DA POBREZA E NÃO SÓ, Paula Cabral

Views: 0

Artigo de hoje, no Correio dos Açores.
Um nó na garganta
Na semana passada, fui assistir à apresentação, na Letras Lavadas, do livro Breve História da Europa, com a presença da autora, Raquel Varela.
Surpreendeu-me o reduzido número de pessoas na assistência, considerando a oportunidade, que nem sempre se tem, de ouvir e dialogar com uma das pensadoras mais acutilantes do nosso país.
Raquel Varela, como se sabe, é historiadora, normalmente assumindo a visão da história do lado da gente anónima, das classes trabalhadoras, que, efetivamente, é quem faz a sociedade funcionar e quem incorpora as revoluções e transformações do mundo.
Efetivamente, somos nós, população ativa, que temos, em última instância, nas mãos o (in)sucesso das políticas prescritas, conforme o grau de disciplina com que as executamos ou consoante a resistência que lhes fazemos.
Nenhuma lei se concretiza contra a vontade de um povo unido. Veja-se o caso dos franceses que, na rua, protestam de forma aguerrida contra o aumento da idade da reforma.
A resistência pode tornar o exercício de governar impossível e daí o surgimento das revoluções e da queda de governos ao longo da história. A história pode representar, então, um problema para os poderosos que entendem o seu conhecimento como um estímulo à perversidade, um incitamento à rebelião, um aguilhão na formação de uma identidade coletiva que, por sua vez, instiga à união e, portanto, vista como um perigo. Não é de admirar que a história esteja cada vez mais arredada dos nossos currículos escolares. O seu desconhecimento tem tido como consequência direta, por exemplo, o fenómeno atual do crescimento de eleitores jovens entre os partidos de extrema direita.
Voltando à visão da história, eivada do pensamento marxista, de Raquel Varela, ninguém pode negar que o estudo das condições das classes trabalhadoras explica as lutas, as reformas, as dinâmicas sociais, isto é, a sua centralidade define, em grande parte, o decurso da história. O trabalho garante o sustento da humanidade e confere-lhe dignidade, dá-lhe um desígnio, pelo que a sua desvalorização é causa de desigualdades, de injustiças sociais e de desesperança. Olhe-se atualmente para a classe dos professores, por exemplo.
Na nossa região, poderíamos justificar o espectro abrangente da pobreza pela mesma via. As condições de trabalho funcionam como resistência, com outra conotação, ao progresso e à transformação da sociedade, sem que haja uma concertação de esforços para melhorá-las.
Diria que é uma forma de resistência passiva, já que longe da semântica da mesma palavra usada acima, de natureza consciente, acesa, combativa. A resistência, neste caso, e ao invés de se definir como oposição, ganha a aceção de convergência na medida em que colabora para o aumento da realidade indesejada. Explico.
Participei, também na semana passada, num debate inevitavelmente sobre a pobreza, promovido pelo Clube de Leitura da Associação de Solidariedade Social de Professores dos Açores, a propósito da leitura do notável livro de Joel Neto, Jennifer, a Princesa de França, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Conduzido pelo Prof. Dr. Francisco Diogo da Universidade dos Açores, este encontro de leitores ficou marcado pela sua descrição do perfil da pobreza nos Açores. O investigador foi o único até agora a fazê-lo, uma vez que o último estudo feito sobre a pobreza nestas ilhas foi a sua tese de doutoramento em 2004, o que é um factor de perplexidade, sendo este problema a matriz de todas as nossas preocupações. De acordo com o sociólogo, é a população ativa, ou seja, a população trabalhadora, que constitui a maior fatia no todo da pobreza dos Açores.
A conclusão é muito pouco animadora. Os salários baixos, a precariedade, a falta de formação profissional, o baixo nível de escolaridade constituem uma mistura explosiva – ou implosiva – das fundações de qualquer sociedade com o mínimo de ambição. Ainda há dias, aquando da passagem de vários navios de cruzeiro no porto de Ponta Delgada, ouvia queixas sobre a inadequação dos horários do comércio ou da restauração, da falta de produtos regionais nas lojas, da fraca animação da cidade, enfim, factores de resistência às medidas de incentivo ao turismo que, por bem delineadas que sejam nos gabinetes governamentais, esbarram sempre na resistência acomodada das nossas gentes, precisamente pela falta do princípio de tudo: o verbo – que é como quem diz a materialização do conhecimento, da iniciativa, a concretização.
É este sentido de resistência que tem definido a história dos açorianos nas ultimas dezenas de anos. É o atrito do insucesso escolar, é o desencontro entre a formação profissional e académica de qualidade e o custo do trabalho, é o problema da precariedade, é a mentalidade subsídio-dependente, é a falta de iniciativa, é a exploração dos mais fracos, que permite a concentração de riqueza nas mãos de alguns, é a acomodação por falta de esperança no futuro.
Como se sai deste círculo vicioso de gerações?
A história dá-nos exemplos de redenção pelo sentido de colectividade, pela coesão social, pela tomada de consciência de sentido de comunidade, pelo trabalho em união ( de que são exemplo os sindicatos) e em consonância com as necessidades de um todo. Basta pensar que o mundo conheceu o seu período de paz mais longo e próspero depois de experimentar o pior da humanidade durante a II Guerra Mundial. A união dos povos, concretizada pela criação da ONU, pela proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi fundamental.
O respeito pelo próximo continua a ser o mandamento mais precioso e a necessidade mais atual.
Disse a Raquel Varela que, se disponibilizasse a vir aos Açores por algum tempo, encontraria muita matéria de estudo…
Veio, no entanto, a convite da organização do I Congresso de Jornalistas dos Açores, outra iniciativa importante que ocorreu no final da semana passada, a fim de conhecer melhor as condições de trabalho desses profissionais, cada vez mais enredados nas dificuldades económicas específicas desta região e nas peculiaridades que cerceam o exercício da profissão numa terra pequena.
Nas conclusões dos trabalhos, lê-se que o trabalho de investigação deve ser estimulado na criação de consórcios. Mais uma vez se prova que a união tem muitas vantagens.
Que comecem a revirar pedras. Não lhes faltará matéria orgânica para analisar.
Terra esta cunhada pela fome de um trabalho digno de esperança. Dela se tem feito toda uma história de emigração.
May be an image of 2 people and text
Like

Comment
Suggested for you