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TEMA: ORPHEU: O ESTRANHO CASO DE VIOLANTE DE CYSNEIROS, PEDRO PAULO CÂMARA
Viver rodeado de textos, mesmo que a eles se ambicione ser indiferente, é uma circunstância inevitável. Na realidade, o ser humano é produtor e recetor de textos, mesmo que o faça involuntariamente, sendo que estes poderão surgir nas mais variadíssimas formas e nas mais diversificadas circunstâncias. Com quantos textos terá o indivíduo mantido contacto ao longo da sua existência e quantos terá ao seu dispor? O que assegurará a longevidade de um texto? Quantos textos acrescentará a humanidade a cada dia que passa? Destes, apenas alguns serão mediatizados, apenas uma parcela correrá de boca em boca ou conhecerá diversos olhos. O que possuem estes textos de especial? Enquanto depositária de textos aparentemente desirmanados, o que terá tido a revista Orpheu de único, para que, cem anos depois da sua publicação continue a acicatar a curiosidade de leitores e estudiosos? Diz-nos Pizarro que
“parece-nos relativamente convencional – excetuando, é claro, os textos de Álvaro de Campos e de Mário de Sá-Carneiro e surpreende-nos que tenha agitado tanto o ambiente literário, como demonstram os recortes de imprensa que foram colecionados por Pessoa e Sá-Carneiro, atendendo a que: 1) alguns dos textos mais agressivos e provocadores de 1915 não foram publicados em Orpheu 1 ou Orpheu 2; 2) os temas sensíveis da guerra e da situação política em Portugal estiveram ausentes da revista; 3) nenhum dos dois números publicados veio acompanhado de um programa ou manifesto.”
Não é ambição deste trabalho esclarecer esta questão, mas apraz-nos referir que tal só poderá ser elucidada se tivermos em conta um conjunto de fatores, não apenas estilísticos, quanto ao seu conteúdo e forma, mas também sociais, culturais e espaciais. Seria necessário analisar, também, o percurso intelectual de todas as vozes que ousaram atacar os participantes de Orpheu.
Leiamos Pessoa, na carta dirigida a Côrtes-Rodrigues, datada de 4 de abril, de 1915, pouco depois do lançamento do primeiro número da revista que pretendia romper com a cultura academizada e mumificada:
[…]
“Ontem deitei no correio um Orpheu para si. Foi só um porque podemos dispor de muito poucos. Deve esgotar-se rapidamente a edição. Foi um triunfo absoluto, especialmente com o reclame que A Capital nos fez com uma tareia na 1.ª página, um artigo de duas colunas. […]. Naturalmente não há números para irem para todos os nomes que v. indica. Vão para alguns. Naturalmente temos que fazer segunda edição. «Somos o assunto do dia em Lisboa»; sem exagero lho digo. O escândalo é enorme. Somos apontados na rua, e toda a gente — mesmo extraliterária — fala no Orpheu.
Há grandes projetos. Tudo na mala seguinte.
O escândalo maior tem sido causado pelo 16 do Sá-Carneiro e a Ode Triunfal. Até o André Brun nos dedicou um número das Migalhas.
[…]
Se, por um lado, a revista Orpheu foi uma iniciativa fraturante, por outro consolidou um grupo de talentos, alguns deles pouco reconhecidos, uma ideia e uma visão. Na realidade, a revista foi a alternativa encontrada por um grupo de criativos, poetas, publicitários, filósofos, pintores, para manifestar a sua “não-identidade”, como diria Almada Negreiros, fruto, quiçá, do menosprezo que a vida lhes oferecia. Afirma Corpet que “No nosso séc. XX. não há jovens talentos ou novas correntes estéticas que não tenham sido descobertas e conhecidas graças às revistas. Tudo o que conta, ou quase, na criação e na crítica literária começou a passar por elas.” As revistas literárias funcionam, então, como “notáveis instrumentos de intercâmbios”, já que, para além da promoverem a divulgação e partilha de textos e de ideias, facilitaram a divulgação de autores e correntes artísticas, contribuíram para o esbater de fronteiras geográficas e, até, linguísticas. A Orpheu não foi exceção.
Assim, num país marcado pela instabilidade política e social, consequência da formação de uma jovem república, manchada por um regicídio nascido do ambiente de enorme pressão que agitava o sistema político português; num país marcado pela participação numa guerra internacional que teria elevados custos humanos e financeiros; num país cuja unidade nacional estava fragilizada; numa Europa debilitada e esquartejada, cujas prioridades não estão, de forma alguma, relacionadas com a literatura, um murro na mesa, ou no estômago, dado por um conjunto de artistas, alimentado, mesmo que involuntariamente pela crítica e pelos media de então, acabaria por abalar a cultura portuguesa e dar origem ao movimento modernista.
Há que ter em conta que esta foi, também, uma revista de enganos e engodos, um carnaval, bem ao gosto do próprio Pessoa, seu impulsionador e artífice. Lembramos que, a título de exemplo, António Ferro foi escolhido para editor de Orpheu, sendo ainda menor de idade, sem o seu consentimento ou, sequer, conhecimento, sendo que este mesmo se afasta da revista e do grupo de órficos, fazendo e sofrendo, também, críticas diversas e ferozes. Se, para Mário de Sá Carneiro, numa carta para Pessoa , Ferro é um menino insuportável, o que ele chamaria de lepidóptero, Ferro, por sua vez, não se revê nas ideias de mudança (artística e política) que a Geração de Orpheu (ou alguns dos seus membros) reclamam e demarca-se publicamente de Pessoa, da revista e do grupo, alegando o seu republicanismo , isto após um evento em particular: a carta enviada por Pessoa, sob o nome de Álvaro de Campos, ao jornal A Capital, em que “o poeta regozijava-se pelo grave acidente ocorrido dias antes com o chefe republicano António Costa.” Confirma-se, pois, o que defende Corpet quando afirma que
“as coleções de revistas e seus sumários fazem desfilar a história da literatura mais completa que se possa desejar, mostrando ao mesmo tempo os seus êxitos e os seus fracassos, as suas experiências mais ousadas, os seus contrastes mais fortes: uma história viva, feita de todas as turbulências e polémicas, conivências e inimizades que marcam a vida das revistas.”
A vida de Orpheu fica marcada, pois, pela chegada de participações oriundas do próprio país, do Brasil, de França; de várias áreas artísticas, mas todas elas masculinas. Então, por quê dar corpo a Violante? Por quê uma mulher? Por que não um pseudónimo masculino? No sumário do número 2 desta revista trimestral (abril, maio e junho), junto ao nome de Violante de Cysneiros surge um ponto de interrogação, justificado na página que antecede a sua colaboração “Poemas dum anónimo ou anónima que diz chamar-se Violante de Cysneiros”. A pressuposição “diz chamar-se” já aponta para a certeza, por parte dos diretores deste número, Pessoa e Sá Carneiro, de que Violante seria um nome fictício, utilizado como forma de camuflagem por parte de um determinado autor.Inicialmente considerámos que a opção pudesse ser, unicamente, uma afirmação literário-social de índole feminista, numa revista marcadamente masculina, e pudesse estar relacionada com o facto de anos antes, mais propriamente em 1911, Carolina Beatriz Ângelo ter sido a primeira mulher em Portugal a poder usufruir do direito de voto, aproveitando uma brecha na legislação, recorrendo ao título de chefe de família, por ser viúva, maior de idade e autossuficiente, ou por, desde finais do século XIX, o país estar a lidar com uma corrente feminista de esclarecimento organizada, da qual faziam parte nomes como Ana de Castro Osório, escritora, Adelaide Cabete, médica, e Maria Veleda (pseudónimo), jornalista.
O Portugal do virar do século é um país em mutação e alvoroço, também no que diz respeito ao papel da mulher na família e na sociedade. Intensifica-se o movimento feminista e a forma como algumas mulheres, ainda que apenas de determinados quadrantes, e alguns homens, equacionam as suas funções, sejam estas familiares sejam sociais. Organizam-se debates e conferências, criam-se organizações, como o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, em 1914, e discute-se, publicamente, os direitos e os deveres da mulher, mas também, e já, os seus valores e as suas ambições. A mulher, adquire, assim, uma importância social acrescida e afirma-se individualmente e coletivamente. Diz-nos Maria Tavares da Silva que “[s]ão as mulheres escritoras e jornalistas membros das organizações feministas referidas – do Grupo de Estudos Feministas, da […] – que, pela sua atividade literária, quer individual, quer integrada nos periódicos oficiais das suas organizações, repetidamente clarificam, definem, explicam, justificam e defendem os ideais femininistas.” Pelo exposto acima, justifica-se que esta fosse entendida, por nós, como uma das possíveis razões para a escolha de um heterónimo feminino.
O próprio Côrtes-Rodrigues, todavia, em 1960, numa das muitas entrevistas que deu, justifica a criação de Violante com o seguinte argumento: “O interesse de um nome feminino que espicaçasse a curiosidade pública e quebrasse a monotonia da revista no aspeto da sua colaboração só masculina, fez com que Pessoa idealizasse esse heterónimo. Aceitei-o porque me agradava a sonoridade mediévica do nome.”Todavia, anos antes, um outro motivo, também esse evidentemente humano, escassamente literário, seria exposto pelo próprio. Bem sabemos que o medo, ou o receio, resulta da profunda consciência do indivíduo de que aquilo que verdadeiramente possui se reduz ao momento presente, ao Agora. O medo manifesta-se, pois, quando o ego se sente em perigo, quando se sente sob ameaça direta ou indireta, quer física quer psicologicamente. O medo não inferioriza o indivíduo; humaniza-o. É, pois, natural, que Côrtes-Rodrigues tentasse salvaguardar o seu bem-estar académico, e que, após ter recusado participar no segundo número da revista, tivesse enveredado na aventura de dar vida a Violante de Cysneiros.
“Passámos a reunir no Café Mascote, onde se preparou o segundo número da revista. Colaborei nele com o pseudónimo Violante de Cysneiros. Tinha-me negado a dar qualquer poema, com receio de que isso me trouxesse complicações no exame de fim de ano. O dr. Adolfo Coelho, meu mestre, que morava em Paço de Arcos, era meu companheiro de comboio entre Algés e Lisboa e, se vínhamos ao pé um do outro, levava toda a viagem a desancar impiedosamente os de Orpheu. Foi então que Fernando Pessoa, que muito frequentemente me recomendava a “duplicação da personalidade” (a frase era dele) sugeriu que arranjasse um pseudónimo de mulher, achando até excelente que aparecesse uma colaboradora entre tantos poetas, guardado e costumado sigilo, para provocar maior curiosidade. E foi ele que escolheu o nome.”Se várias poderão ser as causas do medo, seguramente muitas serão, também, as suas consequências. O fantasma da destruição física, emocional ou psicológica afeta todos os aspetos da vida do indivíduo. Neste caso em concreto, o medo faria nascer uma outra entidade e ofereceria ao movimento modernista português, às letras portuguesas e à posteridade, como referiu Klobucka “a mulher que nunca foi”.Diz-nos Corpet que “[e]m todas as situações, a história das revistas revela-se uma história das paixões literárias. E uma constatação impõe-se: com um mínimo de meios e de apoios e um máximo de exigências e criatividade, elas favoreceram mais e melhor que qualquer outro meio, a invenção permanente da literatura.” É sabido que para publicar Orpheu os recursos económicos eram poucos: os autores tinham de co-custear a revista e contavam com o generoso apoio do pai de Sá Carneiro; todavia a dita paixão literária, porventura, também, a determinação de escandalizar e de criarem ou alimentarem correntes de vanguarda, rompendo com os cânones vigentes, bem como alguns laços de amizade, impeliram Côrtes-Rodrigues a alimentar Violante.
Violante endereça os seus poemas. Dedica-os a outros grandes senhores de Orpheu. Desapropriado? Um elogio mútuo, porventura? Uma estratégia para espicaçar a curiosidade dos que duvidavam da qualidade do conteúdo exposto no primeiro número da revista? Uma estratégia de marketing literário? Uma provocação? A sequência, como se intempestiva fosse, surge na sua totalidade, datada de junho de 1915.
As duas primeiras composições poéticas, sonetizadas, são dedicadas a Álvaro de Campos, também ele real, mas nunca fisicamente, tal como lhe são dedicadas as próximas duas composições, constituídas, cada qual, por três quadras, bem ao gosto popular, e bem ao gosto do homem material por detrás de Violante, Côrtes-Rodrigues. Campos é o poeta do verso livre, impetuoso e caudaloso; todavia, os textos que lhe são dedicados apresentam-se organizados, metódicos, seguindo a estrutura do soneto italiano, em que, geralmente, o texto lírico abre com uma introdução e fecha com uma conclusão, presente no último terceto, no qual é, regra geral, desencriptado o seu significado.Campos recebe o título de Mestre, embora o próprio Pessoa o descreva como um discípulo de Alberto Caeiro, sendo que, de todos os mencionados nas dedicatórias, é o que recebe maior e mais profunda atenção. Campos alimenta-se de sensações e expressa a necessidade de que estas sejam constantes e reais, focando toda a sua atenção e insistência na possibilidade ou impossibilidade da sensação fazer parte do seu quotidiano. Aliás, em Campos, ganha sentido a existência palpável dos elementos da realidade e o que estes provocam no eu poético. Já o seu criador, afirmava nas suas reflexões “A única realidade para mim são as minhas sensações. Eu sou uma sensação minha. Portanto nem da minha própria existência estou certo. Posso está-lo apenas daquelas sensações a que eu chamo minhas.” Violante afirma, similarmente, no poema intitulado II, que “Só sensações são Presente, / Só nellas vive a Verdade.”
Violante escreve, ainda, na última quadra dos textos que dedica a Álvaro de Campos, “Passado nunca passou / Futuro não o terei: Pois sempre Presente sou / No que Fui, Sou e Serei.”. É notória a aproximação entre Violante e Campos, já que este também escrevera, em Ode Triunfal “Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento, / O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro”, confirmando o argumento com o acréscimo “todo o passado dentro do presente! / Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!”. Ambos vivem do instante presente, em busca de sensações profundas e plenas, absorvendo-as. Verifica-se a urgência de sentir. Se Campos é o exemplo da condição humana dilacerada, vacilante; se é o poeta da angústia existencial; se é aquele que oscila entre o Tudo e o Nada; em Violante encontra uma alma gémea. O engenheiro sensacionista recebe da discípula uma vénia final, expresso no prolongamento de um sentir comum.
Segue-se a marcha elogiosa até Mário de Sá Carneiro, um dos mentores do projeto, porventura umas das mentes mais inquietas. “Há pouco quando bordava” marca o início do poema. De facto, se bordar corresponde a ornar de traçados um determinado tecido, o poeta faz precisamente o mesmo: borda textos com a agulha das palavras num tecido virgem que é a página em branco. Mas o ato de criar, de decorar, nem sempre é pacífico e indolor e frequentes são as vezes em que a agulha-caneta “pic[a] a ponta dos dedos”, leia-se da alma.
Sá Carneiro suicidar-se-ia, em Paris, menos de um ano depois, em abril de 1916. Assumidamente insatisfeito e inconformado, como as “papoulas rubras / […] tão sós e tão alheias” do poema que lhe dedicaria Violante, põe termo à vida, embora a correspondência com Fernando Pessoa pareça indicar uma energia criativa invulgar e assaz sentido de humor. O autor-génio é vítima do escárnio que ataca muitos precursores, e, na sua mente atribulada, segue o único caminho que encontra. Se em 1981, Gabriel Garcia Márquez escreveria Crónica de uma Morte Anunciada, em 1916, de Paris para o mundo, Sá Carneiro seria o autor da Carta de uma morte anunciada.
“Meu Querido Amigo.
A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas “cartas de despedida”… […] Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. […]
Mário de Sá-Carneiro,
Regressemos ao início do século XX e Violante coloca em texto a simplicidade pacata de uma tarefa feminina. Escapa, porém, ao rigor estrutural do soneto e oferece um poema de dez versos, onde possa surgir, também, “inesperadamente, a metáfora da criatividade feminina”, quer pela forma, quer pelo conteúdo. Os dedos que bordam e que criam são os mesmos que escrevem; e “o corpo não se reduz aqui ao elemento pré-textual: é, literalmente, através dele que se produz a inscrição sangrenta, ele – ao mesmo tempo obstáculo e potencialidade de escrita.” Se a tarefa da bordadeira carece de habilidade, até para que não pique os dedos, também carece da habilidade a tarefa da escrita.
O poema que se segue, “Nada em Mim é necessário”, é dedicado a Fernando Pessoa e retoma-se o soneto. É possivelmente neste poema que Violante mais se aproxima daquele que lhe deu voz – se é que alguma vez se afastou –, ou em que Armando Côrtes-Rodrigues mais se desmascara, invocando as “contas do [s]eu rosário”, referência religiosa tão típica do seu registo, ou invocando a ilha, mesmo que perdida. O sujeito lírico afirma que nada em si é necessário, mas introduz o pronome “Mim” com letra capital. Assume sensivelmente o papel de nome próprio, tão irreal quanto o autor Violante, tão concreto como quem lhe dá vida. O que foi sonhado não é necessário, sendo que tudo é o resultado do próprio sujeito.
Mas aproximemos o texto do homenageado. Sabemos que na panóplia das temáticas pessoanas, o passado é tido como um refúgio do presente e que a pouca alegria manifestada se encontra relacionada com a infância perdida, na lonjura do tempo. O dilema da realidade presente enquanto original e transitória é absorvido frequentemente pela necessidade de sonhar; sendo que a realidade é, também ela, fabricada e o próprio pensamento alicerça-se numa estratégia de fingimento.
No texto “O Marinheiro”, de Pessoa, presente em Orpheu I, a primeira veladora, no diálogo com as restantes donzelas veladoras questiona a irmã se “Não desejais, […] que nos entretenhamos a contar o que fomos. É belo e é sempre falso…”, acrescentando, todavia, que “é inútil” pois “[o] passado não é senão um sonho… De resto, nem sei o que não é sonho”. Em alguns casos, verifica-se uma necessidade recorrente de recuperar os dias já idos, em outros, uma urgência extrema de dissimulação e invenção.
O texto supramencionado é um drama sobre a vida interior e a própria passagem do tempo, já que horas concretas e relógios, naquela sala, não existem; o tempo vai passando, porém, e o galo cantante assinala essa passagem imutável, essa verdade inegável. Neste soneto de Violante “Só [o seu] meu longe de passado / É como um sonho sem fim” e, tal como o sonho, o passado não é palpável. A ilha, se perdida está (“Marinheiro! Ilha Perdida!”), não se encontra e mareantes vaguearão sem poiso fixo. Na verdade, “nada […] é necessário” e a única “verdade da vida” e único “sentido” é sonhar; pois já afirmara a segunda veladora, em “O Marinheiro” que “… Só viver é que faz mal…”
No poema seguinte, dedicado a Alfredo Pedro Guisado, acérrimo divulgador da revista na Galiza, aquele que recebe largos elogios por parte de Pessoa, como é visível na sua correspondência “P.S. O Guisado tem feito ultimamente extraordinárias e inesperadas coisas, versos ofuscamente belos.”, reaparece a enigmática maiusculação de palavras-chave, sendo que, neste caso, capta a nossa atenção o -Me e a repetição do determinante. Outra, quando no poema anterior surgiu o pronome Outro. Todavia, o -Me surge aliado a dois verbos deveras pertinentes: Ver e Ser, um que exprime a ação de enxergar e/ou reconhecer(-Se) e o outro que exprime a noção de existência. De facto, escrever é estabelecer ligações. José Luís Peixoto afirma que
“há poucas experiências tão interessantes como quando se lê um livro e se percebe “já senti isto, mas nunca o tinha visto escrito” […] Trata-se de ordenar, de esquematizar, não só sentimentos como ideias que temos de uma forma vaga, mas que entendemos melhor quando os vemos em palavras. Trata-se também de construir empatia: através da leitura temos oportunidade de estar na pele de outras pessoas e de sentir coisas que não fazem parte da nossa vida, mas que no momento em que lemos conseguimos perceber como é. E isso faz-nos ser mais humanos. Na leitura e na escrita encontramo-nos todos naquilo que temos de mais humano.”
Assim, Violante estabelece, não apenas pela leitura, mas essencialmente pela escrita, uma afinidade com Guisado. Mais, o sujeito poético transfigura-se em Salomé, não uma Salomé bíblica e distante, não a Salomé que Guisado apresentara no primeiro número de Orpheu, ou aquela sobre quem Mário de Sá-Carneiro também escrevera, mas uma outra Salomé (“Presente no meu olhar, / Eu fui Outra Salomé / Feita de mim a dançar.”), aquela que dança e a que é, uma Salomé na primeira pessoa, que existe e que se reconhece.
Violante, mulher, escreve sobre Salomé, que se manifesta viva e ser bailante em movimento, só assim completo, pois o ser-[S]e só se conclui perante o Ver-[S]e a dançar prolongadamente, continuamente, sincopadamente: “Dancei… Dancei… E o Ver-Me / Toda de curva e de pé / Era o sentido de Ser-Me.”. Afirma Koblucka que Violante “situando-se como Salomé […], empenha o seu corpo dançante para nele próprio fazer representar os requebros da decomposição “sensacionista” […] aceitando assim assumir-se abertamente […] como uma estrutura ao mesmo tempo derivada e combinatória, modelo para montar – e desmontar […]”, com cuja perspetiva concordamos, apoiando a nossa decisão num verso acutilante “Todo o meu corpo pedaços”, que será, também, para nós, a metafórica evidência física da fragmentação psicológica e emocional do eu.
Todavia, os mistérios de Salomé são os mesmos e são já idos, quer esta seja percecionada e admirada por olhares alheios, quer seja analisada pelo seu próprio olhar. Restam-lhe, apenas, as curvas do seu corpo, espelho dos seus sentidos.
“Passo no mundo a vivê-lo” é o verso anafórico que estreia o poema dedicado a Armando Côrtes-Rodrigues, sendo que lhe sucede “Passo no mundo a senti-lo”, ambos derrubados pelo verso que inicia a segunda quadra deste terceto “Passo no mundo a sonhá-lo”. Acreditamos ser, pois, uma aproximação evidente à estética, ou à temática existencial, do seu amigo Pessoa, ou do seu semi-heterónimo Bernardo Soares, já que este último escreveria um trecho que viria a fazer parte do Livro do Desassossego (“Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida.”) Côrtes-Rodrigues, pela convivência e pela correspondência com o “seu Pessoa”, estava consciente das crises existenciais e depressivas deste, sendo que o senhor dos heterónimos lhe confessou, meses antes da publicação deste segundo número de Orpheu, que ele próprio já não existia “Eu já não sou eu. Sou um fragmento de mim conservado num museu abandonado.” e que estaria, portanto, a trabalhar num outro projeto literário desconexo e caótico “[o] meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do Desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos”. O Livro do Desassossego nunca ficaria pronto, nem seria possível que tal acontecesse. Já dois meses antes, em setembro, Pessoa informa o seu amigo que
“Mau grado a alguma depressão, constante desde que lá fora é guerra, tenho passado com razoável calma pela ilusão sucessiva dos dias. […] O que principalmente tenho feito é sociologia e desassossego. V. percebe que a última palavra diz respeito ao «livro» do mesmo; de facto tenho elaborado várias páginas daquela produção doentia. A obra vai, pois, complexamente e tortuosamente avançando.”
O tom das cartas que Pessoa troca com o escritor açoriano é sempre de profunda intimidade; também de intimidade profunda e intranquila é o tom de Bernardo Soares, no seu Livro, visível, por exemplo em “Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser.”, fazendo lembrar a célebre canção “Estou Além”, de António Variações, de 1982,
[…]
“Vou continuar a procurar
O meu mundo
O meu lugar
Porque até aqui eu só:
Estou bem aonde eu não estou
Porque eu só quero ir
Aonde eu não vou”[…]
Verifica-se um diálogo constante e manifesto entre os textos de Violante de Cysneiros e os textos publicados por aqueles que são alvo das suas dedicatórias, sendo este não só visível nas temáticas abordadas, mas também pelo reaproveitar de vocabulário, de expressões, de ideias. No número um da revista, Côrtes-Rodrigues escreveria “Passo triste no mundo, alheio ao mundo. / Passo no mundo alheio, sem o ver, / E, místico, ideal e vagabundo, / Sinto erguer-se minh’Alma do profundo / Abismo do meu Ser.”, ideia esta que seria retomada no poema agora em análise, dedicado ao próprio.
A produção textual possibilita um “procedimento narcísico”, em que Violante dedica o que escreve ao seu criador, não se tendo este “outrado” o suficiente. Klobucka afirma que “o sujeito, com maior veemência do que nunca, declara-se idêntico a si mesmo no presente absoluto da sensação vivida”.
Ora vejamos, no último terceto do soneto dedicado a Côrtes-Rodrigues pode ler-se: “E sempre de Mim Presente, / Todo o meu ser se limita / Em Eu Me Ser Realmente.” Na realidade, Côrtes-Rodrigues, autor físico de Violante, reconhece e assume a consciência de si mesmo, fortalecida pela maiusculização de todos os vocábulos do último verso.
De facto, Violante nunca escapou ao jugo de Côrtes-Rodrigues, ideia também defendida por Klobucka quando afirma que um “[…] conflito de lealdade […] acabou por gerar um produto acessório: um simulacro de poetisa cuja verosimilhança existencial aparecia garantida pelo contexto epocal, mas cuja voz se deixaria docilmente manipular pelo seu autor, a quem se via assim devolvida, pelo menos, a ilusão de soberania criadora.”
Perante o “vazio biográfico” que é Violante de Cysneiros, esta cumpre-se nos seus escritos. Violante carnaliza a sua existência; invade o seu derradeiro poema em Orpheu com detalhes físicos pessoais, compondo o arranjo que havia urdido desde a primeira composição poética, já que havia inundado os textos com marcas da primeira pessoa gramatical, evidentes nos pronomes pessoais e também nos afixos verbais.
Mãos e unhas são tão autênticas que nelas se manifestam a ansiedade do sujeito lírico, como é evidente em “Quando eu as [as unhas] fico polindo / perpassa nellas em ancia / A tua boca sorrindo…”. Em “O Marinheiro”, a segunda veladora afirmaria, contudo, que “As mãos não são verdadeiras nem reais. São mistérios que habitam na nossa vida…” Em 1915, as mãos de Violante, e as do seu criador, seriam, para a maioria dos leitores, tão misteriosas quanto a sua identidade.
A sua existência aparentemente real é corroborada com a marca temporal que antecede o poema auto-dedicado “De há dois annos”; dois anos que se traduzem em fiasco e ausência. Neste poema, Violante encontra-se, e dá-se “a jubilosa identificação de Violante consigo mesma”, reafirmando (todavia) a sua solidão e isolamento, tão visível na “contemplação narcísica das mãos, procurando pela circularidade das carícias reiteradas, eximir-se à dispersão diacrónica da personalidade, [que] desemboca contudo, irremediavelmente no fracasso”, cujo último terceto expressa “Mas os meus dedos em i / Dizem a longa distância / Que vae de Mim para ti.”
Referindo-se às revistas, Corbet expunha que a longevidade destas é geralmente reduzida, já que devido à “[…] sua leveza e, ao mesmo tempo, fragilidade: as revistas raramente sobrevivem aos grupos e aos movimentos que as suportam.” De facto, apenas dois números de Orpheu foram publicados. Um terceiro foi pensado, organizado, montado, fizeram-se provas. Todavia, como já referimos, Orpheu não se cingiu à sua breve existência. O próprio Pessoa referiu, consciente, que “Orpheu acabou. Orpheu continua.”, e, se a revista se mantém viva, um século volvido, a única mulher participante na dita também não morreu com o seu encerramento, pois em 1916, de maio a dezembro, Violante de Cysneiros ainda escreveria, inserida na rubrica Azulejos, no jornal O Autonómico , em São Miguel, de que é exemplo o seguinte texto:
I
Romarias
“Romarias… E a voz dos Romeiros é a Alma da Paisagem no espanto de se sentir acordada e vibrante.Andaram saudades nos meus olhos naquele entardecer em que a fila dos peregrinos era um rosário vivo no verde calmo dos montes e em que a ermidinha era mais branca sob o azul do céu que desmaiava.
E na paz religiosa da tarde os ecos acordaram para dizerem a anciã amargurada das orações que lá iam subindo.”[…]
O leitor seguramente divide a sua atenção entre a pseudo-anonimidade do texto e o facto do nome que o assina ser do género feminino. A imprensa e a concretização do texto numa página, num livro, contribuíram para o crescendo de importância que a identificação do autor ganhou. O autor é, assim, uma identidade legal e institucional. É, pois, mágico o nome de cada autor; será, pois, mágico o nome de Violante.
Violante assinala a participação feminina na revista, ainda que falsificada, sendo que o seu papel foi o de unificar, ainda mais, o grupo de homenageados pelos seus poemas (e por consequência todo o grupo órfico) e o de alimentar, como diria Klobucka, a “atmosfera de expetativa, já antecipadamente irascível ou entusiasta […] em que ia cair o segundo número da revista”. Em 1965, Almada Negreiros diria que “A Arte era a solução. A nossa solução comum; éramos em realidade muito estranhamente diferentes uns dos outros.”. Violante é a ponte que aproxima os homens, os textos e as ideias. O próprio Pessoa, magíster da trupe órfica, na composição Nós os de «Orpheu», em 1935, ao justificar a organização do número 3 de Orpheu, regista que “Nada, porém foi possível incluir de Côrtes-Rodrigues, que é diretamente de Orpheu, e os poemas de cuja personalidade inventada, Violante de Cysneiros, são uma maravilha subtil de criação dramática.” Violante é, portanto, parte desse Nós unificador, tão parte como Álvaro de Campos, e o seu contributo é reconhecido como sendo um fenómeno criativo. Consideramos, pois, que o contributo de Violante, no segundo número da revista Orpheu, corresponde a um enriquecimento da mesma, não só pela implicação de múltiplos destinatários e pela dinâmica discursiva, como por todo o “jogo” literário que possibilitou.
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