do genocídio linguístico à literatura de daniel de sá

CHRYS-Daniel-Sá(NXPowerLite)

Do genocídio linguístico à literatura açoriana de Daniel de Sá

Chrys Chrystello

Resumo:

O número de línguas está a diminuir drasticamente. Trata-se de genocídio linguístico: as línguas são sistematicamente abatidas; o Ocidente tem silenciado centenas de línguas. Contudo, a tradição oral preserva formas verbais e não-verbais.

Embora tenham caraterísticas únicas, os dialetos dos arquipélagos atlânticos dos Açores e Madeira podem agrupar-se nos dialetos meridionais.

Recentemente autor teve de aprender as idiossincrasias micaelenses e do triângulo quando traduziu obras de Daniel de Sá, Manuel Serpa e Vítor Rui Dores. As ilhas ficam desvendadas como mito paradisíaco recuando até à infância desses escritores, atendendo ao facto de as ilhas reais já se abrirem ao peso do presente.

Em suma, as línguas têm de ser tratadas e estimadas. Elas não dividem países, a intolerância sim.

The number of languages is dramatically diminishing. It is a real linguistic genocide: languages are systematically destroyed. The Western world has silenced hundreds of idioms. However, oral tradition has preserved verbal and non-verbal forms.

Albeit with unique characteristics the Atlantic archipelagos of Madeira and Azores have dialects which may be grouped together with southern dialects of Portugal. Recently, the author was forced to learn the idiosyncrasies of the dialects of São Miguel island and the isles of the Triangle when translating works from Daniel de Sá, Manuel Serpa and Vítor Rui Dores. The islands are unveiled as a paradisiacal myth returning back to the childhood of those writers, once the real islands open up under the weight of contemporary eras. In brief, languages have to be taken care of and attended to. They do not divide countries, intolerance does.

Palavras-chave:

Genocídio linguístico, literatura açoriana, literatura portuguesa, tradução, Lusofonia.

Keywords:

Linguistic genocide, Azorean literature, Portuguese literature, translation, Lusophone matters

  1. Genocídio linguístico

A maioria das línguas em risco de extinção não consta de dicionários ou de gramáticas. Em África existem quase 2400 línguas (35%), na Ásia 2000, Australásia (Oceânia 1200), Américas (1000) e Europa (200). Ape­nas 15 países têm só uma língua (Bielorrússia, Bósnia-Herzegovina, Cuba, Coreia do Norte e Turquemenistão):

Indonésia694 Línguas (9,5% do total),
PNG (Papua Nova-Guiné)673
Nigéria455
Índia337
Camarões247
Austrália226
Rep. Dem. Do Congo206
México188
China186
EUA165
Brasil150
Vanuatu104
Rússia90
Angola37
Moçambique35
Itália30
Turquia30
França27
Alemanha22
Guiné-Bissau15
Espanha13
S. Tomé e Príncipe4
Macau3
Cabo Verde2
Timor-Leste (talvez 36)Não consta desta lista

Os autores Nettle e Romaine afirmam que “metade das línguas faladas em todo o mundo pode desaparecer neste século.” Para tornar mais explícito o elo entre a sobrevivência linguística e os assuntos ambientais, estes autores arguem “A extinção linguística faz parte do colapso quase total dos ecossistemas mundiais.”[1]

As batalhas para preservar os preciosos recursos ambientais – tais como as florestas tropicais – não podem nem devem separadas da luta para manter a diversidade cultural, e as causas da morte das línguas que à semelhança da destruição ecológica assenta na interligação entre a ecologia e a política. Existe um desconhecimento profundo sobre as línguas – desde o seu número e tamanho, aos seus nomes e locais onde são faladas. Metade das línguas mundiais desaparecerá até ao fim deste século, e entre 80 a 90 por cento[2] desaparecerá nos próximos duzentos anos. Em números con­cretos, em cada quinzena, morre uma língua.

Os antropólogos lamentam o massacre das línguas: para eles, cada língua e como uma catedral imponente, um objeto de beleza e o produto de um enorme esforço criativo, cheio de ricas tapeça­rias do conhecimento. Não permitiríamos que a Capela Sistina ou que a Mona Lisa desaparecessem sem guardar todos os traços e registo dessas obras-primas, e o mesmo se deve aplicar às línguas. Na Austrália os colonizadores europeus no século XX tentaram “civilizar” os aborígenes dando-lhes valores e padrões ocidentais, escolas e vestuário, misturados com Cristianismo e Inglês. Isto foi ainda mais notório quando raptaram literalmente uma em cada dez crianças aborígenes para as for­çarem a assimilar, pela força, os valores da sociedade branca[3].

De igual modo, nos EUA, os governos obliteraram da face da terra tribos de Índios e forçaram as crianças nativas americanas a frequentarem escolas nas quais era proibido o uso de qualquer língua que não a inglesa. A situação reverteu nas últimas décadas em ambos os países. Culturalmente, a Austrália foi colonizada com gente vinda de Inglaterra e de mais 26 países[4]. Quando os primeiros colonos arribaram em 1788 havia 250 línguas aborígenes incorporando cerca de 600 dialetos abo­rígenes, dos quais sobrevivem, hoje, cerca de 250. Tinham vocabulários complexos descrevendo os intrincados meandros das suas sociedades. Algumas delas tinham mais de dez mil étimos, com ter­minologias específicas para as cerimónias de iniciação ou para aqueles com quem o contato devia ser evitado. Alguns casais falavam mais do que um idioma e as pessoas identificavam-se quer pela geografia como pelas línguas.

A tradição oral preservou formas verbais e não-verbais, incluindo danças, canções e pintura. Cada grupo linguístico era uma nação com fronteiras, cultura e regras grupais. Atualmente cerca de 10% da população aborígene australiana fala um dos remanescentes 250 dialetos tribais. Destes, cerca de 160 já desapareceram ou são falados apenas pelos anciãos. Dos restantes 90 dialetos ape­nas vinte (20) têm uso corrente diário, por novos e velhos, sendo transmitidos para a próxima gera­ção.[5] De todos os que sobrevivem, metade deles tem apenas entre 10-100 pessoas capazes de os articula­rem.[6]

Mas o campeão da extinção de línguas nativas é o Brasil, segundo o jornal O Liberal[7] de Belém. Das 1.100 línguas indígenas, apenas 180 sobrevivem após cinco séculos, sendo mais de 80% faladas por índios. Em cinco séculos de ocupação portuguesa, o Brasil perdeu a maior parte das línguas in­dígenas. O processo de extinção continua.

O ano de 2008 foi definido como o Ano Internacional dos Idiomas pela ONU, mas esta data passa despercebida porque a extinção das línguas não se sente da mesma forma que uma inflação ou uma depressão económica. O desafio é tentar retardar ao máximo o desaparecimento das línguas em risco com um pequeno número de falantes que não a conseguem transmitir. A longo prazo a tendên­cia é a extinção, mas convém lembrar que não só as línguas morrem, com elas perde-se um conjunto de hábitos culturais, ancestrais conhecimentos de gerações. Com a sua morte esse conhecimento também fica inacessível. A língua é parte integrante da cultura. Este aspeto cultural é frequentemen­te negligenciado, dado ter-se em conta apenas a função da comunicação. É através da linguagem que se acede à cultura de um povo, ao seu modo de pensar e de vida, às suas tradições, ao seu saber.

O português beneficiou da globalização. Na internet, o Inglês representava 75% em 1998 e 45% do total em 2007. O português era 0,82% em 1998 e estava em sexto lugar em 2007 com 1,39% de pois de ter atingido 2,25% em 2001. O espanhol com 2,5% em 98, atingiu 5,5 em 2001 e atualmen­te tem 3,8%. O acordo ortográfico tem a intenção política manifesta de incrementar o “valor de merca­do” do português.

David Crystal chama netspeak[8], à “língua da rede”. Segundo Crystal

O crescimento das grandes línguas do mundo funciona como um trator, esmagando os idio­mas que se põem no caminho. Isso não é um fenómeno restrito a duas ou três línguas. Não é apenas o inglês que ameaça línguas nativas na Austrália, ou o português que põe em perigo idiomas indígenas no norte do Brasil. O chinês, o russo, o hindi, o suahili – todas as línguas maioritárias ameaçam idiomas de comunidades pequenas. O futuro dessas línguas minoritárias está vinculado a políticas regionais. Nos lugares onde sobrevivem, há uma série de práticas políticas e económicas que valorizam a diversida­de. A globalização e a revolução tecnológica da internet originam um “novo mundo linguísti­co”. Entre os seus fenómenos estão as subversões da ortografia presentes nos blogues e nas trocas de correio eletrónico e o aumento no ritmo da extinção de idio­mas. Estima-se que em cada quinzena desapareça um. Cresce a consciência de que as línguas bem faladas, protegidas por normas cultas, são ferramentas da cultura e também armas da política, além de serem riquezas económicas. A reforma do português ora em curso vai-se defrontar com um desafio inédito. Outras mudanças foram feitas em situa­ções em que era bem menos intenso o ritmo de entrada de palavras e conceitos na corren­te da vida quotidiana.[9]

Em correspondência com o autor[10] David Crystal afirmava-nos há alguns anos

Espero que o desenvolvimento da língua portuguesa faça parte duma ética multilín­gue nos países em que é falado a fim de que as línguas indígenas sejam respeitadas e apoiadas, o que no caso do Brasil é crítico dado o estado das línguas índias nativas.

  1. Da literatura açoriana (traduzida) a Daniel de Sá

Deixando de lado estas classificações o que nos interessa aqui é lembrar que “o debate académi­co em torno da expressão «literatura açoriana» é antigo – e chegou a contaminar ao longo dos anos 80 os próprios autores, quando estes se reuniam em encontros, congressos e simpósios construindo lentamente a intensa rede de amizades, afinidades intelectuais e intertextualidades que hoje marca o grupo. Onésimo escreveu dois livros e coordenou outro em torno do assunto, a saber: A Questão da Literatura Açoriana (1983), Da Literatura Açoriana – Subsídios para um Balanço (1986) e Açores, Açorianos, Açorianidade (1989). Nesses anos, falava-se em artesanato açoriano, folclore açoriano, até cultura açoriana – mas nada causava tantos embaraços como falar em literatura açoriana[11].

O problema colocou-se primeiro por razões políticas. Em 1975, três anos antes de morrer, Vitori­no Nemésio deixara-se utilizar pela Frente de Libertação dos Açores (FLA), movimento independentis­ta hoje formalmente extinto, como candidato a Presidente da futura República – e, ao longo dos anos seguintes, e contra a vontade da maioria dos autores, os separatistas que ainda resta­vam no arquipélago insistiram em usar a literatura das ilhas como um dos sinais da identidade nacio­nal destas.

Depois, vieram modas e tendências. Hoje, é questão arrumada para a maioria dos autores. Cristó­vão de Aguiar contesta o uso da expressão, outros agarram-se a ela com ambas as mãos, um terceiro grupo olha-a com bonomia e cita Wittgenstein para explicar que se trata sobretudo de uma expres­são útil – já não é uma questão central, no fundo. Se há literatura cabo-verdiana ou literatura são-tomense, contestar a existência de uma literatura açoriana é sinal de um «um restinho de Inquisi­ção», diz Onésimo.

«É, pelo menos, um ramo único no contexto da literatura portuguesa», diz Eduardo Bettencourt Pinto, 51 anos, um angolano que se tornou «escritor açoriano» por escolha própria e que já publicou no Campo das Letras o seu mais recente romance, A Casa das Rugas (2004). Feitas as contas, o que prevalece é a opinião de Pedro da Silveira, poeta da Ilha das Flores (1922-2003) e autor, entre ou­tros, de A Ilha e o Mundo (1953): «A literatura açoriana não precisa de que se aduzam argumentos a favor da sua existência. Apenas precisa, o que é diferente, de sair do gueto que lhe tem sido a sina», escreveu na entrada «Açores» do Grande Dicionário de Literatura Portuguesa e Teoria Literá­ria, coordenado em 1977 por João José Cochofel para a Iniciativas Editoriais. A verdade é que, lentamente, os escritores foram encontrando o seu espaço.

A Universidade de Brown tem há anos uma cadeira chamada Literatura Açoriana – e na Universida­de dos Açores, Urbano Bettencourt ministrava o curso de literatura açoriana (enquanto unidade curricular das licenciaturas) com a duração de dois semestres; havendo outro curso, “Portugal atlântico e a açorianidade” que era um módulo de 10 horas integrado nos Cursos de verão da Universidade. O próprio Urbano nos declarava há dias que de momento não sabe se,

Para lá do que o Onésimo leciona na Brown, existem outros cursos de iniciação à Literatura açoriana; na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, o Assis Brasil orienta um curso de literatura aaçoriana, mas já em pós-graduação. Há, no entanto, trabalhos e projetos aqui e ali; em França está a ser desenvolvido um projeto de doutoramen­to sobre o suplemento literário “Glacial” (Angra do Heroísmo, 1967-1973). O programa da disciplina de 2002 não se alterou desde então, apenas se atualizou a bibliografia crítica e foi variando o leque das obras obrigatórias, embora mantendo o Mau Tempo no Canal. Os trabalhos individuais dos alunos permitiam abordar as obras de autores mais recentes e que aparecem na bibliografia fornecida.

Podíamos citar dezenas de outros autores relevantes[12].

Eu sou um recém-chegado a estas ilhas com menos de três anos de aprendizagem, mas tive a honra e o privilégio de aprender as idiossincrasias micaelenses e picoenses quando recentemente traduzi as últimas obras de Daniel de Sá e de Manuel Serpa. Deparei-me com noções etimologicamen­te novas contrastando com o uso ancestral que o Português do continente lhes apõe nos dicionários. Trata-se aqui de desvendar as ilhas como mito paradisíaco recuando na sua essência até à infância dos autores, sem perder de vista que as ilhas reais já se abriram ao peso do presente e não podem ser apenas perpetuadas nas suas memórias. Muitas vezes a obra dum autor sofre drasticamen­te quando, em vez de ser tomada apenas como obra, é erigida ao estatuto regionalista, que não pretendeu para si própria.

Podem deduzir-se da leitura destes autores, algumas características relevantes para a açorianida­de:

  1. O modo como o clima inculca um caráter de torpor e de lentidão em que a pressa é amiga da morte;
  2. O modo como a História define os habitantes deste arquipélago ainda hoje quase tão afastados da metrópole como há séculos atrás;
  3. A forma como se recortam todos os estratos sociais: vincadamente feudais apesar do humanis­mo que a revolução dos cravos alegadamente introduziu nas relações sociais e familiares;
  4. O modo como a proximidade da terra se manifesta ainda de forma sobrejacente fora das peque­nas metrópoles que comandam a vida em cada ilha, num centralismo autofágico e macrocéfa­lo.

Neste universo tão idílico não busquei – ao traduzir essas obras – a essência do ser açoriano, que de certeza existe, em miríade de variações insulares, cada uma vincadamente segregada da outra, se o homem se adaptou às ilhas ou se estas se continuam a impor condicionando a presença humana, para assim evidenciar a sua diferença específica, neste caso a açorianidade? Estando a açorianidade presente num escritor, explicá-lo é tarefa para estudos mais complexos do que a mera atividade de um tradutor, por mais empenhado ou apaixonado que este possa estar pelo objeto da sua tradução.

A existência, ou não, de literatura açoriana não passa, necessariamente, pela existência desta aço­rianidade[13]. Natural da ilha das Flores, Pedro da Silveira (1923-2003) captou “as mundividências açorianas”, abrangendo na sua poesia “as inquietações e os sonhos de gente viva de todas as parti­lhas e um verdadeiro compromisso social“, enquanto eu apenas tive a oportunidade de captar uma fotografia da alma dos escritores que traduzi.

Luiz António de Assis Brasil[14] analisou a obra de Daniel de Sá[15] e em especial à narrativa de fic­ção, que revela facetas da identidade insular, em especial da ilha de origem.

Coloca-se assim a evasão como um destino ao qual o açoriano se entrega com a fatalida­de do cumprimento de um dever. O resultado é a errância, a transitoriedade e o permanente desejo da volta. Quando acontece, essa volta nunca é satisfatória: o emigra­do jamais poderá deixar de ser americano, e mesmo que construa uma casa sumptuosa em sua freguesia original, contribua para a igreja e participe das festas coletivas, todos lhe conhecem a hi­stória. Intentando uma análise mais ampla, percebemos quanto os componen­tes tradicionais da literatura açoriana estão presentes nessa obra: a sensação de estar-se numa prisão, o desejo de evadir-se, a saudade a roer os calcanhares, a estreite­za do ambiente insular, a desconfiança das terras estrangeiras. Daniel de Sá[16] mostra-nos uma outra realidade: aqui já não há quem abandone a ilha, mas todos são prisioneiros desse cárcere que se circunda de infinitude por todos os lados. O título, grafa­do no singular, o é naquele sentido antigo: então temos crónicas, onze no total, que tratam dos teres e haveres açorianos, nomeadamente da ilha de São Miguel, mas cujos interesses vão além.

No plano da linguagem, o Autor do livro O Pastor das Casa Mortas (edição VerAçor 2007) dá-se ao luxo de exportar, por efeitos de mimética, para uma das regiões mais interiores e montanhosas de Portugal, a Beira Alta, o seu herói em busca de um amor perdido no léxico e na sintaxe dos ve­lhos montes escalavrados por entre o pastoreio numa verdadeira apologia da solidão física e mental que é o retrato de Manuel Cordovão esse lusitano de um amor só para toda a vida. Como o autor diz a começar trata-se de um livro dedicado “Às mulheres e aos homens que ainda acendem o lume nas últimas aldeias de Portugal.”

A narrativa utilizando terminologia não insular acaba por poder ser lida como uma ode ao açoria­no isolado de si e do mundo, neste amor perdido que se encontra apenas quando Caronte ronda. Como diz o autor

Embora eu vivesse numa ilha pequenina, a cinco minutos de um passeio calmo até ao aeroporto de quase todas as companhias aéreas que havia no Mundo, isso para o caso pouco importa!

Aliás esta transposição da naturalidade geográfica do personagem deixa-nos permanentemente na dúvida se a Teresa do “Pastor” não será irmã gémea da personagem feminina que acompanha os seus passos na digressão por “Santa Maria: a Ilha-Mãe”. Em ambas as obras “as palavras [são] trata­das suavemente, amenizando as arestas da fonética, como se com elas não pudesse nunca ofender-se alguém.”

Trata-se de uma visita não ao “despovoamento das ilhas” mas ao despovoamento do país real, montanhoso, interior e árduo de Portugal. Aqui não se resgata o imaginário coletivo naquilo que tem de mais genuíno e identificador, antes pelo contrário, se dá a palavra a uma erudição imprová­vel de um apascentador de cabras. Aqui não há a memória plural, que vem de Gaspar Frutuoso, mas sim uma ficcionalização dum fenómeno que não se mimetiza apenas nesta digressão pela Beira Alta. As Casas Mortas são-nos apresentadas como um resultado inevitável e inelutável ao longo da vida do personagem principal, sem que a sátira ou o humor permeiem a couraça de convicções de Manuel Cordovão. Existe uma interdependência do autor, dos personagens e do leitor que nos levou a ver e rever dezenas de vezes, uma só passagem do livro para lhe darmos o tom, o colorido, a sonorida­de e a poesia das prosas. De início pensei que seria ocasião única, mas rapidamente me aper­cebi de que era recorrente à totalidade da obra ficcionada.

O resultado é uma prosa rica, densa e tensa, enovelando em diálogos simples e curtos um enredo que nos prende da primeira à última página e me levou a interrogar como é que fiquei órfão intelec­tual desde que acabei de traduzir o livro. As suas personagens e a sua escrita fazem de tal modo parte da minha vida que sinto uma espécie de síndroma de Estocolmo, fiquei cativo e apaixonei-me pelos captores…e agora, como vai ser?

Já o outro livro intitulado Santa Maria Ilha-Mãe (também editado pela VerAçor em 2007) é uma viagem ao passado, permeada de nostalgia quase lírica e pela magia da infân­cia e das suas cores sim­ples, mas bem nítidas. Fala-se de como os Açores conviveram com o isolamento ao longo dos séculos, dos ataques de piratas, uma ameaça constante a inculcar ainda mais vincadamente as cren­ças de origem religiosa — numa ilha que feliz­mente não foi muito assolada por terramotos nem explo­sões piroclásticas. Essa mundi­vidência, leva-nos naquilo que pode ser considerado o mais interes­sante guia ou roteiro turístico jamais escrito.

O próprio título gerou controvérsia, quer na versão portuguesa quer inglesa (Santa Maria: Ilha-Mãe; Santa Maria, Island Mother, ou como o próprio autor notaria:

Não se trata de “mãe” com valor de adjetivo, mas sim de dois substantivos, tanto mais que os liguei com hífen em Português. Como bem entendeu, uma ilha que é mãe também. Não é o caso de Ilha Verde, por exemplo…

Diz-nos Daniel de Sá “O Clube Asas do Atlântico era um dos meus quatro lugares míticos. Os outros três, também sagrado um deles, eram a capela de Nossa Senhora do Ar, o Externato e o Atlânti­da Cine. Ainda hoje recordo exatamente o seu cheiro” e todos nós – ao lê-lo – sentimos com ele, os cheiros, as cores e as toadas que nos descreve.

Estes dois livros pertencem a um mesmo tempo, em que “falar do passado açoriano é, também, falar do seu presente, e referir-se ao presente é remeter inapelavelmente ao passado, o que mostra a unidade e a solidez de propósitos do livro”, como diria Assis Brasil, referindo-se ao notável e quase único traço constante de profundo humanismo que informa os textos. Todas as suas persona­gens são de tal forma credíveis que nos sentimos trans­portados ao local e vivemos partilhando os sentimentos dos interlocutores.

Como magistralmente disse a escritora canadiana Ann-Marie MacDonald, “A tradução, tal como a escrita, é uma arte e uma maestria, com um toque de alquimia. Quando o autor e o tradutor se reúnem, o resultado pode ser inspirador. As nuances traduzem a língua numa forma de arte. [17]

A tradução do livro de Manuel Serpa Da pedra se fez vinho/When rock became wine foi outro exercício inesquecível. Apesar da ajuda de vários conterrâneos do autor houve ocasiões em que as explicações à guisa de glossário se sobrepunham umas às outras, aumentando as já profusas notas de tradutor. Tudo isto porque para um mero leitor do continente o texto seria incompreensível, ou seja, era necessário haver mesmo uma intertradução, do falar picoense para o falar continental, antes de ser vertido num inglês pouco shakespeariano. Criou-se involuntariamente um novo glossário a adicionar à Diciopédia Contrastiva da Língua Portuguesa que estes Colóquios [Açorianos] estão a inventariar desde o ano passado. David Crystal[18]. Sempre salientou que a língua inglesa “tinha substituí­do muitos idiomas nativos como o Cambriano ou Câmbrico, Cornualhês, Norn e o galês Manx, embora esteja nas últimas décadas a ser ela mesma substituída pela sua variante norte-america­na”. Ao ler trabalhos na língua original da autoria do português Saramago, do colombiano García Marquéz, do egípcio Naguib Mahfouz[19], uma pessoa deve ser sempre humilde em relação aos nossos colegas tradutores, capazes de penetrarem até às mais recônditas minudências das lín­guas de origem e transformarem-nas nas mesmas tonalidades na nossa língua de leitura. Foi isso que tentei fazer ao descobrir a Açorianidade da língua e cultura destes autores que ora traduzi e que me permitem afirmar sem sombra de dúvidas que a literatura açoriana está viva, de boa saúde e recomenda-se.

Não posso, porém, senão lamentar, que parte dos editores portugueses continue infelizmente a preferir o trabalho fácil, rápido, barato e pouco profissional de tantos aprendizes de feiticeiro tradu­tor. Cito um velho exemplo (datado de 1998) do jornal The Boston Globe, em que as vendas de um ‘depilador’ na Rússia tinham sido objeto de uma promoção como sendo um ‘tónico capilar’ para desespero de todos os recém-transformados em carecas. Outros exemplos estrangeiros abundam como o da água mineral “Blue Water” anunciada em Ucraniano como “bluvota” [vómito] ou ainda o anúncio do champô “Wash and Go” que em Russo soa a ‘vosh’ ou piolho. Admitamos que tradu­ções semelhantes em português são infelizmente correntes em material promocional do arquipélago como aconteceu há poucos anos com o belo livro turístico promocional intitulado “Triângulo Doura­do” editado pela Clássica Publicações.

Começamos esta apresentação dando-vos conta da extinção das línguas e dialetos, passando de­pois à vitalidade da escrita açoriana exemplificada pelos livros que recentemente tive o privilégio de traduzir para inglês, para os mercados da Norte América.

Deixem-me, pois, concluir que as línguas têm de ser mantidas, tratadas e estimadas. Elas não divi­dem países, a intolerância sim. Muitos de nós ignoramos a perda diária de dialetos e línguas e nem sequer sentem a sua falta, outros há que acreditam que a pluriexistência de línguas é uma praga que assola a humanidade desde os tempos da Torre de Babel, que nem vez de ajudar a comunicar apenas serve para confundir pela sua diversidade. Felizmente há já muitos clamores alegando que a extin­ção das é uma ameaça à espécie humana, e que, tal como a diversidade biológica é vital para a saúde da Terra, também vitais são a diversidades intelectuais e culturais. Isto é cada vez menos falacioso devido à globalização desenfreada.

A sobrevivência dos idiomas neste século depende de todos nós[20], pelo que devemos apro­veitar as novas tecnologias neste mundo de ondas hertzianas sem fronteiras onde a tirania dos governos não penetra. Usemos, pois, a internet para proteger e recriar as nossas línguas e culturas antes que elas se extingam.

A tradução é hoje essencial para reconhecer uma Nova Europa de 27 países, e deze­nas de línguas pondo-nos em contacto direto e instantâneo com diferentes culturas de vários países[21].

Possam eles também descobrir esta nossa rica cultura açoriana.

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Chrys Chrystello

Durante muitos anos na Austrália esteve envolvido em instâncias oficiais que definiram a política multicultural daquele país. Publicou em 1972 poesia “Crónicas do Quotidiano Inútil” (vol. 1). Desde 1967 dedicou-se sempre ao jornalismo político em rádio, televisão e imprensa escrita. Escreveu em 1999 o Ensaio Político “Timor Leste: o dossier secreto 1973-1975” e a monogra­fia “Crónicas Austrais 1976-1996”.

Organiza os Colóquios Anuais da Lusofonia (desde 2001) que tiveram como patro­no o Embaixador José Augusto Seabra e desde 2007 Malaca Casteleiro e Evanildo Bechara. Organiza (desde 2005) os Encontros Açorianos da Lusofonia (S. Miguel, Aço­res), mantendo o seu interesse no ensino de tradução, multiculturalismo, Inglês e Estudos de Tradu­ção.

Em 2005 publicou em bragança o “Cancioneiro Transmontano 2005”, e (E-Book/e-livro) o segundo volume dos seus contributos para a história “Timor-Leste vol. 2: 1983-1992, Historiografia de um Repórter” (2600 páginas e edição em CD). Entre 2007-2009, traduziu obras de autores açorianos para Inglês, nomeadamente de Daniel de Sá (Santa Maria Ilha-Mãe, O Pastor das Casas Mortas) e de Manuel Serpa (As Vinhas do Pico). Traduziu o livro de Victor Rui Dores “Ilhas do Triângulo, coração dos Açores (numa viagem com Jacques Brel)”, “Caminhos de S. Miguel” e “ilha terceira” de Daniel de Sá. O seu último livro (março de 2009) “ChrónicAçores: uma Circum-navega­ção (volume 1) narra as suas viagens em volta do mundo.

[1] Daniell Nettle & Suzanne Romaine, Vanishing Voices: The Extinction of the World’s languages Oxford University Press 2000.

[2] Daniell Nettle and Suzanne Romaine, op. cit.

[3] “Aboriginal Stolen Generation” descrita na peça “Stolen” encomendada pela Companhia de Teatro Ilbijerri Aboriginal and Torres Strait Islander em 1992, e representada no London’s Tricycle Theatre, julho 4-15, 2000. Originalmente descrita numa célebre canção de Archie Roach em 1987 “Took the children away”.

[4] Grécia, Itália, Escócia, Gales, Irlanda, Áustria, Canadá, Gibraltar, Holanda, Hungria, Índia, Madagáscar, Maurícias, Polónia, Rússia, Suécia, EUA; Índias Ocidentais, Cabo da Boa Esperança, Dinamarca, Egito, França, Alemanha, Pérsia, Portugal e Lituânia (Records of the First Fleet, jan. 26, 1788.)

[5] Dr. Annette Schmidt, 1990. Os quatro maiores grupos de idiomas sobreviventes têm entre + – 4 mil falantes, e as restantes seis línguas têm mil falantes. 15 Mil pessoas falam Aboriginal Krill e Crioulo das Ilhas Torres.

[6] In Aboriginal Australian Encyclopedia, Canberra: Aboriginal Studies Press for the Australian Institute of Aboriginal and Torres Strait Islander Studies, 1994.

[7]

[8] David Crystal cunhou o termo netspeak para designar as formas inéditas de expressão escrita que a internet gerou.

[9] Entrevista a David Crystal, in revista Veja – Capa – 12/09/07.

[10] Troca de correspondência com o autor em 2001-2002. David Crystal:

Thank you for your message. Portuguese, it seems to me, has a very strong and positive future – guaranteed by its extensive population base and the wide range of functions which it expresses, from parliamentary formality to grass-roots samba. At the same time, Portuguese speakers need to recognize that their language will be subject to change – as all languages are – and this process should not be opposed unthinkingly. When I was in Brazil last year, for example, I heard that there was a movement to try to keep English words out of Portuguese. To ban loan words from other languages can actually be a harmful step, in the development of a language, as it cuts the language off from international trends. English itself has borrowed words from over 350 other languages – including Portuguese – and the result has been an extremely rich and successful language. Portuguese has the strength to assimilate loan words from English or any other language, and still retain its distinctive identity. I would also hope that the ongoing development of Portuguese would be part of a multilingual ethos for the countries where it is spoken, so that indigenous languages are respected and supported. In the case of Brazil, this is critical, given the perilous state of so many Indian languages. I hope these observations are of some assistance to you in your work. Loan words do change a language’s character, but they don’t as such cause it to deteriorate. The best evidence of all is, of course, English itself, which has borrowed more words from other languages than any other language in the world – and look at what has happened to English! In fact, about 80% of English vocabulary is not Anglo-Saxon in character, but comes from Romance and Classical origins – including Portuguese. (It’s ironic that some of the words which the French, for example, are currently trying to ban, came from French and Latin in the first place!) You have to look at what happens, when words enter a language. In the case of English, we have such triplets as kingly (from Anglo-Saxon), royal (from French) and regal (from Latin). Now that we have all three, the language is much richer, because there are now all kinds of stylistic nuances which would not otherwise have been possible. Loanwords increase a language’s richness of expression. No attempt to keep loanwords out of a language has ever succeeded. Languages can’t be put under control. No academy has ever stopped languages changing. All this is very different from the situation of endangered languages, as I discuss for example in my book, Language Death. If languages are borrowing words it shows they are alive to social change and trying to keep pace with it. It is a healthy sign, as long as the loan words supplement and don’t replace local equivalents (as in the English example above). What is worrying is if a dominant language begins to take over the functions of a less dominant language – for example, if you found English being used as the language of higher education when previously Portuguese was used. That is where legislation can help, by introducing various protective measures, supporting broadcasting in the minority language, and so on. There does need to be a policy, especially in a world where things are changing so fast, and this policy has to address the core issues, which are all to do with the functions of multilingualism. It must also be remembered that English is not alone in its displacement of other languages. In Brazil, hundreds of Indian languages have not been displaced by English – but by Portuguese. And all major languages – Spanish, Chinese, Russian, Arabic … have affected minority languages in this way. Hope these remarks help. Professor David Crystal

[11] http://joelneto.blogspot.com/2005/12/reportagem-literatura-que-farei.html Joel Neto.

[12] Adelaide Baptista, Álamo Oliveira, Daniel de Sá, Dias de Melo, Eduardo Bettencourt Pinto, Urbano Bettencourt, Pedro da Silveira, Eduíno de Jesus, Carlos Wallenstein, Santos Barros, Martins Garcia, Emanuel Félix, Natália Correia, João de Melo, Maria Luísa Soares, Cristóvão de Aguiar, Eduardo Jorge Brum, Judite Jorge, Rui Machado, Mário Cabral, Nuno Costa Santos, Luís Filipe Borges, Alexandre Borges, Tiago Prenda Rodrigues, Emanuel Jorge Botelho, Fernando Aires, Ivo Machado, Norberto Ávila, Onésimo Teotónio de Almeida, Vamberto de Freitas ou Victor Rui Dores, Frank X. Gaspar ou Katherine Vaz (entre muitos outros), e no passado Gaspar Frutuoso (século XVI) Vitorino Nemésio (séc. XX), Antero de Quental (séc. XIX), Roberto de Mesquita (sécs. XIX e XX), Armando Côrtes-Rodrigues (séc. XX) in

http://joelneto.blogspot.com/2005/12/reportagem-literatura-que-farei.html Joel Neto.

[13] http://www.revista.agulha.nom.br/MACHADO%20PIRES.pdf página 4, Mário Cabral em MACHADO PIRES, A.M.B., Vitorino Nemésio: Rouxinol e Mocho, Praia da Vitória: Câmara Municipal Praia da Vitória, 1998, 92 pp.

[14] http://www.geocities.com/ail_br/discussaodaidentidadeacoriana.html

[15] Sá, Daniel de. Ilha grande fechada. Lisboa: Salamandra, 1992.

[16] Sá, Daniel de. Crónica do despovoamento das Ilhas. Lisboa: Salamandra, 1995.

[17]Translation, like writing, is both art and craft, with a touch of alchemy. When translator and author actually get to meet, the result can be inspired. Nuance is what translates language into art.” Ann-Marie is a Toronto-based writer and actor. She has received accolades for her playwriting, acting and writing. Her play Goodnight Desdemona (Good Morning Juliet) won the Governor General’s Award for Drama, the Chalmers Award for Outstanding Play and the Canadian Authors’ Association Award for Drama. She won a Gemini Award for her role in the film Where the Spirit Lives and was nominated for a Genie for her role in I’ve Heard the Mermaids Singing. Her first novel, Fall On Your Knees, was published in 1995 to much critical acclaim in Canada and abroad. Her latest book, The Way the Crow Flies, was shortlisted for both the Giller Prize and Governor General’s Award.

http://www.banffcentre.ca/programs/93_words/2007/biltc/past_programs.aspx

[18] Cambridge Encyclopedia of the English Language, David Crystal Cambridge University Press ISBN 0521530334

[19] Nem sequer metade das suas obras foram traduzidas para Português (apenas 4 livros…).

[20] http://www.whyy.org/91FM/radiotimes.html The work of David Harrison and Gregory Anderson is the subject of a new film which was screened at Sundance, “The Linguist.” The film tells the story of their travels and research around the globe to document endangered languages. Both are affiliated with the “Living Tongues Institute for Endangered Languages.”

[21] Palazón, Reina, co-vencedor do Prémio Nacional de Tradução de Espanha no ano 2000, pelo seu trabalho com as Obras Completas de Paul Celan, traduzidas do Alemão para o Castelhano.

http://www.academia.edu/32435239/Do_genoc%C3%ADdio_lingu%C3%ADstico_%C3%A0_literatura_a%C3%A7oriana_de_Daniel_de_S%C3%A1_Chrys_Chrystello