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ESTADO DE NÃO DIREITO
1. A pandemia parece ter coberto com um manto diáfano as questões jurídicas suscitadas pela declaração do estado de emergência (e suas renovações) pelo Presidente da República, pela declaração de situação de calamidade pelo Governo da República, já não ao abrigo do estado de emergência constitucional, e pelas mediadas tomadas pelos Governos Regionais, ao abrigo do regime jurídico da protecção civil de cada Região Autónoma, num quadro de excepção administrativa, que determinaram a imposição de cordões sanitários, limitações à liberdade das pessoas à iniciativa económica. A situação pandémica fez sobressair, com toda a clareza, a existência de três ordenamentos jurídicos distintos, com âmbitos territoriais distintos, muito embora medidas nacionais – concretamente, algumas decorrentes da execução do estado de emergência – tivessem uma aplicação concêntrica nos Açores e na Madeira.
2. As medidas decretadas pelo Governo da República ao abrigo da situação de calamidade ou as medidas decretadas pelo Governo Regional dos Açores (Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, de 4 de Maio de 2020) suscitam fundadas dúvidas de constitucionalidade, quando impõem restrições à liberdade de deslocação ou à liberdade religiosa, fora do respaldo de um estado de excepção constitucional, na medida em que o exercício dos direitos, liberdades e garantias apenas pode ser suspenso em caso de estado de sítio ou estado de emergência (artigo 19º da Constituição) e apenas na estrita medida em que tal suspensão se torne necessária ao combate à pandemia (no caso concreto), segundo o princípio da proporcionalidade, que proíbe categoricamente o excesso.
No caso dos Açores, aquela Resolução, que impôs a manutenção dos cordões sanitários na ilha de São Miguel até às zero horas do dia 3 de Maio, apenas foi publicada no dia 4 de Maio, sendo que a publicação no Jornal Oficial é condição da sua eficácia jurídica (artigo 119º da Constituição). Os residentes na ilha de São Miguel estiveram sujeitos a uma restrição da liberdade de circulação entre concelhos sem suporte legal, por falta de publicação, desde logo. A Resolução mantém em vigor um regime de quarentena para os passageiros de viagens áreas que viola o direito à liberdade e o direito de deslocação, ambos com protecção constitucional, pois atinge cidadãos que não sofrem da Covid 19, mas são sujeitos a uma medida administrativa restritiva de direitos fundamentais.
Para além disso, esta Resolução suscita enormes problemas jurídicos, desde logo quanto à formulação adoptada para a obrigatoriedade do uso de máscaras nos veículos automóveis, que se estende aos veículos de uso privado, à ausência de previsão de coima para quem violar a obrigação de utilização de máscara nos transportes públicos colectivos ou à falta de previsão geral e imediata para uso de máscara nos estabelecimentos comerciais já abertos ao públicos, não sendo aplicável subsidiariamente o regime nacional, ao contrário do que já foi dito publicamente pelo Director Regional da Saúde.
3. O Estado de direito – numa formulação simples, muito embora as formulações simplistas contenham um mundo de complexidades – caracteriza-se pela submissão da organização e actuação do Estado à lei. O Estado de “não direito”, pelo contrário, não conhece aquela limitação e não admite que os indivíduos tenham uma esfera de liberdade sujeita à protecção da lei.
O combate à pandemia não pode transformar Portugal ou os Açores num Estado de não direito.
(Publicado a 6 de Maio, no Açoriano Oriental)