em memória de Medeiros Ferreira por Cristóvão de Aguiar

Em Memória de José Medeiros Ferreira

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Preâmbulo
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  • Cristóvão de Aguiar (2014),”Em Memória de José Medeiros Ferreira”, blogue A Destreza das Dúvidas, 24 de Março de 2014.

Em Memória de José Medeiros Ferreira

O Amigo que entrou no apeadeiro errado com o relógio adiantado

Para a Maria Emília, companheira de toda
a vida, e o Miguel, seu filho

Cristóvão de Aguiar

A morte temporã do meu Amigo José Medeiros Fer­reira, no cume da força in­telectual, ainda na posse de um raciocí­nio cintilante, de uma argumentação logicamente inflamada e de um humor inteli­gente – além de trágica e iníqua, abre fundas fissuras no plano da Jus­tiça transcen­dental, só domiciliada na fé dos crentes: apres­sada, in­falível, irremediável… Antes as abrisse, ainda no uso pleno da vida que o abandonou, na Jus­tiça venal deste país por que tanto lutou e faz prescre­ver, na sua lentura, pro­ces­sos-crime e outros de­litos que padecem da lepra da dila­ção… Não se compreende que só a primeira dessas “justi­ças” con­siga uma celeridade extem­porâ­nea. Pressupunha-se que a outra fos­se também veloz e de uma equanimidade à prova do fogo. De­pen­desse o meu Amigo da Justiça doméstica, e te­nho a certeza de que se adiaria a do­ença e quando a ceifeira che­gasse já a morte estaria pres­crita, proscrita…
Já quase tudo foi dito e escrito nos meios de comuni­ca­ção so­cial sobre as facetas mais exteriores, mas relevantes, do ho­mem público que foi José Me­deiros Ferreira – a de Político sa­gaz dotado de um sentido de estratégia e de previsão notá­veis, a de Profes­sor Universi­tário, in­vesti­gador, historiador e en­saísta dePortugal em Transe, do Oitavo Volume da His­tória de Portugal, organizada por José Mattoso, de Não há Mapa Cor-de-Rosa, a história (mal)dita da integração europeia, o seu ultimo livro publicado em vida e de tantos outros de inegável valor político e histórico: O Com­portamento Polí­tico dos Milita­res, a sua tese de Doutoramento, Os Açores na Política Inter­nacional, Cinco Regimes na Política Internacio­nal, e muitos outros… Tal era o seu poder de previ­são (e um político digno deve tê-lo, o que não sig­nifica adivinhatório, mas, sim, estar na posse de um conhecimento penetrante das ténues oscilações da realidade), que, em 1973, numa co­muni­ca­ção enviada do exí­lio, na Suíça, ao Con­gresso da Opo­sição Democrática, em Aveiro, sus­tentou, com a agu­deza que lhe foi sempre in­trínseca desde a juven­tude, que o regime estado-novista só pode­ria ser derrubado caso as For­ças Ar­madas entrassem em acção. Cerca de um ano depois, cum­pria-se o vaticínio. Tendo sido o primeiro historiador que se aventurou a publicar, em 1989, um li­vro sobre o 25 de Abril, intitulado Um En­saio His­tórico sobre a Revo­lu­ção, logo daí se depreende a sua desti­mi­dez de vir eventualmente a ser acu­sado de es­crever história en­quanto ela estava ainda de­cor­rendo…
Peço desculpa por me citar. “Estou con­ven­cido de que os teus biógra­fos sen­tirão, no fu­turo, alguma dificuldade em des­lin­dar o motivo por que sendo tu um civil por dentro e por fora te devo­tas por in­teiro a as­suntos de natu­reza castrense ou com eles rela­cio­nados. Não é mi­nha intenção falar para a His­tó­ria, quem sou eu, mas posso dar a minha achega­zinha, como diria o nosso velho pro­fessor de Lite­ratura Por­tuguesa dos encantados tempos do Liceu da Ilha. Creio que não anda­rei muito des­viado da verdade se aqui escre­ver que essa pro­pensão te está enraizada no pretérito per­feito do san­gue. Pri­meiro, foste nado e criado em ambiente favo­rável: teu Pai, pertencente a uma força pa­rami­litar, a Guarda-fis­cal; mais tarde, teus irmãos mais velhos se­guiram os estudos supe­rio­res nas res­pectivas Acade­mias, na Militar e na da Mari­nha; se­gundo, também tu, à semelhança de eles, te havias con­ven­cido de que era esse o rumo que te estava tra­çado desde o berço. Ditosa­mente, uma revi­ravolta interior, forte e impera­tiva, na passagem do velho quinto ano para o Curso Com­ple­mentar, veio pôr por terra um sonho de ado­lescência, que, a tor­nar-se ver­dade, ter-nos-ia pre­senteado com um ex­celente militar, mas subtraído o historiador que és. No teu li­vro en­con­tra-se subjacente a vi­são arguta do diplo­mata que a partir dos ban­cos do Liceu nunca mais dei­xaste de ser. Parecendo que isto de mi­li­tares pouco vão além das res­pecti­vas casernas (o que não deixa de ser válido para grossa fatia dos seus membros), vieste, com a tua tese, de­mons­trar que a Ins­titui­ção, no seu todo, é de tal arte re­levante que estu­dando-a a sério se tem forçosamente de dissecar e inter­pretar a com­ple­xi­dade do País de onde ela pro­manou. Exactamente o que fi­zeste. “O Exér­cito é o espelho da Nação”, já dizia a propa­ganda salaza­rista nos inícios de ses­senta…” (in Nova Relação de Bordo, Dom Quixote, pp. 6/7)
Nesta minha evocação e invocação irei, daqui em diante, cal­correar um percurso mais íntimo e mais chegado à minha ín­dole por natureza me­nos racional do que sentimental e afec­tiva, oposta à do meu com­panheiro e Amigo. Talvez por essa razão nos encai­xávamos bem: cada um a funci­onar como contra­peso do outro, ao mesmo tempo complementando-se e completando-se.
Meu Amigo e con­terrâneo, nascido por casualidade no Fun­chal, em 20 de Fevereiro de 1942, fomos cole­gas colaços a partir dos bancos do Li­ceu Na­cional de Ponta Delgada, que fre­quentá­mos até ao antigo sé­timo ano, hoje 12º, ele a partir do ter­ceiro (nos primei­ros dois, es­tudara no Externato de Vila Franca do Campo, onde o Pai, Guarda-Fis­cal, ti­nha ao tempo sido colo­cado); eu, desde caloiro mais o Viriato, com uma du­pla de­tença no terceiro ano, o iní­cio do 2º ciclo, por ter tido al­gu­mas dúvidas nas matérias lec­cio­na­das, que o Viriato ul­trapassou, contrarie­dade que re­dundou em meu próprio be­nefício, porquanto o Ferreira, como então era conhecido, em vindo da Vila matricu­lar-se no Liceu, pas­sou a ser meu co­lega de turma, situação que se manteve até ao último ano. Estabeleceu-se de imediato uma corrente de empatia entre ambos e por meu intermédio com o Viriato Madeira, nessa altura já no quinto ano, mas que viria a esperar por nós (pelas mes­mas razões que atrás aduzi a meu respeito) pela nossa subida de dois de­graus, a fim de ficarmos no mesmo patamar… An­tes dessa ascensão, porém, já andávamos os três juntos, quer nos in­tervalos, quer durante a pausa mais longa do almoço ou lan­che, que trazíamos de casa e tomáva­mos ao ar livre, se o tempo deixava, ou debaixo dos telheiros dos pátios do palá­cio do Barão da Fonte Bela, onde estava e está sediado o Li­ceu. Éramos de fora da cidade, uma carga pejorativa nos anos cinquenta, oriundos de famílias de pou­cas posses, vínhamos todas as manhãs e regressávamos to­das as tardes a cavalo na camionete da carreira, cada um para o seu des­tino: Fajã de Cima (Ferreira), Ribeira Grande (Viriato) e Pico da Pedra, este que agora está com o dedo indi­cador a matra­quear no teclado do portátil…
Quanto à naturalidade do Medeiros Ferreira, Ponta Delgada ou Fun­chal, dizia ele muitas vezes: “Nasci no Funchal, onde meu Pai pres­tava serviço, mas, aos dois meses de idade, aca­bada a comis­são, a família regressou à origem, Ilha de São Miguel; regressámos no Carvalho Araújo, mas no na­vio via­java um passageiro clandestino, eu próprio, devido ao facto de o meu Pai me não ter registado na cidade onde nasci; de­pois de che­garmos a São Miguel, ele, que sempre foi muito estrito no cumpri­mento da Lei, pertencia ao reino militari­zado, foi registar-me em Ponta Delgada, como nascido no Funchal, o que me tem criado alguns problemas, uma vez que, sempre que necessito de documen­tos tenho de recorrer ao Registo Civil do Funchal; tão cumpridor, tão cumpridor, que me trouxe clan­destino da Madeira, aos dois meses de idade, num navio, rumo a São Miguel; acho que foi pre­moni­tório esse es­tatuto clandestino que meu Pai me outor­gou e me cai a pre­ceito… Fui baptizado na Fajã de Cima; podia ele muito bem ter declarado que eu havia nascido nessa fregue­sia, não violava mais a lei do que já a tinha transgredido; mas, apesar de ma­deirense, consi­dero-me como nascido na Fajã de Cima, mi­cae­lense de gema, por­tanto, nem de outro modo conceberia que fosse …”
Logo principiou o Ferreira a dar nas vistas entre a malta do Liceu. O seu poder oratório e persuasivo veio ao de cima, e era vê-lo a pregar para um cacho de alunos que o rodeavam, consolando-se a ouvi-lo e a rir à gargalhada do seu humor, por vezes mordaz, mas sempre inteligente e fino. Falava de tudo, futebol incluído. Era um grande adepto do Benfica, cuja direcção actual lhe enviou uma coroa de flores no dia do fu­neral, lia com entusiasmo o jornal A Bola, muito bem escrito nos anos cinquenta do século passado, e não surpreende, pois fora fundado e dirigido por Cândido Oliveira e Ribeiro dos Reis, um ano após ter o primeiro sido libertado do Tar­rafal, onde permaneceu, como preso político, de 1942-1944. Nessa altura (meados dos anos cinquenta) o jornal publicava-se bis­semanalmente e depressa chegava à Ilha. Sublinhei acima grande adepto de caso pensado: não terá sido o nome do pro­grama Grandes Adeptos, transmitido pela RDP, de que Medeiros Fer­reira fazia parte, sugerido por ele próprio? Se­gue-se que a leitura enfronhada do jornal, com imagens e metáforas a que não estávamos habituados, não só o influen­ciou a ele como aos dois amigos íntimos, a tal ponto de o professor de Portu­guês ter passado a notar que as nossas re­dacções, nos exercí­cios de apura­mento, eram escritas de uma maneira pouco usual, sendo, por vezes, uma ou outra, lida em voz alta na sala de aula, quando o professor no-los entre­gava… Eram as metáforas de A Bola…
O ano das eleições do General Humberto Delgado! Realizadas a 8 de Junho de 1958, três dias antes do fecho das aulas, a 11 de Junho, férias de ponto do exame mais difícil do curso liceal, foi em meados de Maio um período de grande azáfama, meio clandestina, que o pessoal menor do Liceu (assim era designado pela hie­rarquia) podia dar e dava algumas vezes com a língua nos dentes… As “ses­sões” eram efectuadas no Campo de Jogos, à hora do almoço, onde estanciavam os alunos de fora da ci­dade, quase todos mais novos. Neste caso concreto, eu e o Fer­reira tivemos uma divergência “política”, não insanável: a ami­zade não foi belis­cada. Como católico e militante da JEC (Ju­ven­tude Es­colar Católica), o Ferreira não alinhava pelo Del­gado. Na “cate­quese” que ministrava aos mais novos, de­clarava que o Gene­ral Delgado era como os Fi­lipes de Espa­nha, Reis de Portugal durante sessenta anos de cativeiro: prome­tiam, o céu e a terra, mas nada de cumprirem as promessas feitas… Quanto a mim, já des­crente nos ensina­mentos e dogmas do catolicismo (não porque fosse um génio em questões metafísicas ou teológicas, mas, sim, por um bambúrrio fami­liar), todavia menos ginasti­cado inte­lectu­al­mente do que o meu amigo e muito menos per­suasivo, ia fa­zendo o que es­tava ao meu alcance, e era pouco: não seria tão caloroso nas prédi­cas, farto es­tava eu de sa­ber que ne­nhum de nós podia apre­sentar-se numa secção de voto e in­trodu­zir o bole­tim na ra­cha da urna… Mas o Fer­reira, já com o seu espírito de estra­tega a funcionar, insistia, dizendo que os fi­lhos transmi­tiam aos e pais e estes, se esti­vessem ins­critos nos cadernos elei­torais, pode­riam se­guir os seus con­selhos: votar contra os Filipes… O Viriato já lia e relia, nessa altura, Eça de Queirós, e sentava-se numa ban­queta de pedra apar­tada, imerso na leitura e comendo sandes em papo-se­cos, mandando bugiar a catequização po­lítica… Pouco tempo depois, pegaria a doença da leitura do Eça aos dois Ami­gos, que constituíam o triunvirato do Liceu de Ponta Delgada – a tróica ainda estava muito longe de vir go­vernar este País com um programa de desajustamento…
A grande reviravolta na vida interior do Medeiros Ferreira vi­ria a consumar-se no nosso sexto ano do Liceu. A aprendiza­gem da Filosofia ajudou o volta-face completo do seu espírito já mui esclarecido e combativo. As discussões intelectuais acaloradas logo principiaram, a JEC foi posta de lado, negada a crença em Deus, a política iniciou a sua ascensão ao ponto de ele re­alizar espécie de comícios no recato dos alpendres, nos inter­valos das aulas ou nos furos abertos por os professo­res fazerem gazeta, os colegas e outros alunos, em magote, a ouvirem-no, com uma atenção aguçada e um silêncio sigiloso, não porque en­tendessem o que estavam escutando, mas pela magnética fluência do verbo, a rítmica ginástica do raciocínio de uma notável agilidade, mesclado do seu humor sempre fino e ele­gante… O padre de Moral e Civilidade não deve ter gostado do que lhe chegara aos ouvidos: chamou-o ao gabi­nete e descon­gratulou-se, vivamente, com a mudança tão sú­bita do seu pupilo e aluno, membro da JEC de que o ecle­siástico era o mentor. Tenho a impressão de que chegou a falar com o Pai, mas, que se saiba, nem repreensão agravada houve… Tudo quanto fi­cou atrás lavrado mais não constituiu do que um tirocínio para o que viria acontecer dois ou três anos mais tarde, já aluno do Curso de Filosóficas da Facul­dade de Letras de Lis­boa desde 1960. Tornou-se um dirigente académico de relevo, Presidente da RIA (Reunião Inter-Asso­ciações), orador de grande mérito nas assembleias estudan­tis, aquando da eclo­são da Crise Académica de 1962. Não era qualquer jovem chegado dos Cafundós de Judas, que eram os Açores nesse tempo, que se salientava numa Academia bem fornecida de estudantes bem prepara­dos e com muito tra­quejo político e oratório, vide Jorge Sampaio, futuro Presi­dente da Re­pública, só para nomear um dos mais con­ceitua­dos, a quem Medeiros Ferreira sucedeu na Presidência da RIA. Repito: não era para qualquer… Expulso das Universi­dades Portuguesas, acabou por ir malhar com os costados à cadeia da PIDE, onde sofreu, durante três dias e três noites, a tortura do sono, mas não deu pio… Mais tarde, acabado o Curso de Oficiais Milici­anos, em Mafra, foi pro­movido a Aspi­rante a Oficial. Ainda foi passar a São Miguel as férias de mobilização para, depois, se­guir para a Guiné. Ao chegar a Lisboa, já Alferes, desertou para a Suíça, onde terminou o curso e foi professor na pró­pria Universi­dade onde se matri­culara. Regressou a Lisboa no período do 25 de Abril de 1974, iniciando a sua vida política, sendo, aos trinta e cinco anos de idade, Ministro dos Negócios Estrangei­ros do Pri­meiro Governo Constitucional. Foi ele que princi­piou a ne­go­ciar a adesão de Portugal à então CEE (Comuni­dade Eco­nó­mica Europeia). No dia seguinte ao da sua morte, um jornal escreveu, em primeira página, que tinha morrido o pai da nossa entrada na Comunidade Europeia, lugar-comum repe­tido até à saciedade, de que o meu Amigo talvez não gostasse.

Regressando ao Liceu. Uma das professoras que melhor com­preenderam e influenciaram Medeiros Ferreira terá sido a D. Alba Monteiro, docente de Filosofia (nesse tempo, no Liceu de Ponta Delgada, as senhoras, mesmo licenciadas, não eram chamadas Doutoras, só os homens, tal era a mentalidade e o machismo em vigor). Vinda do Continente, era jovem, jovial, de­sinibida, daí nunca ter cavado qualquer fosso entre pro­fes­sor e aluno, como acontecia com a maioria dos seus cole­gas, er­guidos em seus pináculos de requentada sabedoria, sempre de cara feita, distantes por precaução, não fosse al­gum aluno mais curioso e atrevido fazer-lhes alguma pergunta ou escla­recer uma dúvida cuja resposta não constava dos compên­dios de sentido único – a D. Alba Monteiro, como dizia, man­tinha longos diálo­gos com os alu­nos (as suas aulas eram conversas dialógicas), nos quais in­tervinha e desbancava o Me­deiros Fer­reira, o me­lhor aluno de Filosofia da turma. Lia muito, inte­ressava-se por Literatura, Política, Ci­nema (chegou a proferir conferências na Biblioteca do Liceu so­bre a sétima arte), tendo os dois amigos que com ele forma­vam o triunvi­rato, oferecido, a meias, no dia do seu 17º aniversário, em 1959, um livro de Georges Sadoul,História do Cinema Mun­dial. Toda a sua actividade intelectual não o impedia, po­rém, de gostar de futebol e de ler sobre este desporto (era um in­telectual desempoeirado), de que sempre foi um grande adepto. Do Benfica, mas sem facciosismo, só entrava no gozo com os outros dois Amigos, que pertenciam à família sportinguista!

Nas férias grandes (muito longas eram elas, cerca de três me­ses; hoje seria impossível interregno tamanho de costas di­reitas e livros semifechados, dormitando no ventre das pastas de couro. Esta aldeola tão globalizada, submergida na pressa e no infernal frenesim do dia-a-dia, não o permitia. Nas férias do Ve­rão do nosso sexto para o sétimo ano, livres de exa­mes em Junho /Julho (haveria no seguinte, como aconte­cera no anterior), já com a Universidade a acenar-nos da lonjura atlântica, fomos para as nossas freguesias, menos o Viriato, que vivia na Ribeira Grande, Vila Cidade, como era então de­signada, no lugar-comum das folhas jornalísticas do tempo (muitos anos mais tarde veio a alcançar o estatuto de civitas, mas logo passou a Cidade Vila…) – nesse intervalo feri­ado de 1959 e como as distâncias entre as três lo­cali­dades eram quase intransponíveis no complicado universo da Ilha, pas­sámos os três a cartear-nos praticamente todos os dias. Não eram bilhetes, mas longas missivas de três e mais pági­nas de papel de trinta e cinco linhas. Constituíam exercícios literá­rios, o Eça de Queirós a espreitar, a lente do lorgnon, fais­cante e irónica, por cima de cada linha escrita, cheirando ao seu suor… O Medeiros Ferreira metia, e muito bem, a sua colherada filosófica, afirmava que a morte não existia para os jovens como nós e que Deus era uma ficção inventada para manter o Povo dentro dos varais e os padres o poder mandar para o suplício eterno se não obedecessem aos grandes se­nhores feudalizantes… O Viriato lia na altura um livro de um autor inglês, ex-padre católico, O Padre, a Mulher e o Confes­sionário, do qual transcrevia passos nas suas car­tas. Além do Eça, lia o que lhe vinha à mão: Stefan Zweig, Jorge Amado, Gorki, Erich Maria Remarque, Hemingway… Descobriu, pra nosso espanto, qual tinha sido o verdadeiro crime do Padre Amaro: o ter mandado matar o filho pelas mãos de uma tece­deira de anjos, ama a quem o sacerdote foi entregar a cri­ança… Eu, mais inclinado para o romantismo, lia poesia, compunha versos suspirosos de pé quebrado e namo­rava, de janela, com a filha da vizinha do lado de cima… Uma dia, numa carta ende­reçada da Fajã de Cima para o Pico da Pe­dra, o Ferreira, en­tre muitos sacrilégios, escreveu este: “Nós, os ateus temos muitas responsabilidades na…” Fiquei exan­gue com o cho­que. A freguesia mudou de cor e eu fugi para o fim da quinta, com um peso no peito. Tudo, porém, passou e reveio ao nor­mal… A Abertura Solene das Aulas, no Liceu, calhava no primeiro de Outubro. Era uma espécie de missa enfadonha, só faltava o latinório: “Vão para Deus, para a Sua Misericór­dia, os nossos agradecimentos pelas graças e favo­res dispen­sados ao nosso labor durante o ano findo e para Ele vai tam­bém, na festa inaugural de um novo ano lectivo, a nossa prece pela continuação da Sua protecção ao trabalho que hoje começamos. Uma saudação especial me cumpre di­rigir ao novo Chefe da Nação, Senhor Almirante Américo To­más, recentemente escolhido, pelo consenso da maioria dos portu­gueses…” O Ferreira sussurrou ámen e eu, que não gostava de missas salazaristas, deixei-me, por fim, ficar ateu! Ainda ouvi, já sem ouvir, mais um passo da alocução reitoral: “O Estado Novo Corporativo tem-se empenhado na tarefa de “re­aportuguesar” Portugal, repondo nos seus devidos lugares os valores nacionais que, por virtude da acção deletéria exer­cida durante largos anos pelos tristemente célebres “partidos polí­ticos”, que se iam subvertendo por completo. À Mocidade Portuguesa compete auxiliar a acção do Estado neste ale­vantado propósito…” Continuou a lengalenga patriótica, mas nós os três já tínhamos saído de fininho do Ginásio. Fomos para um canto fumar um cigarro e até o Ferreira, que não fumava, pediu um cigarro, mas logo se engasgou e ia lan­çando o que comera e já tinha digerido…
Um dia, numa aula de Moral, o professor estava a escrever, no quadro, frases em Grego de grandes teólogos, que ajuda­vam, segundo a sua abalizada opinião, a provar a existência de Deus. O Medeiros Ferreira apro­veitava estas aulas monótonas para ler, meio às escondidas, Eça de Queirós, o livro em cima das pernas uni­das para não dar nas vistas e não ser ex­pulso da aula. Dava gosto escutar-lhe as gargalhadas que lhe saíam, frescas e francas, ao ler certos passos de qualquer livro que lia do genial es­critor. Não fazia parte do programa de Literatura. Na bem fornecida Biblioteca do Liceu, as estantes tinham portas de rede e eram fechadas a sete chaves. Só quem as podia abrir era a auxiliar da Biblioteca, a menina Espírito Santo, a Bibi, para os mais íntimos. Aos alunos do sexto e sétimo ano de Letras fechava os olhos e satisfazia-lhes o apetite de ler au­tores do índex liceal. O Viriato era muito seu amigo, bisbi­lhotavam ambos sobre as fraquezas de certos professores. Um dia afirmou-lhe ela, em voz baixa, que o Doutor Armando Côrtes-Rodrigues, amigo de Pessoa e um dos Poetas do Orfeu, se via e desejava para corrigir os versos de certos ilustres professores da casa que vinham mostrar-lhe as suas produ­ções poéticas para que ele as apreciasse. Dizia a Bibi que chegava a casa e vomitava, tal eram os engulhos estoma­cais… A imprensa local, porém, e após tais poetas darem a lume os seus livros, tecia grandes encómios – mais uma gló­ria poética para a Ilha do Arcanjo… Mas, e voltando à aula de Moral, uma colega que ficava na carteira ao lado da do Fer­reira bichanou-lhe que numa determinada palavra grega es­crita no quadro lhe faltava um espírito, logo o Medeiros Fer­reira, ainda enfronhado no livro de Eça, se levantou e disse ao professor exactamente o que a colega lhe tinha transmi­tido: “Senhor padre, naquela palavra falta um espírito”… Acto contínuo: “Senhor Ferreira, rua!”
Apresentou-me alguns livros, quer em Lisboa, quer em Ponta Delgada, quer na Povoação, Ilha de São Miguel. Em todas as apresentações demonstrou uma sensibilidade literária que eu desconhecia. Habituado a ler os seus livros de índole histó­rica e política, nunca pensei que tratava a prosa de ficção como o ensaio político e histórico. Pena foi que ele nunca ti­vesse escrito as suas intervenções. Levava consigo umas no­tas e a partir delas construía o seu discurso. Por vezes pro­metia-me que as ia passar ao papel, mas nunca tal aconte­ceu. Transcrevo um passo do meu agradecimento à apresen­tação de um livro meu em Lisboa: “Desde os bancos do Liceu que temos vindo a conjugar uma amizade constru­ída de inú­meras inter­mitências que a vida nos foi decretando, mas sempre pronta a ressur­gir, com a intensidade original, em ocorrências assinaladas, tanto para o bem como para o mal. Esta é uma delas. Uma das muitas que têm tido o con­curso do meu Amigo Medeiros Ferreira, que sempre teve o dom de espevitar o lume da palavra para com ela arquitectar um ra­ciocínio sólido e límpido e uma capacidade invejável de inter­pretar com sinceridade e sem lisonja os livros que tenho vindo a publicar. Foi ele quem há muito afirmou, por escrito, que havia sido Cristóvão de Aguiar o primeiro escritor ilhéu a dar dignidade literá­ria ao léxico micaelense.” No anfiteatro da Vila da Povoação, apresentou-me a Relação de Bordo. Após a apresentação, falou o então Presidente Governo Regional dos Açores, Carlos César. A seguir foi a minha vez de agradecer. Espraiei-me, em texto escrito, em considerações pouco católi­cas sobre a Ilha do meu tempo, da influência religiosa nega­tiva sobre o Povo, e muitas outras blasfémias verdadeiras… Ao concluir a leitura, o Ferreira e o Carlos César foram unâ­nimes em afirmar que o meu texto tinha sido de escacha pes­segueiro. O anfiteatro estava cheio. O Presidente da Câ­mara instituíra como princípio que cada pessoa do público assis­tente tinha direito a levar consigo, grátis, um ou mais li­vros para oferecer à família ou aos amigos que lá não tinham po­dido ir. Deste modo, enchia-se sempre o anfiteatro. A Câ­mara Municipal, que pagava os livros, achava que fazia um bom in­vesti­mento ao proceder desta forma original. No meio da as­sistên­cia encontravam-se três freiras. Acabada a sessão, as pessoas principiaram a descer pelos corredores do anfite­atro em di­recção à mesa, para que eu autografasse o livro. Ao ver apro­ximar-se as três irmãs com os respectivos livros na mão, deu-me um arrepio pela espinha acima… O que iria eu es­cre­ver-lhes no livro? Com as irmãzinhas cada vez mais perto da mesa, perguntei, aflito, ao Medeiros Ferreira: “Que achas que devo escrever?” Resposta pronta: “Ide e pregai a Boa-Nova…”
***

 

Vi-te pela última vez, meu querido Amigo, num dos programas televisivos do “Eixo do Mal”, transmitido em Fevereiro, se me não falha a memória. Foste, nesse Sábado, preencher a au­sência da Clara Ferreira Alves. Mostravas já fortes sinais do mal que te havia de levar de entre nós. Assisti a uma lição doutoral sobre a Europa, matéria em que eras Mestre. Doutoral no sentido da profundidade do conhecimento. As tuas palavras foram, como sempre, de uma nitidez mediúnica. Os outros co­mentadores residentes encheram o estúdio de um silêncio res­peitoso. Sabiam que estavam em presença de alguém não só exímio nas palavras, como igualmente na clareza de ideias, na destreza de raciocínio e na sabedoria. Até fizeste humor. Um mês e pouco antes da morte, que sabias te vinha buscar. Cerca de duas se­manas mais tarde, telefonei-te. Era o teu 72º ani­versário. Não respondeste. E foi então que entendi tudo! Não tive coragem de ir ver-te a Lisboa. Mas tive-a, vê lá tu a con­tradição, de ir velar-te no Palácio Galveias. Fraquezas huma­nas. Do triunvirato do nosso Liceu, só resto eu. Mas a tróica ainda continua e continuará… Até qualquer dia, Amigo.

 

Cristóvão de Aguiar
Lisboa, 20-23 de Março de 2014
Publicada por Luís Aguiar-Conraria à(s) 13:44:00 0 comentários Hiperligações para esta mensagem