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O menos falado pedaço da “Índia portuguesa” é, sem dúvida, Damão. Da sua antiga glória restam dois fortes, impressionantes no tamanho e na preservação, e uma pequena comunidade que mantém algo da cultura portuguesa. CARAVELA DE PEDRANão me consola muito saber que os portugueses de quinhentos sofreram ainda mais que eu para chegar a Damão. As viagens para a Índia podiam demorar muitos meses, e Damão fica a Norte de Goa e de Mumbai (antiga Bombaim), pelo que teria de se adicionar mais algum tempo de viagem para lá chegar, fosse por mar ou por terra. Mas ainda hoje é complicado.
As adoráveis contradições indianas, que incluem passar de cidades onde qualquer mendigo fala inglês, como Mumbai, para outras onde só sabem a língua local – para além do hindi oficial, creio eu -, fazem com que coisas aparentemente simples, como descobrir de onde partem os transportes, seja um verdadeiro trauma. E depois é preciso conseguir apanhar o autocarro certo. Já para não falar da vocação suicida dos condutores, ou do estado dos veículos, verdadeiras sucatas sobre rodas onde se pode escrever o nome no pó dos assentos, e onde a única maneira de marcar lugar é fazer como os locais, e atirar uma criança lá para dentro pela janela quando o autocarro ainda está a entrar no terminal. E depois há a questão de valer a pena ou não. Não vim negociar em especiarias nem espalhar a fé cristã, o meu interesse vagueia entre uma espécie de curiosidade histórica, de ver em que se transformou este importante entreposto comercial português do século XVI, e conhecer as particularidades dos pequenos territórios da União Indiana. À primeira vista, Damão não é propriamente um lugar bonito. Até chegarmos aos dois fortes: o pequeno, com o cemitério cristão, uma igreja e um campo relvado de futebol para os miúdos; e o grande, junto às muralhas do qual os pescadores trabalham, no meio dos barcos embandeirados. A HERANÇA PORTUGUESA EM DAMÃOQue estamos na Índia ninguém o pode ignorar. O trânsito ruidoso, abundante e caótico, os cheiros apetitosos da comida e de incenso, o chinfrim de buzinas misturado com música e a confusão de gente nas ruas, não nos deixam imaginar qualquer outro lugar. Muitos homens usam o trajo branco típico do estado do Guzerate, cujo chapelinho lembra os vendedores de gelados de antigamente.
O território de Damão é um enclave territorial com apenas trezentos e oitenta quilómetros quadrados e a forma de uma pequena escama, quase imperceptível no imenso mapa da Índia. Mas tem a sua própria assembleia, desde 1987, e as suas leis muito próprias. Uma delas, comum aos outros ex-territórios portugueses, é a permissividade em relação ao álcool. Quem chega por terra vindo de algures no Guzerate, estado onde o hinduísmo tem muito peso e onde impera a lei seca, fica logo surpreendido com a abundância de bares. E caso se fique durante um fim-de-semana ou feriado, chega a ser difícil encontrar alojamento na cidade, com centenas de indianos a chegarem de lugares onde as bebidas alcoólicas são proibidas, para passarem uns dias em cheio. O rio Daman Ganga divide a cidade em duas: a Norte, Nani Daman, o Pequeno Damão, e do lado oposto, fica o Grande, Moti Daman. Nascida na foz, com vista para o rio e o mar, a cidade tem fartura de água e de pescadores, e o cheiro a peixe sobrepõe-se a todos os outros. Os barcos engalanados com bandeirinhas coloridas, suspensas de uma teia confusa de mastros finos, alinham-se ao longo da tira de areia escura da praia. Alguns pescadores remendam redes, enquanto outros espalham peixes minúsculos numa rampa junto ao areal, para secarem. Algumas estatuetas de deuses, pequenas e tão negras como a areia, jazem por ali, talvez para dar sorte e protecção. Mas o que atrai a atenção de quem chega à costa são os dois fortes portugueses, à sombra dos quais se desenrola a vida quotidiana desta cidade piscatória: frente a frente, de um lado e do outro do rio, o pequeno forte de Nani e o grande de Moti parecem dois gigantescos barcos de pedra, atracados à espera da maré.
A cidade estende-se do lado do forte mais pequeno, e muitos prédios já o ultrapassam em altura. A cruz e a imagem de S. Jerónimo, que lhe dá o nome, continuam por cima do arco da entrada; lá dentro resta uma igreja – agora usada como escola – e um cemitério cristão. A avaliar pelos polícias, em cujos crachás se lêem nomes como Silva e Pereira, e também pelas meninas que passam de saia e blusa, em vez do sari ou da túnica, mais comuns nas hindus, parte da população parece ter mantido o cristianismo. Alguns ainda dizem mesmo algumas palavras em português, mas não encontrei ninguém que passasse para além dos cumprimentos e de algum vocabulário solto; no entanto, de regresso a Portugal, soube que o português ainda se estuda e que a cidade de Damão celebrou um acordo de geminação com Coimbra. A vista sobre Moti Daman e a imensa linha escura do forte, com a sua parede escura coberta de musgo, é impressionante. No arco da entrada, uma velha placa diz-nos que estamos na Rua Martim Afonso, e uma das primeiras casas está assinalada como sendo aquela onde viveu Bocage, tenente da Marinha antes de desertar. A atmosfera torna-se mais arcaica à medida que percorremos a rua central, bem sombreada, onde vamos encontrando edifícios antigos bem portugueses, como o Palácio do Governador ou a igreja do Bom Jesus. Do lado de fora, alguns pescadores limpam os seus barquinhos de aspecto frágil, enquanto outros acartam enormes blocos de gelo pendurados em paus, para conservar o pescado. E tendo como cenário os imponentes fortes portugueses, as actividades habituais do cais parecem fazer parte de um qualquer filme antigo.
PÉROLAS E TÂMARASDesde 1531 que esta área do Golfo de Cambaia, na foz do rio Daman Ganga, funcionava como entreposto comercial. Os fortes portugueses foram construídos em meados no século XVI, e a presença lusa já estava literalmente de pedra e cal em 1559 – mas uma placa na entrada do forte Grande lembra que, antes da conquista portuguesa, existia aqui uma fortificação muçulmana.
As fortificações serviam, sobretudo, para defender as mercadorias que por aqui passavam em trânsito, entre o Golfo Pérsico e a costa africana, nomeadamente Mombaça e Mogadíscio. Os ataques tanto podiam vir de terra como do mar, protagonizados pelo sultão de Cambaia, por piratas ou mesmo por “concorrentes”, como os ingleses e os holandeses. O principal comércio era constituído por cavalos persas, aljôfar (pérolas pequenas e irregulares) e tâmaras; o tabaco do Brasil também veio a tornar-se um dos mais importantes bens transaccionados. Durante a colonização inglesa, Damão continuou a fazer parte de Portugal quase de forma simbólica, com alguma presença militar a marcar a posse de um território que já não tinha a função e utilidade que teve nos séculos XVI e XVII. Em 1961, catorze anos após a independência, a União Indiana invadiu os três territórios que constituíam a Índia Portuguesa (Goa, Damão e Diu), incorporando-os politicamente no território a que sempre pertenceram. |
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