RABO DE PEIXE NÃO QUER ESTAR NA NETFLIX

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A perspectiva de uma série inspirada no carregamento de cocaína que em 2001 deu à costa em São Miguel não caiu bem numa freguesia saturada de ser notícia pelos piores motivos
Rabo de Peixe, Açores. Carla Freitas circula numa das ruas estreitas de casas coloridas que desembocam no mar. Mora ali, sempre morou. Pergunta-se-lhe sobre a nova série da Netflix, que está a ser gravada a poucos metros, e a resposta surge imediata, como se estivesse pronta a ser debitada.
“Não oiço ninguém a falar tanto de uma freguesia como [se fala] de Rabo de Peixe. Deve ser a terra mais falada de Portugal e agora até vai ser falada no mundo todo”, atira, num tom proclamatório, que chama a atenção de quem ali passa. “Rabo de Peixe tem muita coisa para falar bem, mas só falam em droga, droga, droga.”
As declarações de Carla motivam um intenso debate na rua, ou não estivéssemos numa terra onde a vida parece decorrer mais fora de portas do que dentro. Toda a gente pretende falar da série Rabo de Peixe, o anunciado “thriller com toques de humor sarcástico”, “inspirado livremente em factos reais”, que a Netflix ali está a rodar — e que constituirá, depois de Glória, o segundo original português da plataforma líder do mercado do streaming. Os “factos reais” remontam a 2001, quando mais de meia tonelada de cocaína deu à costa em São Miguel.
“Não faltam sítios com problemas de droga mesmo aqui na ilha. Parece que só existe Rabo de Peixe. Tudo o que é de mal é para aqui. É mais fácil falar de Rabo de Peixe”, intromete-se a vizinha Francisca Cabral, quando se apercebe do assunto da conversa. Mulher de pescador, teme que a série aumente o estigma em torno da freguesia. “A comunidade piscatória não tem culpa do que se passou. Somos pessoas sérias.”
As opiniões cruzam-se, vindas de vários pontos da rua. No meio da vozearia, os argumentos repetem-se. “Sabe o que é que a minha filha de nove anos me perguntou quando eles começaram a gravar para aí?”, pergunta Luciana Penacho do alto de uma janela. — O que é a cocaína, mãe?’, foi isso que a minha filha me perguntou.”
A revelação indigna Carla Freitas, uma das locais que levaram os filhos a tirarem fotografias com os actores da produção — que conta com Helena Caldeira, André Leitão, Kelly Bailei, Maria João Bastos, Pepê Rapazote e Albano Jerónimo. “Eles não explicaram que era uma série sobre droga. Não disseram. Só quando percebemos o assunto é que nos revoltámos contra eles.” Agora a população sente-se “traída”.
“É uma série feita com episódios que são mentiras!”, insiste Carla, corroborada pelos presentes, antes de encerrar a conversa. “Eles querem enriquecer à nossa custa, à custa das fraquezas das pessoas.”
Entre a realidade e a ficção
Carla Freitas ficou a conhecer os pormenores da série quando o guião caiu nas redes sociais e a população se insurgiu contra um conjunto de boatos sobre aquele tempo que o enredo de Rabo de Peixe promete explorar. Mulheres a panarem peixe com cocaína, idosos a esconderem droga a pedido dos traficantes em troca de dinheiro para o almoço, rapazes a marcarem as linhas do campo de futebol com a substância, pescadores a tornarem-se criminosos, gente a preparar o material em linhas de montagem.
Pelas ruas da freguesia, uma das maiores dos Açores, com cerca de dez mil habitantes (mais do que a população de cinco das ilhas do arquipélago), condena-se a amplificação destas histórias, que os locais dizem ter sido repetidas exaustivamente por vários meios de comunicação até se confundirem com a realidade.
Mas, entre conversas e à boleia da vontade de ajudar típica dos rabo-peixenses, o PÚBLICO encontrou um homem (não quis ser identificado) que se lembra de facto de ter utilizado cocaína para marcar as linhas de um campo de futebol. A história é inusitada, mas “não tem o drama” que o tempo lhe deu, garante o protagonista, então uma criança.
Tratava-se de um terreiro perto do porto (que já não existe) e que servia de palco às brincadeiras dos jovens. Certo dia, improvisaram as linhas do jogo com um material branco que encontraram nas redondezas e que julgavam ser cal. Ao que parece, a cocaína não cumpriu o propósito e poucas horas depois o campo já não existia.
São lembranças de outros tempos que a população não deseja guardar para o futuro. No centro da vila, a série da Netflix marca as conversas: as mulheres, sentadas à soleira de casa ou a carregar sacos de compras, queixam-se de a freguesia só ser notícia pelos maus motivos; os homens, a preparar a faina ou nos cafés a jogar às cartas, puxam pela honra, que não se coaduna com tráficos de substância alguma.
Toda a gente parece conhecer a narrativa, e as críticas são generalizadas. Não sugerem o cancelamento da série, mas dizem não querer perpetuar o estigma que a terra ganhou com o tempo, devido à exploração mediática dos flagelos sociais ali enraizados. Um sentimento que, aliás, já vinha a crescer nos últimos tempos: a produção da Netflix foi só a gota de água.
Uma situação “complexa”
Mas, como em tudo, há excepções. Junto às arrecadações dos pescadores, as conhecidas “barracas”, Marco Mota não tem pejo em passear com um blusão da série, mesmo reconhecendo que “está em minoria”. “Eu sou a favor, podem dizer o que quiserem”, começa por afirmar, apontando para a camisa onde se lê “Rabo de Peixe Film Crew”.
“Fazem-se séries em todo o mundo, porque é que não se pode fazer em Rabo de Peixe?”, insiste o mergulhador de profissão, lembrando que os acontecimentos relatados “aconteceram há muitos anos”, mas compreendendo o sentimento geral de uma população “muito defensora da sua terra” e que “já passou por muita coisa”.
Tudo pesado, Marco acredita ainda assim que a produção pode ter “mais prós do que contras”, porque será uma “grande montra” para São Miguel. “Vai mostrar muita paisagem bonita em toda a ilha. Não vai só falar em porcaria. Mas é verdade que isso [o desembarque da cocaína] aconteceu na vida real.”
Rui Faria, 42 anos, lembra-se bem de quando os pacotes de cocaína começaram a dar à costa em São Miguel, depois de o veleiro Sun Kiss 47, do italiano Antonino Quinci, ter sido destruído pelo mau tempo, que lhe interrompeu a viagem entre o Golfo de Cariaco e as Baleares.
Três semanas depois, contavam-se 20 mortes e dezenas de internamentos por intoxicação.
“Não se trata de um documentário. É uma obra a partir de factos verídicos. E seja como for eu vivi esse dia-a-dia há 20 anos. Sei o que se passou. A realidade foi bem mais dramática do que aquilo que o guião transmite”, defende o rabo-peixense, que integra a equipa da Câmara da Ribeira Grande responsável pelo apoio à produção.
Rui Faria é um filho da terra: foi fundador do Clube de Teatro, do Clube Naval e da Associação de Jovens de Rabo de Peixe, entidades às quais ainda mantém ligação. Formado em História de Arte, reconhece o “amor dos locais” por Rabo de Peixe, mas considera que criticar a série por promover o estigma da freguesia é apontar ao alvo errado. “Quem se deve preocupar com o estigma são os politicos”, diz, que “não fizeram o que deviam ter feito” para combater os problemas da vila. “Nós já não vivemos no pré-1974.
Vivemos em liberdade. Mal estaríamos, se em 2022 tivéssemos de censurar alguém porque fala mal da minha terra.”
O debate volta-se para as fronteiras da liberdade criativa e do direito à crítica, mas importa perceber o contexto, realça Paulo César Andrade, rabo-peixense orgulhoso, gestor de profissão. “É uma população que já sofreu muito. Rabo de Peixe não precisa de ser mais estigmatizado do que já é”, diz, lembrando que a marginalização da freguesia voltou a aumentar devido às cercas sanitárias que a isolaram dez dias em Dezembro de 2020 e por mais três meses no início de 2021.
O jovem de 32 anos, músico de paixão que integrou a filarmónica da terra, hesita em alinhar com uma das partes e faz questão de destacar a presença de açorianos na equipa de produção, a começar por Augusto Fraga (que não quis falar com o PÚBLICO), um dos realizadores, com Patrícia Sequeira. Considera que esse factor pode fazer a diferença, quando está em causa “uma realidade complexa”, um “tema sensível”: “É um assunto que não foi ultrapassado. Foi apenas há 20 anos. Foi uma altura complicada. Destruiu famílias.”
Agora, é “esperar para ver”, acautela Paulo César, deixando uma sugestão: “Uma solução talvez fosse apresentar a série à população e começar a promover um contacto mais próximo com as pessoas.” De Rabo de Peixe, com amor — uma terra que não cabe num preconceito.
(Rui Pedro Paiva: texto – Rui Soares: fotografia – Público de 19.06.2022)
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  • Bruno Oliveira

    Nem com 10 temporadas conseguiam espelhar a realidade do sítio.