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ELOGIO DO CHARLATÃO
«O charlatão é o artista ou da erudição, ou da ciência, ou da arte. Como todas as pessoas superiormente inferiores, era um conversador brilhante.
Foi grande o meu pasmo quando o Dr. Neibas, escrevendo-me de Góis, me disse: “Estou refundindo a minha obra”. Porque o Dr. Neibas não tem obra nenhuma. Não tinha obra de espécie nenhuma.
Conheci-o em Lisboa. Uma frase casual dele, uma conversa de grupo, em que eramos os únicos, entre desconhecidos, chamou para ele a minha atenção. Falava-se de certo indivíduo, já não sei quem, e dizia-se mal. Então Neibas, numa voz baixa, como quem vai revelar uma monstruosidade essencial dum carácter, um vício oculto que explica por dentro toda uma alma, deixou escorrer para a conversa esta frase, acenando com a cabeça ao indicar, com supressão do nome, o indivíduo de que se falava:
– Parece que tem relações com mulheres…
Na gargalhada geral que se seguiu, colaborei incertamente, até que, fixo sobre mim, pela minha perplexidade, ainda com um pouco de dúvidas advindas sobre os costumes do falante, repararam que não nos conhecíamos, e apresentaram-nos.
Ao apertar-me a mão e dizer-me que tinha muito gosto em me conhecer, ainda lhe vi na face um último raio daquele pasmo como que púdico com que havia segredado ao grupo a anormalidade nula do tal, que fora assunto da conversa.
A segunda vez que o encontrei mirou-me de alto a baixo, e disse-me:
– O Sr. ou está tísico…
E enquanto eu arrefecia, esperando a alternativa suspensa, rematou lentamente:
– … ou não.
E depois, dirigindo-se à atrapalhação dos meus olhos,:
– Ou há de ser uma coisa ou outra.
E como eu franzisse enfado:
– Não me leve isto a mal. Eu sou assim. Só seria outro se fora outro.
Depois, acrescentou, como para explicar:
– Pense bem. Isto é mais profundo do que é.
Recordo-me que me despedi à pressa. Não me lembro, mas juraria que me fui irritado.
Vim a notar depois que ele falava sempre assim, aos saltos mortais de ideações, em frases circulares como que acabando onde começavam. Ao princípio não lhe achei graça.
Profundamente, não o compreendi. De início a sua atitude verbal era desorientadora.
Ao conhecê-lo melhor vim a aprová-lo e a estimá-lo, ainda que a sua conversa fosse um exercício fatigante para os ouvidos, como ver quadros de mau cinematógrafo é para os olhos.
Todo ele era isto, assim. Nunca foi mais do que isto. Nunca soube onde nascera ou crescera ou fora educado. Morava para a Estrela. Ganhava a vida num escritório misto da Baixa, onde somava em silêncio fitas irregulares de parcelas com cifrões.
Daí o meus pasmo quando, escrevendo-me de Góis, onde eu não sabia que ele estava, me informara que estava “refundindo a sua obra”.
Dentro de dois dias percebi, ou antes. Foi quando me apontaram, no jornal, a notícia do seu suicídio.
Se ele tivesse tido uma linha ou um traçado de “obra” eu não escreveria estas linhas.»
Fernando Pessoa