escravatura, colonialismo, reescrita da história

«Ajustando a História à vontade do freguês
Aquilo que resulta da reescrita referida e desejada por Mamadou Ba não o é porque não assenta em documentos, nem na respectiva crítica documental, mas apenas em conjecturas e convicções ideológicas.
05 jan 2022,
Há tempos, numa entrevista, Joacine Katar Moreira assumiu, como muitos outros activistas têm assumido, o desejo de alterar o ensino da História em Portugal. A então deputada não queria, como ela própria disse, “que se deixe de estudar Os Lusíadas.” O que queria (e julgo que ainda quer) é que, a par das façanhas dos heróis fossem mostradas, também, as violências que acompanharam aquilo a que chamamos Descobrimentos. Este desiderato é razoável, numa visão equilibrada do passado, mas o que está em causa é precisamente o justo equilíbrio nos pratos da balança. Uma história boa é uma história equilibrada e expurgada dos venenos da ideologia.
Será essa a História que os activistas desejam? Convém não perder de vista que muitos deles querem um Museu da Escravatura, mas são militantemente contra um Museu dos Descobrimentos. Quais são, então, os componentes da receita que preconizam? Qual o conteúdo das mudanças que gostariam de introduzir? Essas coisas raramente nos são ditas. Podemos, ainda assim, ficar com uma ideia do que pretendem se estivermos atentos às suas opiniões. Joacine Katar Moreira, por exemplo, não quer apenas uma explicitação da violência. “O que estamos a pedir” — afirmou, na mesma entrevista — “é uma revisão da história colonial, da maneira como nos é contada e recontada, com a heroicização dos colonizadores e alguma passividade dos colonizados.” E, numa outra entrevista, a deputada especificou melhor, confessando não entender por que razão os africanos teriam aceitado a escravidão e o tráfico de pessoas escravizadas. Abro aqui um parêntese para confessar a minha perplexidade sempre que me dou conta de que Joacine Katar Moreira — e muitas outras pessoas da extrema-esquerda — julgam que a escravidão e o tráfico de pessoas não existiam em África antes da chegada dos europeus, e que teriam sido práticas impostas por estes. Mas fechemos este parêntese, passemos adiante e voltemos às interrogações da ex-deputada. Como duvidava — e lhe repugnava — que muitos africanos tivessem encarado escravidão e tráfico com aceitação ou, até, de bom grado, Joacine imaginava as populações africanas, escravizadas ou não, sempre prontas a rebelar-se, situação que, estava convicta disso, só não seria do conhecimento público e assunto de manual escolar por ter sido maldosamente omitida.
Queria, por isso, que a alegada omissão fosse corrigida nos programas da disciplina de História. Ora, por muito contraintuitivo que possa ser não há omissão nenhuma, nem tal seria provável. A história da escravatura é um dos temas mais estudados das últimas décadas e a história da resistência escrava está na moda há perto de 30 anos. É errado supor que houve uma forte e permanente resistência dos africanos — ou de qualquer outro povo, aliás — à escravatura. Como David B. Davis mostrou, os escravos revoltaram-se menos do que os camponeses livres. Por alguma debilidade específica? Não, apenas porque estavam desenraizados, fragilizados de mil modos e porque a repressão sobre eles era, ou podia ser, brutal. Para que escravos desencadeassem uma revolta era necessária grande coragem, enorme desespero ou ambas as coisas. Por isso, a cidade de Luanda que foi durante séculos o grande depósito e ponto de passagem de escravos a caminho das Américas nunca teve revoltas escravas. Por isso, nas colónias americanas, as revoltas foram, durante os primeiros séculos, menos frequentes do que se diz ou se imagina, mesmo naquelas zonas onde uma relação de dez ou onze escravos negros para um cidadão livre era altamente propícia a rebeliões.
As coisas só começaram a mudar com o advento do abolicionismo, em finais do século XVIII, altura em que, então sim, eclodiram muitas revoltas. Até então a generalidade dos africanos aceitou a escravidão e o tráfico porque a maior parte deles não pensava nem agia como Joacine Katar Moreira e os seus colegas activistas o fazem no século XXI. O passado foi o que foi e não aquele que achamos, agora, que deveria ter sido e contar uma coisa diferente aos nossos alunos pode ser muito moderno e politicamente correcto, mas é falsificar a verdade histórica. Infelizmente, é por aí que vamos.
Porquê? Porque as narrativas históricas que se aceitavam há dez ou vinte anos não agradam a estes activistas. O que pretendem, então? Dito de forma simples, querem uma narrativa alternativa que se contraponha a uma “narrativa oficial” — é assim que a designam — que teria dolosamente ignorado ou riscado os africanos do mapa da História. Esse é o seu fio condutor, de modo que muitas vezes essa narrativa alternativa nada mais é do que uma contra-narrativa. Luísa Semedo, uma outra activista, escreveu um artigo no Público no qual afirmou o seguinte: “Temos direito a que a(s) nossa(s) História(s), a que as nossas vivências não sejam branqueadas, relativizadas, desqualificadas, apropriadas por uma narrativa homogeneizante que tem como principal intuito esconder verdades embaraçosas e perpetuar privilégios.” Luísa Semedo (que usou, nesse pequeno artigo, onze vezes as palavras “luta” e “lutar”) não concretizou as suas reivindicações nem nos disse a que História se acha com direito. Também não nos revelou que “verdades embaraçosas” estariam a ser escondidas. Mas o que importa perceber é que muitas destas pessoas têm o sentimento e a convicção de que muito do passado lhes tem sido sonegado e querem refazer a História de modo a que ela confira dignidade aos oprimidos e seus descendentes. Por isso, são favoráveis, por exemplo, a que se apague a imagem histórica do escravo negro dócil e pacífico e se coloque em seu lugar a do escravo intrinsecamente rebelde, independentemente do que está documentado.
Há uns meses o conhecido activista Mamadou Ba escreveu o seguinte nas redes sociais: “Aos que nos acusam de querer reescrever a história, respondemos que queremos muito mais. Porque merecemos muito mais, queremos reinventá-la para que todo o mosaico étnico da sociedade portuguesa nela se reflicta bem e com dignidade.” Esta passagem, assumida de forma clara, é todo um programa de acção que é, aliás, compreensível da parte de pessoas que se vêem a si próprias como representantes e advogadas dos que, no passado, foram estigmatizados, ignorados, brutalizados, explorados. Podemos, por isso, entender essa sua intenção, mas… será História? Em muitos casos aquilo que resulta da tal reescrita referida e desejada por Mamadou Ba não o é porque não assenta em documentos, nem na respectiva crítica documental, mas apenas em conjecturas e convicções ideológicas.
O mais grave, porém — e aqui falo do ponto de vista da seriedade da História enquanto campo do saber —, é que esta agenda não é uma mera reivindicação de um grupo de activistas negros e de pessoas que se sentem marginalizadas ou incorrectamente representadas pela História que se lecciona nas escolas. No mundo ocidental, essa agenda está a ser empenhadamente passada à prática por muitos historiadores engagés — também eles activistas à sua maneira —, os quais têm vindo a contribuir, com o seu trabalho e com a sua investigação, para ajustar a História à vontade do freguês.»
May be an image of one or more people and people standing
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  • Teresa Coelho

    Vale a pena ler a obra do fantástico Elikia M’Bokolo
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