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DA MINHA JANELA – 13 MAI 2013, CRÓNICA 128
Das ameias do meu castelo, janela aberta sobre o mundo, vejo um planeta em permanente mudança. São vaqueiros a cavalo, em carroça ou carrinha, rumo às vacas, pelas cinco e meia ou seis em rotinas – duas ou três vezes ao dia – até ao escurecer quando regressam dos pastos.
Vejo tratores, mais apropriados ao Oeste norte-americano, às pradarias, à amplidão dos campos australianos ou da Extremadura espanhola do que ao minifúndio micaelense, demasiado grandes para torrões minúsculos, enormes para as pequenas parcelas na Lomba da Maia.
Vejo crianças ruidosas que voltam da escola ou catequese, a correr, aos berros, à pancada, desobedecendo a mães e avós, a atirarem papéis para a rua, como bestinhas que irão ser quando crescerem, saltando para o meio da rua impérvias ao trânsito e à vida que lhe podem roubar.
Vejo anciãs de xaile ou lenço, na cabeça, parecem daguerreótipos do séc. XIX, vagarosamente sobem a rua rumo aos deveres eclesiásticos da fé, missas, novenas, enterros ou procissões. Parecem viúvas a viver num mundo que já não existe, como se tivessem deixado de compreender a realidade circundante. Imagens doutras eras, o passado ancestral, imutável, e que ora deu um pulo para o espaço sideral.
Vejo, pela janela entreaberta da casa em frente, a televisão a debitar telenovelas, entretendo os anos de vida que faltam à moradora que aqui se desloca em feriados e fins de semana…
Desta janela não vejo, noutra casa, o marido que bate na mulher, mas a mulher que bate nos filhos (bem casada ou mal casada?) que não cessa de entrar e sair e falar com todos os homens da aldeia (é freguesia, senhor), fornecedores do pão, fruta, carne, roupas e todos os das carrinhas que aqui aportam diariamente para venderem produtos. Ela aguarda, aperaltada, que o marido siga para as vacas e vai lampeira em busca de quem a ouça e à sua língua. Vive no quotidiano os sonhos imaginados das telenovelas que lhe enchem as noites.
Dizem-me que há gente assim, rua acima e rua abaixo, em freguesias perto e longe.
Da janela, aos domingos, vejo homens de fatiotas puídas, doutras eras (casamento) à porta da Igreja ou a beberem uns copos na tasca da esquina. Não entram na missa o ano todo, mas depois fazem-se à estrada como romeiros, arrostando com frio, chuva e outras privações.
Há os que escapam, sobre quem não impendem acusações de violência doméstica, pedofilia, abusos, alcoolismo ou outras infrações mas que cumprem religiosamente tradições ancestrais que nem sabem explicar nem compreender. Como romeiros têm fama de bons cristãos.
Vejo enterros, procissões, casamentos, vendedores de cracas e lapas, de tudo e mais alguma coisa em carrinhas barulhentas na distribuição e aliciamento de clientes em tempo de crise.
Mas o que nunca vi desta janela foi alguém a ler um livro… e isso observei, apenas uma vez em Ponta Delgada, junto ao Forte de S. Brás em 2013.