DEMOCRACIAS ARMADILHADAS –

Views: 0

democracias armadilhadas

18.2. 28.2.2019, CRÓNICA 237

ChurchillNinguém pretende que seja perfeita ou sem defeito.

Cresci na ditadura. Havia quem lhe chamasse branda, como brandos, alegadamente, eram os costumes do povo que a suportava. Cresci acreditando que, um dia, o país faria parte da Europa e do mundo. Estava tão longe que bem podia pertencer a outra galáxia. Lembro-me de ir a Tui (Galiza) comprar discos dos Beatles ou beber Coca-Cola que eram proibidos, com medo dos miasmas contagiosos de civilizações estrangeiras. Depois, veio o dia de todas as esperanças, um 25 de abril e eu, em Timor, esperei, tardava a chegar (teria ido de barco?) e jamais arribou.

A Europa cresceu, o sonho da UE medrou descontroladamente, até ter mais olhos que barriga e ficar na palhaçada que hoje é. Por toda a parte, uma após outra, as ditaduras foram substituídas por modelos de democracia onde, alegadamente, o povo e a sua vontade eram representados em parlamentos. Já então, o neoliberalismo da Nova Ordem Mundial tinha disseminado as sementes com Thatcher e Ronald Reagan e não sabíamos como iria perverter o Ocidente.

Lentamente, nos últimos vinte anos, assistimos ao constante retrocesso nas conquistas dos direitos fundamentais da humanidade, de igualdade, solidariedade e justiça. As democracias estão a ser manipuladas, numa aparência de vontade popular através do voto universal, mas, na prática, substituídas por autocracias, sem falar daqueles onde as escolhas democráticas foram substituídas por nomeações da anónima banca internacional, do petróleo às farmacêuticas que tudo controlam. Isto num mundo em que a verdade é ficção e a ficção é a neoverdade.

Há tempos, ao ler Umberto Eco “O Cemitério de Praga,” apercebi-me de que como isto sempre aconteceu sem darmos conta. Países habituados a xerifes do universo, como os EUA (em substituição dos decadentes impérios que duas grandes guerras aniquilaram), continuam a inventar invasões, primaveras políticas, depondo ditadores ou democratas a seu bel-prazer. Dir-me-ão que a democracia ainda é o menos mau dos sistemas (como afirmou Churchill). Claro que é a pior forma de governança, salvo todas as outras, há corrupção de políticos de todas as cores, o nepotismo, os arranjinhos parlamentares (agora mamas tu, logo mamo eu).

Dantes, os países democráticos tinham eleições, os outros não (nem mesmo as mascaradas eleições do partido único em Portugal o ocultavam). Hoje assistimos a um novo e preocupante paradigma, a semi-democracia com a aparência (eleições), resultados viciados, roubo descarado de votos e manipulação na via autocrática travestida de democracia oca. Assistimos, nas últimas décadas, a ataques à democracia, e são as instituições europeias quem mais tem atrofiado o funcionamento dos sistemas democráticos, planta frágil que precisa de ser regada diariamente.

O exemplo da democracia semiautonómica, é visível nos Açores onde existe um parlamento regional e teórica liberdade de escolha, mas as decisões relevantes são definidas pelo governo central, ao atropelo e revelia das normas autonómicas, com a cumplicidade local, pau-mandado dos partidos em Lisboa. O povo, que nem é totalmente ignorante, vota com os pés (i.e., abstendo-se) ou a favor dos que o mantém, subsidiodependente. Um ciclo vicioso: vota em mim e recebes apoios, não votas e desenrascas-te sozinho contra a malha burocrática que te vai aniquilar. As vozes independentes, poucas e raras, compradas com mordomias, silenciadas, sem destaque nos média, emudecidos na onda de autocensura que lhes permita sobreviver.

Rumámos para a autocracia, com a manta diáfana da aparência democrática. Infelizmente, o pior está para chegar. O nacionalismo e a xenofobia chegam com o voto do povo. E até eu, um otimista nato, tenho demasiadas dúvidas, rodeado por autómatos não-pensantes, obcecados com os pequenos ecrãs dos smartphones e impérvios aos atropelos à dignidade, equidade e justiça, em volta. Possa eu continuar a falar, sem medos persecutórios, mesmo que as palavras não cheguem a muitos nem sejam lidas, e já me contentaria nos dias difíceis que se avizinham.

Quando essa liberdade se perder, terei de me conformar e aceitar que implantem um ”chip” para o meu bem, como nem Orwell nem Aldous Huxley conseguiram imaginar.