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Literatura | Deolinda da Conceição e Maria Ondina Braga recordadas em Lisboa.
Uma levou Macau para a sua escrita, outra levou a condição da mulher para as suas obras, descrevendo os diversos papéis femininos desempenhados numa sociedade conservadora marcada pela crueza da guerra.
Deolinda da Conceição e Maria Ondina Braga foram lembradas segunda-feira numa palestra na Sociedade de Geografia de Lisboa.
A Sociedade de Geografia de Lisboa acolheu na segunda-feira uma sessão de homenagem às escritoras Maria Ondina Braga e Deolinda da Conceição, nomes marcantes da literatura feminina de Macau e dos diversos lugares que o território assumiu nas letras escritas em português.
Coube ao advogado e autor José António Barreiros falar da obra de Maria Ondina Braga, cujo centenário do nascimento se celebrou no ano passado.
Barreiros lembrou a paixão longa pelos escritos da autora.
“Comecei a interessar-me por ela quando as suas obras já raramente se encontravam nos alfarrabistas.
Hoje tudo mudou e as suas obras começaram a ser reeditadas”, disse.
José António Barreiros descreveu ainda o percurso literário da autora como uma “espécie de transladação divina do Oriente para o Ocidente”, considerando a escritora alguém que “viveu como se fora do outro mundo, fora do tempo”.
Nascida em Braga, onde viria a falecer em 2003, Maria Ondina Braga publica o seu primeiro livro de poesia em 1949, “Meu Sentir”, uma edição de autor, tendo escrito também diversos romances e contos.
A sua ligação a Macau começou em 1961, quando foi trabalhar como professora em Goa, indo depois para Macau na sequência da invasão de Goa, Damão e Diu pelas tropas indianas.
Em Macau deu aulas de português e inglês no Colégio de Santa Rosa de Lima.
Maria Ondina Braga também visitou a China, nomeadamente Pequim, e é do seu punho que sai, nos anos 60, o livro de contos “A China fica ao Lado”.
Apesar da paixão pela escrita, a autora dedicou-se também a traduzir autores como Graham Greene, Pearl Buck, Anaïs Nin, John le Carré, Mishima e Herman Wouk.
José António Barreiros lembrou, na palestra, que “ser tradutora dar-lhe-ia a possibilidade de se dedicar à escrita” em termos monetários.
Foi também recordada uma certa melancolia com que viveu toda a vida, muitas vezes em solidão.
No final, Maria Ondina Braga “morreu de um modo como sempre viveu, em silêncio”, destacou José António Barreiros.
“Em termos de relações humanas, Macau é o universo de Maria Ondina Braga”, enquanto Goa “foi um elemento de passagem que não é muito claro na sua escrita”.
Quando escreve sobre o universo Macau, Maria Ondina Braga descreveu “as relações femininas derivadas do ensino e das instituições religiosas”, surgindo “um ténue tule de delicadeza em que se percebe uma avaliação dos sentimentos e carácter de pessoas”, apontou ainda José António Barreiros.
Depois da experiência laboral em Macau, Maria Ondina Braga voltaria ao Oriente, em 1982, como professora convidada de Instituto de Línguas Estrangeiras de Pequim.
Nesse ano, já regressada definitivamente a Portugal, edita “O Homem da Ilha e outros contos”, e no ano seguinte é publicada a novela “A Casa Suspensa”, pela chancela da Relógio d’Água.
Em 1984 foi lançada mais uma obra sobre o universo oriental, nomeadamente o livro de contos “Angústia em Pequim”.
As mulheres de Deolinda
Coube depois a Ana Cristina Alves, investigadora e coordenadora do serviço educativo do Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), falar sobre a obra de Deolinda da Conceição, nascida em Macau em 1914
e que editou apenas um livro de contos “Cheong Sam – A Cabaia”, que marcou a literatura de Macau pelo retrato que faz das mulheres que viviam, à época, no território, nomeadamente da comunidade chinesa.
A obra foi editada pela primeira vez em Lisboa em 1956 pela Livraria Francisco Franco.
“Como escritora ela pode-nos dar um sentimento muito profundo de como as mulheres se sentiram”, começou por destacar Ana Cristina Alves.
“Ela nunca falou dela própria e foi uma escritora voltada para o exterior e para a sociedade, sofrendo intensamente o tempo em que viveu, que foi dramático.”
Ainda jovem, Deolinda da Conceição passou pela I Guerra Mundial, que decorreu entre 1914 e 1918, e depois pela II Guerra Mundial (1936-1945), assim como a Guerra Sino-Japonesa, que tantos refugiados levou para o pequeno enclave português às portas da China.
“Ela esteve sempre em guerra, mas preocupava-se imensamente com a sociedade, estando sempre atenta às consequências dos conflitos, à fome”, apontou Ana Cristina Alves,
que descreveu os cinco tipos de mulheres que podemos encontrar nos 27 contos que fazem parte de “Chong Sam – A Cabaia” e demais tipos de pessoas, nomeadamente a figura do homem bondoso.
“Ao ler os 27 contos senti a profunda dor da escritora, em que a única salvação para as mulheres do Oriente, fossem chinesas ou macaenses, era a educação, transformarem-se em pessoas independentes e educadas, pois caso contrário seriam cinco categorias de mulheres”, ou seja, tradicionais, acomodadas, mártires, órfãs de guerra, dependentes.
Ana Cristina Alves disse também “identificar-se absolutamente” com a escrita de Deolinda da Conceição.
“A maior parte dos contos acaba muito mal, pois em tempo de guerra as coisas são difíceis.
Qualquer exemplo [de texto] em que a protagonista é a mulher tradicional tem um mau final, porque esta mulher tradicional é inculta numa sociedade absolutamente conservadora.”
Os contos de Deolinda da Conceição abordam muito a “figura maternal”, ou seja, as mulheres que ficam viúvas em tempo de guerra e são obrigadas a ficar à mercê das esmolas que a sociedade dá.
No que diz respeito à figura da mulher mártir, a escritora macaense abordou a situação concreta “das jovens meninas, as concubinas, que normalmente se suicidavam pela pressão das esposas legítimas” ou então “as mulheres que tentam seguir o amor numa sociedade conservadora”.
Palavras de filho
A sessão de homenagem de segunda-feira contou com a presença do designer e criativo Antonio Conceição Junior, filho de Deolinda da Conceição, que faleceu quando este tinha apenas cinco anos.
António Conceição Júnior destacou “o espírito inquieto” que a mãe demonstrou “desde cedo”, uma mulher “que jamais foi dona de casa ou doméstica”, e para quem “não havia desigualdade de género”.
Deolinda da Conceição “foi, talvez, a primeira mulher emancipada de Macau, que por amor à verdade sempre escreveu o que pensava”, adiantou.
No final da sessão, Ana Cristina Alves descreveu ainda a autora macaense, que também foi jornalista e cronista, como “uma lutadora, que usou a escrita como arma”.
“Ela usou a escrita para chamar a atenção para uma sociedade que poderia ser melhor e não era.
Todos os que não eram educados eram penalizados por isso.
A educação é um bem essencial e isso tem a ver com a alma chinesa.
Nos tempos antigos essa educação estava limitada aos homens e não se destinava às mulheres, mas era um factor distintivo essencial”, descreveu.
Carlos Piteira, antropólogo e presidente da comissão asiática da Sociedade de Geografia de Lisboa, moderou a sessão, falando também do papel de perpetuação da memória que as obras de Deolinda da Conceição e Maria Ondina Braga desempenham.
“Todos nós acabámos por ganhar imenso com estes testemunhos e ficámos a conhecer melhor as pessoas de Macau”, rematou.
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