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«Ver o embate do último Expresso da Meia Noite entre José Miguel Júdice e Mariana Mortágua foi revelador do ódio que a direita mais trauliteira (ou usando um termo que Júdice gosta, “taberneira”) tem pela deputada bloquista. Para expor esse ódio, Júdice fez aquilo que consegue fazer nos curtíssimos intervalos em que não se está a elogiar: pediu credenciais democráticas à sua oponente. Neste caso, recorrendo ao argumentum ad venezuelem, sinal de que se embatucou. Se querem conhecer as credenciais democráticas de José Miguel Júdice, aconselho a leitura deste trabalho académico sobre os militantes da direita neofascista na Universidade de Coimbra, ainda antes do 25 de abril. Lá encontrarão Júdice com grande destaque e persistência. Mas a ele ninguém dá lições de democracia. Nem de ética. Nem de nada.
Não é do advogado do regime, reformado dos bons velhos tempos em que trabalhava para Isabel dos Santos mas nada mais via a não ser inteligência e sentido estratégico, em busca da adrenalina perdida que quero falar. Há assuntos sérios e pessoas relevantes nesta história. O que levou ao azedar geral no Expresso da Meia Noite foi a conversa da deputada sobre José Maria Riccardi. O inconveniente de não ficarmos apenas concentrados no banqueiro que já caiu. Seria fundamental resumir tudo a uma questão criminal, para que tudo mude e as coisas fiquem na mesma.
A tese de que o homem que se sentava no meio do poder do Espírito Santo se manteve durante tanto tempo a leste da rede de interesses e corrupção é inverosímil. Mas, seja porque o Ministério Público optou por concentrar baterias em Ricardo Salgado e aqueles que colaboraram diretamente e de forma organizada na destruição do banco; seja porque não há nada de criminalmente censurável contra ele; seja porque ajudou no cerco a Salgado, ele está fora do processo. É inocente. Mas isso não o livra de julgamento profissional e político. Riccardi teve responsabilidades no grupo, incluindo na avaliação de risco, e por por incompetência ou falta de vontade os esquemas que não começaram apenas na fase final do banco passaram-lhe debaixo das nariz durante demasiado tempo. Não precisa de ter cometido qualquer crime para ser responsabilizado. Porque recebia para isso mesmo: assumir responsabilidades.
Segundo a acusação que Mariana Mortágua veio citar, Riccardi recebeu umas centenas de milhares de euros através da ESI BVI, um veículo financeiro numa off-shore, em remunerações à margem da contabilidade oficial constante nos relatórios do BES e do GES e sem conhecimento dos órgãos internos do BES. Riccaridi diz que pagou impostos destas remunerações e não cheguei a perceber se desmentiu o que veio na acusação. Seja como for, e é bom que fique claro, não estamos a falar do famoso “saco azul” nem alguma vez Mortágua o acusou disso. Limitou-se a citar a acusação do Ministério Público. Ou aquilo é mentira e não se percebe porque elogia o Ministério Público em vez de o corrigir, ou aquilo é verdade e não se percebe porque ataca Mariana Mortágua.
Só que Riccardi não se limitou a atacar a deputada. Depois de ter tentado associar a deputada ao Ricardo Salgado (é infinita a lata do senhor), disparou esta frase estarrecedora: “Essa senhora devia ter vergonha e devia é desaparecer de vez”. Vergonha, cada um exige a que quer, mesmo quem nunca mostrou ter muita. Mas a segunda parte da frase é reveladora de uma cultura. A cultura de clãs que se habituaram, durante décadas, a pôr e dispor de políticos. A pô-los na sua sombra ou a viver à sombra deles Uma tradição quem vem de muito longe, muito antes de Sócrates e da queda que a crise financeira e a zanga de comadres ditou.
É a arrogância social agressiva de quem sempre viu o país como domínio seu, onde deputados não devem ter a “ousadia” de “meter a foice em seara alheia”. Até um Espírito Santo menos dotado, como Riccardi, sente esta superioridade de berço. Não sei se Riccardi gostaria de Mariana Mortágua desaparecesse de vez através da censura ou de forma mais expedita. As duas foram usadas no regime de que a família Espírito Santo era intima (foi de todos os regimes, mas com aquele era amor sincero). Sei que o momento de irritação de Riccardi mostrou como foi moldado na mesma forma que Salgado. A mesma sensação de que todas as contrariedades podem ser removidas do caminho (Belmiro de Azevedo usou a expressão “eliminado” para falar de Marcelo Rebelo de Sousa, quando este dirigia o PSD). Salgado com elegância e luvas, Riccardi com boçalidade. Claro que prefiro a segunda á primeira: é mais visível, menos inteligente e por isso menos perigosa. Mas está lá tudo.»
[Daniel Oliveira, “Expresso”, 20/07]
