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Correio dos Açores de hoje.
Em tempos, escrevi uma crónica intitulada “É preciso uma aldeia para educar uma criança”. Este provérbio de origem africana, e que foi usado por Hillary Clinton como título para um livro juvenil que escreveu sobre educação, poderia também intitular um livro que escrevi, publicado em 2018, dedicado ao povo da minha terra, o Pico da Pedra, centro do meu mundo e da minha identidade.
Definimos quem somos pelo sentido de pertença a um lugar, a um grupo, a uma família, a uma sociedade. A proverbial frase é uma verdade comprovada todos os dias na minha freguesia. Dou como exemplo os dois irmãos incapacitados, que todos conhecem como “camanos”, que, quando o último dos progenitores faleceu, ficaram ao cuidado da comunidade, considerando-se que a sua institucionalização seria prejudicial.
Vem isto a propósito de andar a ler com entusiasmo o livro “A Era do Nós: Propostas para uma Democracia do Bem-comum”, da autoria do economista João Ferro Rodrigues, publicado em 2021, pela Editora Objetiva.
Ainda não avancei muito na leitura e já me suscitou uma série de reflexões. É daqueles livros que apetece sublinhar do início ao fim.
Numa linguagem muito clara e corrente, o autor faz uma análise da sociedade atual muito interessante, recorrendo a domínios fora da sua zona de conforto, como a filosofia, a sociologia ou até a biologia. Muito sucintamente, do que li até agora, concluí que, partindo da teoria da evolução por seleção natural de Darwin e da teoria de Richard Dawkins, anos mais tarde, na sua obra marcante “O Gene Egoísta”, popularmente se convencionou que o ser humano nasce tendencialmente egoísta, dado que a sua sobrevivência é o valor maior que importa. Dawkins, no fundo, veio validar o individualismo e a nossa natureza competitiva como algo intrínseco à nossa espécie. No entanto, surge a dúvida: onde cabe o altruísmo na teoria evolucionista? O próprio Darwin debruçou-se sobre a questão, observando espécies no reino animal, cuja sobrevivência dependia do grupo. Da mesma forma, o Homem não vive isoladamente e precisa da cooperação da sua comunidade. Daí nasce a teoria da seleção por parentesco: todos os seres têm um incentivo de sobrevivência quando partilham genes. Quanto mais próximos geneticamente (pais e filhos, irmãos, etc.), mais são capazes de dar a vida pelo outro. Esta teoria é hoje universalmente aceite, embora se coloque outra interrogação: como explicar o
altruísmo fora do contexto familiar? Surge então outra teoria como resposta. O biólogo evolucionista contemporâneo Edward O. Wilson propõe o conceito da seleção multinível, que preconiza um nível de seleção superior, para além da genética, justificando o comportamento de indivíduos que beneficiam outros indivíduos, mesmo em prejuízo de si próprios, porque é vantajoso para o grupo. Se a luta pela sobrevivência for dentro de um grupo, dominará a competição entre os indivíduos; na disputa entre grupos, então vai prevalecer a cooperação entre os membros do mesmo grupo.
E aqui reside o ponto essencial de chegada. Depois de explicar como foram descartadas a “inteligência bruta” e a “força” como hipóteses de resposta à supremacia da espécie humana sobre as outras espécies do planeta, o autor adota a visão, cada vez mais suportada pela ciência, de que a nossa sobrevivência se deve à cooperação, à comunicação, à nossa capacidade de nos relacionarmos uns com os outros, pelo que o nível cognitivo de um ser humano, ao fim dos primeiros anos de vida, já é superior ao de qualquer outra espécie.
Portanto, evoluímos, enquanto espécie, não porque competimos, mas, pelo contrário, porque cooperamos.
Percebe-se então a razão pela qual se aceitou durante muito tempo que o mérito se media pelo sucesso individual, pelo triunfo do eu, pela sua capacidade competitiva, numa visão egoísta do ser humano. Esta visão tem impacto nas políticas económicas, sociais e culturais do nosso tempo, explicando, em grande parte, a era do individualismo e a tendência para a prevalência de direitos individuais sobre os deveres coletivos.
Como referi, ainda estou a ler a obra, pelo que este é apenas um resumo da sua introdução. O objetivo do autor de “A Era do Nós” – inevitavelmente nos remete para um diálogo com o título “A Era do Vazio” de Gilles Lepovetski – é apresentar uma alternativa, já que acabamos por perder de vista a noção do bem comum e o conceito de comunidade. As suas propostas são muito concretas para que se recuperar essas noções e transformar a sociedade numa verdadeira comunidade, altruísta, justa e feliz.
Está provado que, nos países com maior nível de confiança entre os seus cidadãos, como o Canadá ou os países do norte da Europa, são os mais prósperos.
Para reforçar, pois, a ideia de comunidade, o autor propõe maior participação cívica, associativismo local, criação de espaços públicos, criar bairros, espaços de convívio, mais bibliotecas, escolas dinâmicas que estimulem a criatividade, a socialização dos jovens, que sejam polos dinamizadores das comunidades. Propõe ainda a alteração de currículos, com desafios orientados para o bem coletivo, até um serviço nacional obrigatório, em que os jovens seriam obrigados a prestar serviço à comunidade durante um certo tempo. Enfim, são apenas algumas propostas que tresli mais adiante, entre muitas outras que sugere em várias áreas, que reforçariam a democracia e beneficiariam de igual forma os membros da comunidade, destruindo barreiras sociais.
A visão é, poder-se-á alegar, utópica, mas não é a utopia o princípio de tudo? Além do mais, João Ferro Rodrigues, na partilha das suas propostas concretas, envolve o leitor na certeza de que é possível construir uma sociedade melhor, devolve-nos a esperança de que é possível reeducarmo-nos numa cultura de proximidade, altruísta e solidária.
Não foi à toa que intitulei o presente artigo com o provérbio, nascido, provavelmente, da sabedoria de antigos anciãos africanos.
É necessário, efetivamente, uma aldeia, no nosso tempo, uma aldeia global, para educar uma criança. Nos exemplos que damos, nas ações que empreendemos, nos caminhos que abrimos, no mundo que construímos, noticiado e despudoradamente divulgado nos meios de comunicação social todos os dias, nas palavras que deixamos nas redes sociais com impacto enorme nos nossos jovens, nos ídolos que lhes oferecemos, nos modelos de vida que lhes proporcionamos, na noção de mérito que lhes incutimos.
O mérito instituído como talento para produzir capital tende a ser egoísta, produz desigualdade social e preconceito, sendo, nesta visão, os pouco privilegiados apontados como culpados da sua pobreza. O modelo meritocrático só será honesto quando todos puderem começar do mesmo ponto de partida, quando for assente na igualdade de oportunidades, no esforço demonstrado e reconhecido pela sua contribuição para o bem comum. É a noção atual de mérito que também precisamos de desconstruir nas nossas escolas.
Há, efetivamente, mais mérito de educação e de humanidade no exemplo que dei dos cuidadores dos irmãos deficientes da minha freguesia do que num banqueiro, formado nas universidades mais reputadas do mundo, bem-sucedido, porque supostamente produz riqueza, porém à custa da exploração dos outros.
Há, pois, muito mérito na comunidade onde cresci e fui educada. É por isso que a apresento sempre como exemplo de participação cívica, de união em torno do bem-comum e de espírito comunitário. A obra de João Ferro Rodrigues valida o sentimento que tenho desde sempre. É este exacerbado sentido de comunidade das gentes da minha terra que sempre fez toda a diferença ao longo da sua história. É o segredo da sua prosperidade. Daí o meu reconhecimento em forma de livro.
É um exemplo de cooperação, um modelo de educação cívica, que gostaria de ver replicado universalmente, pois é assim que o mundo sobrevive: no entendimento das pequenas geografias.
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- Leonor Sampaio SilvaMuito bem, Paula! Este princípio, segundo o qual a nossa sobrevivência depende da cooperação, está também no centro de toda a obra de Yuval Noah Harari, o filósofo israelita de que tanto se fala. Deve conhecer. Ele tem vários livros imperdíveis e imensas entrevistas disponíveis na internet sobre esse tema, a educação, a inteligência artificial, etc.
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- ActivePaula CabralLeonor Sampaio Silva, muito obrigada! Não conheço, mas vou procurar. É um assunto que me interessa muito. Obrigada! Grande beijinho para si.
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Leonor Sampaio SilvaPaula Cabral, tem de ler. Vai gostar de certeza. Eu comprei os livros dele cá. É traduzido imediatamente.- Like
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ActivePaula CabralLeonor Sampaio Silva, estava agora mesmo a procurar informações no google. De facto, conheço um dos seus títulos, “Uma breve história da humanidade”, mas nunca me suscitou curiosidade, talvez por causa do “breve”. Já fica na lista! Obrigada!
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Leonor Sampaio SilvaPaula Cabral, penso que SAPIENS e HOMO DEUS são os seus livros mais conhecidos, embora não os mais recentes.- Like
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