disputa da herança de RODRIGUES MIGUÉIS

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ARTIGO da jornalista Ana Henriques, Público, 26/12/22
HERANÇA DO ESCRITOR JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS DISPUTADA EM TRIBUNAL, 40 ANOS APÓS A SUA MORTE
“Direitos de autor e gestão da obra do escritor antifascista passaram para as mãos de mulher que acompanhou últimos anos de vida da sua viúva.
Os direitos de autor de José Rodrigues Miguéis estão a ser alvo de uma disputa em tribunal que opõe a neta do escritor a uma antiga cuidadora. Antes de morrer, com 102 anos de idade, a viúva do intelectual, Camila Campanella, fez um testamento a deixar não só os rendimentos da obra como também a sua gestão a esta mulher, deserdando assim os descendentes.
Mónica Jakobs, que agora reivindica esta herança que se presume de magros proventos dada a fraca procura na actualidade pela obra de Rodrigues Miguéis, não é neta biológica do escritor. Já radicado na cidade de Nova Iorque, cidade onde se exilou nos anos 30 e onde morreu em 1980, o intelectual e a mulher foram buscar a mãe de Mónica, Patrícia, a um orfanato tinha esta quatro anos de idade, criando-a como se fosse sua filha.
A disputa corre há quatro anos nos tribunais portugueses e foi recentemente alvo de mais uma decisão judicial que não põe, no entanto, fim ao litígio. Apesar de darem razão à cuidadora Odete, uma mulher que emigrou de uma aldeia da Lourinhã para os EUA, os juízes dizem que se Mónica arranjar provas da adopção da sua mãe, Patrícia, por Rodrigues Miguéis e pela sua mulher, Camila, que seria estéril, ainda pode disputar pelo menos a parte da herança de que se queixa de ter sido desapossada.
Ligado ao movimento Seara Nova, com o qual acabaria por romper, e com uma escrita apelidada de neo-realista, Rodrigues Miguéis é hoje um autor pouco conhecido entre as gerações mais novas. Filho de um porteiro de hotel galego, nunca conheceu uma vida de luxo. Pelo contrário: segundo uma das maiores especialistas na sua obra, Teresa Martins Marques, quando sai de Lisboa, cidade que retratou em vários dos seus livros, para rumar a Bruxelas valeu-lhe ter conseguido uma bolsa para prosseguir os estudos. Por essa altura, já tinha desistido de uma carreira no mundo das leis, primeiro como advogado e depois como procurador da República. É na cidade belga que conhece a primeira mulher, uma colega judia de origem russa com quem se casa em 1932. Mas o matrimónio não perdura.
As crónicas com que se havia estreado logo aos 20 anos no jornal República tinham-lhe franqueado a entrada no mundo da literatura. Desde cedo a pobreza e também a emigração se tornam centrais na sua escrita. À formação republicana e progressista que bebeu do pai, segue-se, após o regresso de Bruxelas, aquilo que a mesma especialista descreve como uma radicalização ideológica – facto a que não pode ter sido alheio o rumo que Portugal tomava, com a implantação da ditadura militar e a institucionalização do Estado Novo. Se militou ou não no PCP, diz Teresa Martins Marques que é impossível saber. Mas era, pelo menos, simpatizante deste partido. Militantemente antifascista, torna-se um alvo da censura, que proíbe que o seu nome apareça nos jornais. Fica impedido de publicar.
A luso-americana Camila Campanella, que conhecera poucos anos antes numa passagem sua por Lisboa, dá-lhe guarida em Nova Iorque em 1935. Patty, como chamavam a Patrícia, torna-se filha do casal quase dez anos depois. A miúda tem cinco anos quando Rodrigues Miguéis, um homem elegante e sedutor, é acometido por uma infecção cerebral que lhe paralisa metade da cara e o atira para o hospital psiquiátrico de Bellevue. Ignora se algum dia voltará a ser o que era. A experiência muda-lhe a vida, como renascido para a sua vocação. O internamento desencadeia nos anos seguintes uma produção literária que não mais terá interrupção.
Milita ao lado de Hemingway e John Dos Passos em manifestações antifascistas e funda o Clube Operário Português. Faz reverter as receitas de um conto seu para o apoio à guerra civil espanhola. Dirige a partir de Nova Iorque, durante dois anos, a edição em língua portuguesa das Selecções do Reader’s Digest e faz traduções de autores consagrados, como O Grande Gatsby, de Fitzgerald. Mas o apoio financeiro vem-lhe sobretudo de Camila, que é professora universitária e insiste que se dedique exclusivamente à escrita, recorda Teresa Martins Marques, que se tornou amiga da luso-americana.
Sobretudo durante o McCarthismo​, Camila teme as consequências das posições políticas do marido, que se corresponde com José Saramago – correspondência entretanto publicada. A troca epistolar tem origem na circunstância de o futuro prémio Nobel da literatura ser na altura director literário na Editorial Estúdios Cor, onde Miguéis publicava a sua obra, mas acaba por extravasar muito esse âmbito. Um dos primeiros grandes reconhecimentos públicos do seu valor, recebe-o já exilado, em 1959: Léah e Outras Histórias arrebata o prémio Camilo Castelo Branco, instituído nesse ano pelo Grémio de Editores e Livreiros, com a colaboração da Sociedade Portuguesa de Escritores. Descreve a forma como um emigrante português se apaixona pela sedutora e irresistível camareira da pensão onde está hospedado, que acaba por desaparecer sem deixar rasto.
Após a doença, e já com dupla nacionalidade, pede autorização para vir passar três meses a Lisboa para visitar a mãe. Os serviços de informações que antecederam a PIDE, que começam por o deter para depois o libertarem, escrevem que chegou acompanhado da mulher “e da sua filha Patrícia, de seis anos de idade, nascida em Nova Iorque”.
Mesmo depois do 25 de Abril, o escritor, que passou por vários episódios depressivos e tentou por três vezes regressar a Portugal, nunca voltou de forma definitiva ao seu país de origem. Quando morre em Manhattan, em 1980, deixa uma vasta obra, mas não um património material equivalente: a casa onde morava era de renda controlada, não havia bens materiais para repartir. Patrícia já lhe dera uma neta, de que Camila falava a Teresa em cartas que lhe escreveu já nos anos 90, e que foram anexadas ao processo em tribunal: “A nossa Mónica tem agora 27 anos. Tem já uma menina muito espevitada de dois anos e meio. Claro que lhe fazemos todas as vontades.”
Odete Pedro aparece em casa da luso-americana como empregada, para ajudar a cuidar da idosa, que morreria já depois de completar mais de um século de vida, diz a especialista na obra do escritor. É desmentida pelo advogado da actual titular dos direitos de autor, Dias Ferreira: “A minha cliente cuidou de Camila por ser sua vizinha. Não era sua empregada.”
Aos 101 anos de idade, a viúva – que estaria de relações cortadas com a filha Patrícia, por esta querer interná-la num lar de terceira idade – ruma ao consulado de Portugal em Nova Iorque e torna sua única herdeira a cuidadora, a quem deixa a totalidade dos direitos de autor, dando-lhe ainda o poder de gerir como bem entender a publicação, tradução e reedição das obras. Apesar da existência da filha, da neta e da bisneta, declara não ter descendentes e ser a única herdeira do falecido marido.
Na acção judicial que desencadeou contra Odete Pedro oito anos depois, em 2018, a neta de Miguéis alega que a idosa se encontrava, à data do testamento, dependente no dia-a-dia desta mulher, que dela cuidava e a assistia. E também diminuída nas suas capacidades, quer cognitivas, quer auditivas. Caso assim não fosse, alega, nunca teria disposto de bens que não lhe pertenciam por inteiro, dado que os direitos de autor se tinham também transmitido, por morte do escritor, à sua filha adoptiva. Antes disso, em 2014, Mónica Jakobs tinha escrito à procuradora-geral da República a expor a situação.
Odete Pedro começou por alegar nunca ter ouvido a viúva falar de Patrícia e de Mónica, nem tão-pouco referir-se-lhes como filha e neta – coisa que Teresa Martins Marques diz ser impossível, uma vez que mãe e filha adoptiva moravam no mesmo prédio, embora em andares diferentes. O legado, explica-o como uma compensação “pela ajuda pessoal, patrimonial e financeira” que assegura ter-lhe prestado nos últimos anos de vida.
Mas do ponto de vista jurídico o cerne da questão é outro. “A adopção não existiu”, declara Dias Ferreira, que entende que o que sucedeu foi o casal ter ficado com a custódia da criança. Recentemente o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que, para tentar fazer valer os seus direitos, a neta tem de entregar à justiça portuguesa a sentença norte-americana que decretou a adopção, para ser validada. O caso pode complicar-se pelo facto de à data em que Patrícia foi morar com o casal a adopção ainda não ser legal em Portugal.
Na última década, e segundo dados da empresa de estudos de mercado GfK, as vendas dos livros de Miguéis nunca superaram senão uma vez a centena de exemplares por ano. E alturas houve em que ficaram muito abaixo disso. Enquanto a viúva foi viva, as receitas mais elevadas chegaram-lhe da adaptação de uma das obras para o cinema, O Milagre Segundo Salomé. Quem quiser agora fazer o mesmo terá de falar com a antiga cuidadora ou com o seu filho, que o PÚBLICO tentou, sem sucesso, ouvir. O seu advogado diz que Odete Pedro, que continua a morar nos EUA e trabalha para a Broadway, apresentou recentemente uma queixa-crime contra Mónica depois de ter visto a sua casa vandalizada.”
Jose Gomez Bulhao, Teresa Martins Marques and 2 others
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  • Teresa Martins Marques

    Entre 1994 e 1996 dirigi a Edição das Obras Completas de Miguéis para o Círculo de Leitores, em 13 volumes, todos prefaciados por mim. Compraram a colecção inteira cerca de cinco mil pessoas. Foi um sucesso de vendas. A viúva, minha amiga, disse-me que nunca tinha recebidos tantos direitos, mesmo em vida de Miguéis! Compravam-se também as obras na Editorial Estampa, que entretanto faliu. A viúva morreu em 2006 e não teve mais ninguém que cuidasse da obra, na sequência de um litígio entre a neta e uma cuidadora a quem a viúva deixou em exclusividade os direitos e o cuidado da obra. A cuidadora não pertence ao meio literário. Nesse testamento a viúva diz que não tem filhos. Na verdade tinha a filha adoptiva que morreu em 2013; tinha esta neta e duas bisnetas. A neta já apresentou as provas legais de que a sua mãe foi adoptada, em 6 de Junho de 1944 pelo Surragate’s Court de Nova Iorque. O caso segue em tribunal, porque a neta não aceita que neguem a sua relação à família afectiva. Viveu em casa de Camila e Miguéis e só saiu de lá para se casar. A sua mãe e a avó desentenderam-se por esta achar que, com tanta idade , já em cadeira de rodas, estaria melhor num lar. Morreu com 102 anos e fez o tal testamento em que diz que não tem filhos, já com 101 anos. Para a neta trata-se de uma questão de identidade, que lhe negam!
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