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Deve o Governo ir ver prateleiras?
Durante muito tempo, quando alguém queria dar um sinal claro de que desconfiava da inteligência de outra pessoa, agitava a mão direita para cima e para baixo diante da própria cara.
Em linguagem gestual queria significar “tal asno”, “não pescas nada disto” ou “que burro me saíste”. Em qualquer dos casos, traduzia uma clara reserva em relação às capacidades cognitivas de um semelhante, fosse a mesma estrutural ou momentânea.
Progressivamente, o gesto foi perdendo intensidade, sendo substituído por palavras ou sons. Exemplos: “queres que te faça um desenho?”, ou simplesmente “daaaaa”.
Não quer dizer que o tal gesto de abanar a mão diante do rosto tenha desaparecido por completo. Ainda é usado em situações extremas, como censura perante uma manobra de trânsito desastrosa, em que o condutor não pode abandonar a própria viatura e correr atrás do violador do código da estrada para lhe gritar “daaaa” ou lhe perguntar se ele quer que lhe faça um desenho da rotunda.
Desafio sempre os meus alunos a desenvolverem raciocínios lógico-dedutivos. A chegarem a conclusões por eles próprios, antes de abrirem os livros. No fundo, a pensarem.
Vem tudo isto a propósito da pergunta feita pelo Senhor Presidente do Governo Regional, na Assembleia, sobre se deveria ter sido o Governo a ir ver se as prateleiras dos comerciantes estavam vazias, nas Flores e no Corvo. Tentemos o tal raciocínio lógico-dedutivo.
1ª premissa – há um furacão que destrói um porto marítimo e deixa-o inoperacional. Numa ilha.
2ª premissa – os barcos que abastecem a mesma ilha não podem levar para lá os bens essenciais para a vida dos habitantes, ou poderão apenas fazê-lo em condições especiais, quer meteorológicas, quer da natureza do próprio navio.
3ª premissa – não há barco com as características exigidas e o mar continua bravo.
4ª premissa – as pessoas que vivem na ilha continuam a comer.
Parece-nos óbvia a conclusão: a partir de certa altura, vão faltar os bens essenciais. Nenhum aluno falhará na resposta.
Portanto, a resposta à pergunta se deveria ter sido o Governo a ir ver se as prateleiras estavam vazias é óbvia: claro que não. Bastava pensar.
Mas se tal actividade cerebral se revelasse demasiado penosa, ou até dolorosa, haveria sempre a possibilidade de perguntar. E, nesse caso, a resposta passaria a ser sim. Sim, as prateleiras estão vazias, Senhor Presidente. Não veio nenhum barco com mercadorias para repor as existências, não beneficiámos de nenhum milagre da multiplicação de peixes, pão ou fosse do que fosse, e as prateleiras foram ficando vazias, naturalmente. O senhor que nos desculpe por termos continuado a satisfazer necessidades primárias… Da próxima vez deixar-nos-emos morrer, para não incomodar V. Exas.
A Autonomia dos Açores surgiu porque esta Região se sentia longe dos centros de decisão, em muitos aspectos desprotegida, nalguns casos quase abandonada. Mas só tem razão de ser se os povos que vivem em cada ilha se sentirem dia a dia mais autónomos, mais protegidos, menos abandonados.
A Autonomia tem de ser, cada vez mais, a autonomia das pessoas. Que não devem ter de gritar por socorro para satisfazer necessidades básicas. Um Governo que se preze tem de prever, antecipar-se nas soluções, evitar a todo o custo qualquer sofrimento dos governados. E sim, respondendo à pergunta basilar, ir ver se faltam coisas nas prateleiras, se preciso. Esse o seu dever, sobretudo quando se diz socialista.
Um governo que não consegue intuir, nem desenvolver raciocínios óbvios, nem resolver a tempo problemas vitais, tem de ir para a prateleira. E quem não o conhecer… que o compre!
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
E muito triste de pensar e mais de saber que este artigo é a REALIDADE !