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Quando a realidade tem a infelicidade de acertar na teoria….E mais não digo.
Partilha-se notícia e imagem do jornal Diário Insular com o título: “Obras no “Tank Farm” na segunda metade dos anos 80 do século XX: Brincar com a sorte e com a própria vida”, da autoria do Doutor Armando Mendes.
“Dores na cabeça e no estômago, tonturas e mal-estar permanente. Foi esta a vida dos portugueses que participaram nos anos 80 do século XX nas obras no “Tank Farm” das Lajes.
O risco de cancro era muito elevado.
Cerca de 450 trabalhadores portugueses estiveram envolvidos na obra de remodelação do “Tank Farm” (tanques de armazenamento de combustíveis) dos norte-americanos situado a sul da Base das Lajes, entre esta infraestrutura e o porto oceânico da Praia da Vitória. A informação é de vários desses trabalhadores portugueses com quem DI falou nas últimas semanas.
A obra decorreu na segunda metade dos anos oitenta do século XX, depois de a empresa norte-americana Oman-Fischbach Internacional ter ganho, em 1985, um concurso público lançado pela engenharia naval dos EUA (Atlantic Division, Naval Facilities Engineering Command, Norfolk, Virgina). A substituição de tanques antigos por outros modernos (à altura) e de maior dimensão, parece ter sido o objetivo central das obras, que obrigaram à remoção de enormes massas de terra.
Alberto Vieira, hoje a braços com uma doença prolongada, foi capataz nas obras do “Tank Farm”, tendo liderado uma pequena equipa de trabalho. Decidiu contar ao DI como era a vida nessa obra, na esperança de a sua história servir para que outros não passem por uma experiência semelhante e também na expetativa de que quem por lá passou possa ser ressarcido por eventuais danos de saúde ou pelo menos assistido na doença. Vieira tem hoje consciência do problema ambiental em que esteve envolvido à altura. Mas confessa que nesse tempo não se apercebeu da situação. “Só pensávamos em trabalhar e ganhar um bom salário”, assinala.
AS CORES DA TERRA
Tratores de rastos de grandes dimensões e máquinas retroescavadoras reviraram todo o antigo “Tank Farm”, preparando o terreno para a nova infraestrutura. O trabalho dessas máquinas era acompanhado por brigadas de trabalhadores. Cada uma dessas brigadas poderia envolver dezenas de trabalhadores manuais, que utilizavam pás, picaretas, enxadas e outros instrumentos, para ajudar a preparar (alisar, sobretudo) o terreno revolvido pelas máquinas. “Era um trabalho muito duro!”, recorda Alberto Vieira.
À medida que os trabalhos avançavam, Vieira foi-se fixando, surpreendido, na cor da terra. “A terra aparecia de várias cores, por vezes em camadas. Era escura, esverdeada, avermelhada… Nunca tinha visto nada parecido”, recorda Vieira. Outros antigos trabalhadores com quem DI falou, mas que preferem manter-se anónimos, por receio de represálias, confirmam as tonalidades da terra. Alguns lembram-se de outros tons, para além dos referidos por Vieira. São citados casos de terra cinzenta, cor-de-rosa, amarela e até azul.
Os tratores de rastos misturavam a terra, pelo que as cores ficavam dispersas e diluídas. Mas as retroescavadoras abriam valas em profundidade, deixando à vista perfis de terra com camadas de várias cores. Eram esses perfis que mais surpreendiam Alberto Vieira. Ainda hoje, posto perante fotografias da obra, fixa-se com visível espanto nas cores da terra. “Nunca pensei que estas camadas de cores pudessem ficar assim tão bem definidas…”, comenta ao passar fotografia atrás de fotografia. Chega a reconhecer-se de costas, entre outros colegas de serviço de então, numa das fotografias que DI lhe facultou.
O CHEIRO DO MAL
Um trabalhador muito jovem parecia drogado logo nos primeiros dias de atividade. Trabalhava de enxada na mão atrás dos tratores que removiam a terra e a partir de poucos dias de atividade aparentava estar zonzo em permanência. Alberto Vieira chegou a chama-lo para conversarem. Sabia que o rapaz precisava de trabalhar, mas não podia permitir drogados na sua equipa. As dúvidas do capataz, porém, dissiparam-se depressa. “Começamos a ficar todos drogados… Percebi que o problema não era só do rapaz”, explica.
A terra colorida cheirava mal. “Cheirava a podre, a gasóleo e a gasolina”, recorda Vieira. E quando os tratores remexiam a terra a situação piorava. “Já sabíamos… As máquinas entravam pela terra dentro e o cheiro passava a ser insuportável”, refere.
Outro trabalhador, que também teve responsabilidades de chefia, acrescenta que o cheiro era mesmo insuportável quando as máquinas operavam nas bases dos tanques antigos que foram retirados. “Havia ali uma papa que escorria e cheirava como se fosse petróleo… Aquilo era um inferno. Ninguém aguentava”, diz.
Alberto Vieira lembra-se de trabalhadores que não aguentaram mais do que uma semana na obra. “Queixavam-se do cheiro, diziam que ficavam tontos e iam-se embora em poucos dias”, lembra. O antigo capataz nunca percebeu por que razão os trabalhadores eram obrigados a usar capacetes, mas não máscaras, que nunca foram distribuídas. “Talvez com as máscaras pudéssemos respirar melhor…”, tenta adivinhar.
Mas o cheiro acabou por não ser o pior dos problemas. Além das tonturas, que eram permanentes, os trabalhadores sentiam um mal-estar geral. “Por mim tinha dores de cabeça permanentes e dores no estômago. Os outros queixavam-se do mesmo. Cheguei a tomar muitos medicamentos, sobretudo para o estômago, mas o problema nunca se resolveu. Só me senti aliviado quando saí dali”, recorda Alberto Vieira.
OS CAMINHOS DO CANCRO
Quase todos os antigos trabalhadores das obras do “tankfarm” com quem DI falou sofrem de doenças do foro oncológico ou outras que podem ser associadas à exposição a hidrocarbonetos e derivados. Cancros do pulmão, da tiroide e do rim são os mais mencionados. Porém, há também casos de impotência sexual ainda em idades muito jovens, problemas cardíacos, entre muitas outras histórias clínicas. Alguns trabalhadores lembram-se de antigos colegas que morreram novos, provavelmente por morte súbita difícil de explicar.
A associação entre o “Tank Farm” e as doenças oncológicas é feita num estudo mandado elaborar pelos norte-americanos em 2007 e do qual DI tem uma cópia em seu poder. O trabalho incidiu apenas sobre a exposição a alguns contaminantes – cerca de 10 – e em situação passiva, ou seja, sem a remoção ou contactos com terras contaminadas. Os trabalhadores que participaram na obra de remodelação estiveram expostos a centenas de contaminantes e numa situação de contacto diretoe manuseamento directo, uma vez que a terra estava a ser removida, daí os cheiros que deixavam os trabalhadores tontos.
Na situação passiva estudada pelos norte-americanos, a presença no “Tank Farm” exponencia o risco de cancro para mais de seis vezes do que o normal, numa tabela em que o risco máximo admissível é um. Não conhecemos estudos sobre o risco em caso de remoção de terras contaminadas na situação específica do “Tank Farm”, sendo, porém, de admitir que o risco seja muito mais elevado.