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[Artigo publicado no Diário dos Açores de 02.06.2023]
Saúde Pública e Saúde do público, semana a semana (8): Salvar o Serviço de Saúde (público)
Os dados da semana: como salvar o SRS?
“Os britânicos têm mais orgulho no seu sistema de saúde do que na monarquia, mas quando o serviço nacional de saúde (NHS) inglês completar 75 anos em Julho, o ambiente não será de comemoração.” Este é o cerne de um artigo no Economist, que é o mote para uma breve análise ao Serviço Regional de Saúde (SRS) dos Açores.
Durante a pandemia, o povo aplaudia o NHS. Agora ataca-o. 2,5 milhões de britânicos estão sem trabalho, porque estão doentes. Os funcionários do NHS saem em massa. Os indicadores de saúde do Reino Unido mostram algumas das piores taxas de sobrevivência para o cancro. A lista de espera nos hospitais, na Inglaterra, ultrapassa os 7 milhões, levando muitos a esperar meses, anos, pelo alívio do seu sofrimento.
Combater as listas de espera deve ser prioritário, em qualquer sistema. Como se fez, por exemplo, no Hospital de Ponta Delgada, quando em 2021 e 2022 o número de crianças que aguardava – há mais de 1 ano – uma cirurgia de “otorrino” baixou 83%, ou quando as que aguardavam uma Cirurgia Pediátrica baixou 52%. Reduções notáveis, e que aliviaram – em muito – o sofrimento das nossas crianças. E dos seus pais.
Quando algo está mal, reformas ousadas parecem ser tentadoras. No Reino Unido há quem queira reformular o modelo de financiamento do NHS, passando de um sistema financiado pelos impostos para um sistema de seguro social, ao exemplo de França ou Alemanha.
A receita para salvar o Serviço de Saúde público requer radicalismo, mas simples: transformá-lo daquilo em que se tornou – um serviço de assistência à doença – para aquilo que o seu nome prometia – um serviço de saúde. Na prática, uma mudança no seu foco: passar dos hospitais para a comunidade, do tratamento para a prevenção, do “incentivo aos actos” para o “incentivo a melhores resultados”.
Veja-se o que acontece por cá: se uma determinada produção (consulta/ cirúrgica/ exames) for baixa, a lista de espera aumenta; se uma lista de espera aumenta procuram-se soluções extra para a reduzir. Como?
Pagando mais, para que haja mais produção, muitas vezes a quem em horário “normal” tem uma produção insuficiente face às necessidades.
Ou seja, em tese, pode haver “interesse” em que a lista cresça, pois isso permitirá incentivos financeiros para a sua redução… paradoxal, não é…?
Na Inglaterra o sector da saúde absorve a maior parte do orçamento: por cada libra que o Estado gasta (em serviços públicos), 38 pence vão para o NHS. Nos Açores calcula-se que andará pelos 40%. E isto tende a aumentar:
Nos próximos 25 anos o número de britânicos com 85 anos (ou mais) duplicará. Ademais, o NHS é o maior empregador individual da Europa; e aqui veja-se o paralelismo com os Hospitais e Centros de Saúde nos Açores, também eles dos maiores empregadores em cada ilha.
Afinal, onde é que o (nosso) dinheiro é gasto? A resposta, quer no NHS, quer no SRS, resume-se numa palavra: hospitais.
Os gastos com a saúde pública e a solidariedade social caíram, em termos reais, na última década. A parcela de gastos no NHS alocada aos cuidados primários (e comunitários) caiu, mesmo antes da pandemia; a parcela para os hospitais subiu para quase dois terços.
Isto não faz qualquer sentido! Um sistema centrado nos hospitais está projectado para tratar as pessoas, depois de elas ficarem doentes. “Isto equivale a comprar mais extintores de incêndio, e a desmontar os alarmes de fumo”, refere o Economist, numa imagem feliz.
A maioria dos gastos com saúde e solidariedade social vai para o tratamento de doenças crónicas, como a diabetes ou a hipertensão. Doenças que devem ser tratadas pelos próprios pacientes, nas suas casas e com o apoio da medicina geral, e outros especialistas, na comunidade.
Recentrar os cuidados de saúde, dos hospitais para as comunidades, significa focarmo-nos na prevenção: manter as pessoas saudáveis, pelo máximo tempo possível. O estado de saúde de um país, de uma Região, depende essencialmente dos factores socioeconómicos, da genética e do comportamento individual. Veja-se a obesidade: um paciente obeso custa ao NHS o dobro a tratar, do que um que não o é. Há que enfrentar o problema antes que o obeso apareça na cama de um hospital, por exemplo, fazendo uso eficaz dos novos medicamentos anti-obesidade.
As promessas dos políticos são em “número de novos hospitais”, ou “mais médicos”. Métricas baseadas em “actos” encorajam os hospitais a gastar milhões em tratamentos. Ora, o financiamento deveria antes centrar-se nos resultados em saúde.
Há poucos dias Sir Keir Starmer, líder do Partido Trabalhista, falou na necessidade de “mudar o foco, dos cuidados intensivos para os cuidados crónicos”. A pandemia covid-19 demonstrou a força da tecnologia para alcançar as pessoas mais rapidamente, desde as campanhas de vacinação direccionadas até às consultas online.
Urge uma mudança radical de mentalidade, começando pelos políticos. Profissionais de saúde na comunidade e bombas de insulina são menos atraentes, nas campanhas eleitorais, do que anunciar “cirurgiões cardíacos” ou “edifícios novos”.
Alguns políticos julgam-se “solucionadores de crises”, seja das urgências hospitalares, ou das reivindicações salariais das classes profissionais… Mas, a resolução destas crises não salvará nem o NHS, nem o SRS. Só trará uns “minutos de silêncio”.
Os serviços de saúde públicos podem ser salvos, mas apenas se quem os administra considerar que o seu trabalho é manter os cidadãos saudáveis, em casa, e não tratá-los em enfermarias. Apostar em salvar vidas, e não em salvar as suas carreiras políticas.
A Ciência da semana: não esquecer tudo aquilo que aprendemos nos últimos 3 anos.
Já todos ouviram falar de casos de COVID-19 antes da vacinação, em que as pessoas tiveram sintomas leves, sobretudo jovens. Porém, após a infecção, alguns desenvolveram miocardite – inflamação do músculo cardíaco. A maioria recuperou. Mas, muitos desenvolveram problemas cardíacos, após a infecção por COVID-19.
Desde o início da pandemia da COVID-19, as mortes por ataque cardíaco, em todos os grupos etários, tornaram-se mais frequentes nos EUA, de acordo com um estudo do Hospital Cedars Sinai, de Los Angeles.
O grupo etário mais atingido foi o entre os 25 e os 44 anos, com um aumento relativo de 29,9% nas mortes por ataque cardíaco, nos primeiros dois anos da pandemia (ou seja, o número de mortes por ataque cardíaco foi 30% maior do que o previsto). Os adultos entre os 45 e os 64 anos tiveram um aumento relativo de 19,6% nas mortes por ataque cardíaco, e os com 65 anos ou mais tiveram um aumento relativo de 13,7%.
Cerca de 4% das pessoas que tiveram COVID-19, estima-se, desenvolverá um problema cardíaco. Parece um número pequeno, mas realmente não o é, se pensarmos no número de pessoas que teve COVID-19. Além disso, o risco de desenvolver COVID longo, incluindo problemas cardíacos, aumenta a cada infecção por COVID-19. Há que continuar a estar atento.
A homenagem da semana: à Unidade de Saúde da Ilha do Corvo
A Unidade de Saúde da Ilha do Corvo vai disponibilizar contentores individuais a todos os diabéticos da Ilha do Corvo, para que neles possam depositar os resíduos criados pelo controlo e tratamento desta doença, que atinge cerca de 15% da população. Lancetas, tiras reactivas e agulhas usadas diariamente pelos utentes com Diabetes Mellitus, já que não acabarão assim no lixo doméstico. Fantástica medida.
Mário Freitas, médico consultor (graduado) em Saúde Pública, com a competência médica de Gestão de Unidades de Saúde
Em defesa do Serviço de Saúde público dos Açores
Saúde Pública nos tempos de pazadas de Epidemiologistas
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