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Gosto quando conheço as pessoas só pela voz, sem as ver (por exemplo, os locutores de rádio, ou quem conversa atrás de mim no autocarro). Quando isso acontece, nós idealizamos as feições da pessoa, a maneira como será a fisionomia de quem tem esta ou aquela voz, esta ou aquela maneira de se exprimir. Imaginar é das coisas mais belas que há, porque construímos uma aparência que não existe na realidade. Depois, quando vemos a pessoa de quem só conhecíamos a voz, ou se chegamos a vê-la, reparamos que é totalmente diferente da nossa representação, e aí o edifício da nossa ideia desaparece num ápice para dar lugar à realidade. Apanha-se cada surpresa! Conheço o caso de uma senhora que trabalha numa repartição pública e lida com os utentes pelo telefone. Um destes utentes ficou de tal maneira apaixonado pela voz dela, porque é realmente líquida, cristalina, feminil e muito bonita, além de muito simpática, que passou a ligar mais vezes só para ouvir a voz dela; até que um dia, já sem resistir, disse que queria encontrar-se presencialmente com a senhora, porque gostava dela. A senhora, entristecida, viu-se obrigada a recusar, pois já sabia que a desilusão dele seria enorme: é fisicamente defeituosa. A desilusão seria dela também. Assim, este senhor pode continuar a viver o seu idílio, o sonho de imaginar uma deusa da perfeição com quem pode falar, mas sempre à distância, sempre sem chegar a vê-la, porque ela mora no Olimpo, é inacessível, então continua a enriquecer a sua imaginação e até a sua paixão platónica. Como idealizarão os cegos a realidade? Como imaginará um cego de nascença o que é este mundo? Talvez não suponha que há coisas feias, ou lixo, ou escuridão, ou cenhos carregados, ou atentados à paisagem. Talvez a paisagem deles seja povoada de beleza, de uma estranha luz que tudo ilumina num mundo perfeito. Ou então, se ouve um ruído áspero e feio, imagina uma figura grotesca que não tem existência real, uma monstruosidade mitológica, algo que para nós seria uma extraordinária aberração.
Ontem fui ouvindo uma mulher no autocarro que estava sentada atrás de mim. Eu não podia vê-la. Tinha uma voz muito aguda, esganiçada, de cana rachada, então eu ideei uma determinada figura, algo parecido com uma górgona. Quando me levantei para sair e a vi, abriu-se-me a cortina da realidade. Era uma mulher bonita. É interessante como os nossos sentidos podem ser conflituosos entre si.
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A voz é um poderoso elemento de definição.
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