diário de bordo duma morte não-anunciada do chrys

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589. ressurrecto 16.5.2025

E ao 3º dia, dizem, que ressuscitou, ou melhor dizendo, neste caso concreto, à terceira tentativa ressuscitou, depois de paragens cardíacas, desmaios e arritmias. E o Papa Francisco morreu dia 21.4.2025, uns 5 dias antes das minhas paragens cardíacas, não estava destinado irmos na mesma onda.

Eu que não estou vocacionado para Papa, a não ser dos colóquios da lusofonia, fiquei-me no recobro da ICU – UCI (Unidade de Cuidados Intensivos) da Cardiologia do HDES (Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada), ligado a aparelhos vários que passam o tempo a tocar bips de diferentes tons e durações. Consta que já tenho um implante CDL desfibrilhador, cujo nome alternativo jamais me ocorre, por entre as inúmeras falhas de memória e de vocabulário que vou tendo.
posteriormente esclarecem que o termo é CDI (Cardioversores desfibriladores implantáveis (pacemaker com desfibrilhador).

Picuinhices designatórias que não obscurecem a gravidade do procedimento. Os primeiros dias foram complicados sem memória viável do que me aconteceu nas Lajes mas eternamente grato pela presença de helicóptero na Terceira para me ir buscar e me evacuar para PDL.

Os dias na UCI foram de vagas memórias recheados de visões, fruto do coquetel de drogas que me deram. Alucinações, uma sensação de quarta dimensão que se prolongava pelos dias e noites. Era como estivesse sob a ação de psicotrópicos ou alucinogénios, cogumelos mágicos ou quejandos. Até as notas manuais que tomei parecem psicotrópicas. Os dias passaram ao ponto de nem dar conta da sua voragem, e ter perdido a conta de tais dias…até que me deram a data e dei conta do tempo que passara (perdi quase uma semana sem dar conta).

Recebi notícias do Madruga, Sunes, Anabela, Gabriela, Diana, Aníbal, Vasco P da Costa, entre outros.

Hoje (data não determinada), pelo 2º dia tomei banho sentado, uma auxiliar fez-me a barba, tive a primeira aula de fisioterapia e comi melhore (ovos recheados).

Sexta-feira 9 de maio, acordei renovado ou assim o penso quando me comparo com ontem. Dormi toda a noite, levantei-me uma vez para abluções noturnas e uma matinal como quando estava numa rotina normal. Pelas 06.00 primeira ronda de exames e drogas e pequeno-almoço pelas 09.00. Tomei duche pela primeira vez por conta própria com supervisão de enfermeira e auxiliar. Fez-me sentir levemente menos dependente e intuiu-me a escrever sentado no cadeirão enquanto tento recordar o dia de ontem.

Torna-se difícil descrever as atuais limitações e se ou quanto poderei recuperar. Acabei agora mais uma aula (sessão) de fisioterapia que correu tão bem que até foi encurtada de 60 para 20’. As pessoas que ligam a indagar, dão apoio, incentivam e conto com elas para efetuarmos novos desafios e colóquios. Tenho de aproveitar a oferta do diretor regional das comunidades logo que esteja pronto e apto.

Outra sessão de fisioterapia com a pedaleira durante 20’. Nada mau. Não me deixam ter alta este fim de semana, pois a febre matinal continuava nos 38 ºC, sem se saber qual a causa da infeção, havendo deficiência de potássio e magnésio.

Veremos como isto evolui, tenho medo de tornar a ir para casa, sem estar nas condições mínimas para me movimentar como antes deste incidente cardiovascular…

A Bé e João insistem na necessidade de mudança do meu escritório para o quarto da frente , com a qual posso concordar mas que não queria permanente.

A velhice é uma chatice.

Sei que não vai ser fácil mas estou a mentalizar-me para os desafios seguintes e suas limitações. Adaptar a mente ao físico, por mais que custe. Hoje, por exº a tosse reduziu-se para o menor nível da semana sem expetoração externa e curtas tossidelas.

Dói-me o triângulo (isto deve ser coisa dos Açores) da cervical (pescoço) até ao fim das costelas uma dor crónica.

10.5.2025 o Biónico homem acordou para efetuar os testes e exame habituais pelas 06.00 da manhã com a mesma febre da véspera, 38 ºC que ninguém descobre a que infeção se refere.

Por via disso fizeram inúmeras colheitas de sangue e outras durante toda a manhã.

Tomei banho ajudado pelas enfermeiras e assistentes, depois fico num estado de limbo, como se estivesse drogado, sem me mexer. Fiquei assim até à hora do almoço pelo meio-dia. Convenci o pessoal a deixarem-me ir para a cama pelas 14 e tal quando chegava o João a visitar-me, primeiro, e depois, a Bé que parte hoje no voo das 16.00 e tanto apoio anímico me deu nestes dias, com a sua mera presença aqui.

Finalmente consegui ir ao WC sozinho.

Agora voltará o João amanhã. Já lhe estava a dar conta de tudo que é preciso fazer até dia 30 em termos de colóquio e de burocracia que há a tratar. Espero ter forças e conseguir tratar o que há a fazer. Vai fazer falta a presença da Bé, pois a presença dela sempre foi como que uma substituição da presença da mãe que tanta falta fez nestes tempos e, em especial na fase de evacuação e de internamento.. e que falta tão atormentada foi. A Nini poderia não ter feito nada nem ter poderes para me acompanhar mais de perto mas a sua presença seria um bálsamo, mais forte que a medicina do homem branco ainda não inventou.

Somos 3 nesta enfermaria, apenas um há tantos dias como eu (e ficaria depois de eu sair). Todo o aspeto de emigrado, tem direito a visita dupla da mulher e filha enquanto eu tenho de aguentar separadamente e aguardar a vinda da Bé e do João. Fala português mas ao telefone , muitas vezes, em inglês. Outras vezes, fico com a sensação de que ele está a falar outra língua – sem que eu a consiga deslindar ou identificar – (foi-lhe perguntado pela enfermeira mas negou) e em tais ocasiões trata-se dum idioleto monossilábico que soa a nada que eu conheça. Intrigante. Quem saberá o que dizem e a razão. Normalmente essas conversas nunca ocorrem na presença da mulher e da filha ou outras visitas (com aspeto cigano). Será Romani?

Deste desespero de internamento levo comigo o sorriso de algumas pessoas (médicos, enfermeiras, auxiliares) para servirem de espelho aos restantes dias.

O meu vizinho de quarto e de cama intriga-me. Pode ser um mero pedreiro ou eletricista mas pressinto-o mais como um pau-mandado, uma espécie de gângster pelo aspeto, engraçadas estas minhas conjeturas quiçá suscitadas pelo excesso de medicamentos.

Ainda agora dizia que são 19.00 e a mãe deve estar a ligar, mas são 16.00 e, infelizmente, a mãe não liga mais.

Tenho andado a ler “Palavras nómadas” da Dora Gago e dou graças pela evacuação ter sido nos Açores, e por aqui falarem uma variante de PT-EUR…nem quero imaginar como seria difícil em Macau.

12 maio, 10.00 acordaram-me e surpresa a infeção assinalada esta manhã de 38.3 ºC, mas agora baixou para 36 ºC., depois do pequeno-almoço, deram-me banho e demais requisitos médicos, incessantes…ao pequeno-almoço contei 19 comprimidos, mas estou fraco e muito trêmulo, embora com saudade de estar encasa. Hoje estou com a sensação de ir desmaiar ao andar e tento imaginar o medo que isso me causa se for para casa.

Pelo meio-dia tive a agradável surpresa da visita do Eduardo Bettencourt Pinto que me fez companhia durante duas horas de amiga cavaqueira, em que se falou de família, AICL, colóquios e outros (tudo menos política).

Ao deslocar-me para as minhas necessidades fisiológicas, numa sala mais afastada da cama, verifico que os pés estão mais seguros e o seu peso assenta mais uniformemente no chão, com uma postura, levemente, mais ereta.

Contudo, na casa de banho, verifico como estamos todos dependentes de outros em atos tão banais como este. A nossa dependência em ambiente hospitalar é irreversivelmente elevada e vem à mente, sem razão nem desacordo o meu pesar pelo que fiz em jovens anos quando queimava moscas e formigas com fogo. Era uma chacina que hoje não consigo explicar e não encontrou remorsos nos sótãos da memória.

Nunca falei e menos ainda escrevi sobre este terrível genocídio do qual estou disposto a arrepender-me, hoje e aqui. Seria por ter medo? Jamais pensara no motivo ou nisto até agora. Isto levanta a questão de recompensa que aqueles animais estarão agora dispostos a infligir-me em troca das multifacetadas malfeitorias infantis por mim praticadas.

Começo a vê-los, enormes, aqui nas redondezas da cama, a prepararem-me o mais apropriado local para a sublevação.

O médico que hoje me observou pretendia saber a atual medicamentação e se não fosse o meu filho João viver aqui seria difícil dar-lhe tal informação, dado que a filha Bebé não levara consigo o papel impresso que lhe dei nas Flores.

Poderia ser curioso o título deste capítulo “Quase morri nas Flores”

Maio 2ª fª, dia 6

Noite muito agitada, acordei 2 ou 3 vezes e fui ao WC sem necessidade mas por mera vontade de me sentir vivo.

Pelas 06.00 as recolhas de amostras do costume e febre mais baixa do que é costume, acompanhada da costumeira série de recolhas de sangue, mostras disto e daquilo.

Acordo sempre com a terrível falta da Nini. Tento ser os dois apesar de fisicamente ninguém saber que está ao meu lado. Não é fácil explicar a mim mesmo o que se passa e ela sempre a instilar coragem e força, dizendo “tudo vai ficar bem” ou “melhor” e vou sair desta , mas tenho muito medo de ir para casa e viver sozinho.

Acabo de ter uns momentos com resultados positivos para quem esteve de ama tantos dias. Outra terapeuta e mais 30’ de exercício, cansado como se tivesse corrido a maratona, agora estou no sofá e a cabeça pesa imenso, que nem a consigo suportar. Fico muito desconfortável .

Toda a instabilidade desta situação coloca-me num vértice de tempo em que fico pendurado no espaço por infinita opção do destino. Vivo, quiçá, numa outra dimensão onde tudo está suspenso. Por vezes, sinto mesmo que não estou aqui mas numa posição superior de onde me observo e analiso e é assim que me considero agora. Sei que me faz sentir estranho mas o vizinho da cama ao lado é açoriano se bem que não fale outras línguas e o falar dele eu não o compreendo, isso vem-me preocupando há dias e tem-me feito magicar.

Hoje, de manhã ele teve duas visitas e entendo que podem ter falado crioulo ou romani pelo que o entendi ainda menos. E as visitas, segundo espreitei, tinham feições gitanas. Creio não ter dúvidas mas não entendo os meus vizinhos de cama nem de ilha.

Interrompo este diário de bordo, como lhe chamou a enfermeira Ana, trigueira, que me confessou estar já a ler os meus livros e ter até descoberto que fui batizado como José Alberto.

Fui chamado a uma sala escura e frisa. Lembrei-me de Salazar, vá-se lá saber porquê. Ali fiquei seminu, deitado sobre o lado esquerdo e de costas enquanto me faziam ecocardiogramas ou coisa semelhante a eletrocardiografias.. regressei ao quarto, onde um dos 3 doentes teve hoje alta e fico só com o estranho ser de fala alienígena e que nunca consegui decifrar…

Muitas vezes, nos locais onde vivi, nem metas tive (exº Macau), nem destinos, nem rumos certos. Havia uma falta de metas, um deixar correr , mais traços gerais do que queria e onde queria.

Quando penso nisto sou obrigado a pensar que, afinal, esses destinos, essas metas afinal só o eram depois da partida desses mesmos lugares (uma justificação?), outros lugares de amor eram terras a preservar, memórias a chorar, como pátrias que me foram roubadas.

E, dito isto, ora penso, e os Açores o que são? Por vezes, penso neles como a continuação da Escola Primária.

E o vizinho, gutural, continua a proferir sons que não descodifico, que não fazem nenhum sentido, que não se assemelham a nenhuma das línguas que conheço…ao ouvi-lo posso afirmar que os de Rabo-de-Peixe ou de Fenais da Ajuda, nem terão grande sotaque. Isto que ouço são sons trogloditas, sem conexão a idioletos, dialetos conhecidos. Imagino o diálogo se fossemos, nós dois, os únicos habitantes desta ilha deserta!.

17 horas, febre nos 35.9 ºC, todo o dia, finalmente sem febre. Há pouco nos exames de EEC falavam em deixar-me regressar na quinta-feira. Previ e cumpriu-se a não vinda do João hoje.

Das inúmeras vezes que fui ao WC a fim de evitar “incidentes duplos” constatei ter já mais mobilidade e estabilidade ao andar.

Ligou, há pouco a Anabela, e debatemos futuros colóquios com que ela e Madruga se podem já entreter.

13.5.2025 dormi bem, apenas me levantei uma vez, mas acordei com dores na ferida que tarda em sarar e se refere à pressão nas costelas…

a manhã teve a presença de um médico que entrou a meio da sessão do EEC a querer saber tudo, em detalhe, o que se passara bem como a Dra. Gabriela que, entretanto, também entrou. Vão continuar a fazer testes quanto aos baixos níveis de potássio. Hoje, de novo, sem febre. Talvez me deixem sair amanhã. Quando me comunicaram a possível saída amanhã tenho de confessar que fui assaltado pelo imenso medo de sobreviver sozinho.

Espero que estejam certos pois o retomar da vida neste network de apoio reduzido atemoriza. A Berta está nas quintas, e segundas de 15 em 15 dias. O João e Catarina vivem aqui perto, logo na entrada da Lomba. Além deles posso chamar o senhorio Sr. Hermano, a D Rosa do minimercado e a sempre atenta governanta D. Berta.

O João soube da hipótese quando veio cá na pausa de almoço e avisou que tem o carro em manutenção até pelas 17.00 de amanhã pelo que só me poderá transportar a essas horas.. não sei quem mais devo avisar .

Até hoje o serviço hospitalar tem sido muito bom. Ainda agora passam pela terceira ou quarta vez desde manhã cedo, a ver se alguém precisa de esvaziar os recipientes portáteis da urina em cada cama.

Ao fim da manhã, a brigada do reumático (o pessoal mais velho de todos) limpa o pó, o chão e passa a esfregona.

A tarde a tirar cateteres e disfarçando as enormemente assustadoras nódoas negras que traçam o meu corpo como as fossas do Mindanau, um mapa-múndi…eu fecho os olhos, só os abro para ver a minha Nini aqui ao lado, mais impressionada e assustada que eu, mas sempre à espera que terminem as torturas. A seguir, as pálpebras fecham e cá estou na enfermaria de 3 doentes.

Não sou suicida nem tenho vontade de o ser, desde a morte da minha Nini sempre disse que me queria juntar a ela, mas o facto de estar um héli parado na Terceira pronto a ir às Flores buscar-me, significa que ainda não faço parte do Grande Desígnio Universal da Partida.

Cá ficarei, afinal a Nini mandou-me tomar conta da cadela e tenho de ficar.

14.5.2025

Creio que estou aqui há 18 dias no HDES e pode ser que deem alta hoje, de tarde. Soba janela fica a entrada da Pneumologia (onde tantas vezes viemos) e acaba de parar uma ambulância dos Bombeiros, curiosamente com a metade da porta por pintar pelo que se lia apenas “BOMB”, o que daria lugar a 1001 cogitações curiosas.

11.00 acabei agora o duche ajudado pela assistente sendo depois observado por 2 médicos que inspecionaram o implante e entenderam que estava bem. A saída para hoje pode confirmar-se.

Esta tarde a filha Bé telefonou a saber da saída. Honestamente disse-lhe não saber, nem estar preocupado, o que deveria ter-lhe dito é que não tenho pressa alguma. Tenho medo de tudo, até do tráfego intestinal que de 3 em 3 dias se descoordena, como hoje em pleno duche e me deixa mais embaraçado que nunca. Isto são coisas de que ninguém mais fala mas a mim me afetam psicologicamente até ao tutano.

Tenho imenso medo de ter de usar fraldas no futuro, o que me limitaria totalmente, acabando com os colóquios e tudo o resto. Seria um recluso.

São verdades que ainda não tenho de partilhar exceto com estas enfermeiras, médicos e auxiliares.

Realidades que os outros que me rodeiam ignoram ou não estão interessados em saber sobre a fragilidade do corpo humano doente. Já não sou o mesmo que estava nas Flores a 26 de abril 2025.

Ganhei coragem, fui à receção perguntar” saio hoje?” e tive alta pelas 17.00. aguardo que o filho me venha buscar e transportar a casa donde saí a 23.4.2025. “Mixed feelings” but “she’ll be right, mate!” acabam por encapsular estes momentos finais no HDES.

O João decidiu tomar conta do pai e ir jantar e dormir a minha casa. Bem hajas filho.

 

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