se frente à Igreja de S. Pedro, no centro de Malaca, cidade declarada há 10 anos Património Mundial da UNESCO, muito por conta do legado português que aqui subsiste, como a Igreja de São Paulo e a Porta de Santiago, da Fortaleza de Malaca, conhecida como “Famosa”. Seguem de mãos postas no peito para receber a comunhão no exterior de uma igreja lotada, pintada de branco, datada de 1710. A faixa púrpura sobre o crucifixo de madeira. Em cada rosto a devoção. No interior, centenas de vozes cantam em uníssono. “Tu es Petrus”, lê-se no topo da nave, sobre o altar. “A luz da vela representa a luz que nos guia na escuridão do tempo. Removam a escuridão dos vossos corações e mentes”, atira o sacerdote, em inglês, filho de mãe portuguesa e pai indiano. A culminar a eucaristia, o tom ríspido de um sermão que assume o tom de aviso: “Depois da procissão, não deixem as velas por aí. Respeitem esta área como se fosse a vossa casa. Amén!”. E fazem os crentes fila para beijar os pés de Jesus Cristo no crucifixo.

Nas traseiras da igreja, junto à sacristia, amontoam-se os homens que se preparam para carregar o andor. Todos do bairro português, integram a irmandade “Irmãos da Igreja”, que dizem ter sido fundada por portugueses em 1546. “Temos 29 membros, somos a 7ª geração”, conta Jerry Alcantra, que, a par com Christopher de Mello, também presente, é responsável pelo Portuguese Heritage Museum. Com eles estão John Dias, Cedric de Silva, Jude Smith Lazaroo. Sobre o corpo a capa negra que os “Irmãos” usam na Sexta-feira Santa, que substitui a vermelha usada no resto da Quaresma. “Os portugueses vieram e deixaram-nos para trás”, atira Jerry Alcantra, num lamento soprado em tom jocoso, antes de se recolher na sacristia.

Depois das 19 horas, acendem-se as velas brancas, no momento em que a noite quente se anuncia. Todos aguardam o arranque da procissão em silêncio. Rostos iluminados pela chama, enquanto a cera derramada se acumula sobre a pele. Ecoam os cânticos da igreja. Na dianteira da procissão, prepara-se o escadote para receber Santa Verónica, a menina que encarna a santidade vestida de púrpura. Sobe os degraus, desenrola ao alto o pergaminho com o rosto de Cristo, gira em torno de si própria para que todos o vejam. Aperta-o depois junto ao peito, longos cabelos negros por baixo do véu.

“Sai! Sai!”, gritam os homens em português, para afastar as gentes e dar passagem à procissão. Chegam os “Irmãos” vestidos de negro, que carregam sobre os ombros o andor onde jaz o corpo morto de Cristo. “É a minha fila [filha]”, aponta Augustine, para a adolescente vestida de branco, faixa vermelha à cintura, que segue na frente, a empunhar uma lanterna. Luísa Doreen de Mello, agora com 17 anos, a menina que viveu, entre os cinco e os sete anos, com uma sentença de leucemia, segue hoje um caminho de fé.

Um silêncio profundo atravessa o cortejo lento. Alguns sussurram orações em inglês, um homem segue descalço enquanto arrasta uma vara em madeira. “Senhora Mãe, reza por nós, pecadores”, murmura. Exercício de penitência, talvez. A fé multiplica-se ao longo da estrada, entre aqueles que se chegam à procissão, mãos postas em oração, olhar temente.

“O PRINCIPAL PROBLEMA AQUI É A DIABETES, POR CAUSA DO ESTILO DE VIDA, DA DIETA”

Na manhã de sábado, o habitual torpor, no bairro que lentamente desperta. Juntam-se alguns moradores nas mesas dispostas no exterior do museu. No interior, roda um disco do grupo de Manuel Lazaroo, “Papa Joe and Friends”. Ao “Verde Minho” sucede a “Cantiga de Conquistador”, que o músico entoa cá fora, canção que acredita ter 500 anos. “Era cantada pelos escravos”, assegura. “Aprendi com o meu pai, que aprendeu com o meu avô”.

A seu lado, Luísa de Mello, filha de Augustine, só se atreve a comunicar em inglês. “Conheço as danças portuguesas, não me juntei ao grupo mas consigo dançar. Tenho a sorte de ser portuguesa”. A frequentar o último ano do ensino secundário, na Sekolah Canossa Convent, a poucos metros da ‘Portuguese Square’, diz querer trabalhar no culminar da escola. “Em Malaca, seja no que for. Quero viver aqui no bairro com a família”. E o que a seduz no bairro onde nasceu? “Gosto da vista sobre o mar, de estar com os meus amigos”. Conta que alguns jovens da comunidade são atraídos pelos empregos melhor remunerados de Singapura, a poucas horas de Malaca. “Gosto mais de me dar com os mais velhos do que com os jovens”, conta a adolescente, que lidera o serviço de altar na capela do bairro, onde é responsável por treze crianças.

Christopher de Mello junta-se ao grupo. “Desde menino que me sinto português, tenho muito orgulho nisso. Falo português, danço português, seguimos as tradições portuguesas, o Entrudo, o São João, o São Pedro, a Páscoa. Os portugueses são gente simples, adaptam-se. Já recebi vários portugueses em minha casa”, conta Christopher, que divide a manutenção do museu com os pequenos-almoços que todas as manhãs confecciona com a irmã numa banca da grande praça, no exterior da ‘Portuguese Square’. A mesma praça onde se impõe, de braços estendidos, a escultura do Cristo Redentor. Inaugurada no Verão de 2017, e concebida pelos homens do bairro – à imagem da localizada no topo do morro do Corcovado, no Rio de Janeiro -, custou à comunidade trinta mil ringgit (cerca de 62.700 patacas). “Ainda aguarda autorização do Governo”, contam Christopher e Augustine, que acalentam a esperança de não ver derrubada a obra cuja concretização se antecipou ao aval do Executivo.

Da parte da tarde, abre as portas de casa para apresentar a mulher, Margaret de Mello, enfermeira natural do Bornéu, que o acompanha nas danças e cantares populares do grupo “1511 Maliao Maliao Dance Troupe”. “Vi as danças, gostei, achei que podia aprender. Com a dança torno-me mais criativa, é bom para a mente, é um desafio”, conta Margaret.

Às filhas, deu o casal o nome das duas pastorinhas de Fátima. “Lúcia, Jacinta e Margarita. Falhou-me o Francisco, mas só tive filhas”, graceja Christopher. Margaret Mello, que é também professora no International Medical College de Malaca, aponta a tormenta que mais afecta a comunidade. “O principal problema aqui é a diabetes, por causa do estilo de vida, da dieta. Comem demasiado arroz. É difícil alterar os costumes, o estilo de vida”.

Margaret estende a mão aos habitantes do bairro, recebe-os em casa, mede-lhes a pressão arterial, os níveis de glicémia. É também no grande pátio frente à casa, que o grupo “Maliao Maliao” ensaia duas noites por semana. Margaret e Christopher recolhem-se, entretanto, no quarto para vestir os trajes minhotos que ostentam com orgulho. Mãos fincadas na anca, um pé diante do outro, assumem, convictos, a postura de dançarinos minhotos para a fotografia.

O “PEQUENO PORTUGAL” DE ANDREW DE MELLO

A partir das 20 horas, junta-se a comunidade na praça do Cristo Redentor, em torno das bancas de comida das irmãs de Augustine de Mello. Sem mãos a medir, atiram-se ao arroz de frango frito, ao ‘portuguese baked fish’, que servem acompanhados de uma sopa aguada de cebolinho e chá picante de gengibre. Noite clara, de lua cheia, a alumiar os convivas.

“Este é o meu pequeno Portugal”, atira Andrew de Mello, irmão de Christopher, à porta do “De Mello’s Restaurant & Bistro”, espaço no interior da ‘Portuguese Square’, que à noite se converte em bar, decorado ao pormenor com brasões de famílias portuguesas, caravelas, bandeiras e as armas de Portugal, para onde converge o pulsar nocturno da comunidade. Corpo tatuado, longos cabelos negros, voz áspera de rock e uma figura que poderia ser a de um nativo americano. Andrew foi durante anos estrela de música country, correu o país com duas bandas formadas entre as décadas de oitenta e noventa, primeiro os The Wheelers, depois os The Southern Reyn.

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Aos 60 anos, dois filhos e três netos, estremece-lhe ainda o rock no corpo, nas noites longas em que arranca aplausos com ‘hits’ de Pink Floyd, Eagles ou Scorpions. “Nós falamos um português curto. Vocês dizem lâmpada, nós dizemos lampo”, conta, num kristang fluente, enquanto sorve um cigarro apressado, no intervalo entre dois ‘sets’. No regresso ao palco, que partilha com a voz límpida de Aisha, leva os presentes ao rubro, ao cantar em português de Malaca “Jinkly No Na”, hino há muito entoado pela comunidade. Levantam-se os mais ousados para dançar. Vozes que gritam bem alto uma letra onde se condensa, hoje e sempre, um raro sentir português.

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